EDIÇÃO No. 6 - Maio-Agosto 2005

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                                                              ISSN 1809-2586

                                                             
maio-agosto 2005
André Vinicius Pessôa
Pernambo e a alegria da criação

Antônio Máximo Ferraz
As Máscaras Pessoanas: um convite à
liberdade como caminho de interpretação


Camillo Cavalcanti
Poéticas de Bandeira e Drummond

Carolina Lusitano
A Linguagem Na Sociedade Pós-Moderna:
O Virtual E A Arte


Cintia Cecilia Barreto

Através do espelho e o que Alice encontrou

por lá:
Narrativa e Narrador em Reunião de Família

Danielle Costa

Anne Rice e o Vampiro Decadentista


Deize Fonseca

Fantasias de amor e morte: Máscaras Carnavalescas em
Edgar Allan Poe e Lima Barreto


Evelyn Blaut

Uma Ótica Feminina na Literatura Pós-Moderna Brasileira


Francesco Jordani Rodrigues
Pelas Veredas do Grande Sertão: Perguntas e Olhares de Riobaldo

Hudson dos Santos Barros
Santo Agostinho: a narrativa de si e a filosofia

Laura Zuniga

Cidades reversíveis: caminhos urbanos em Benjamin, Guattari e Janice Caiafa

Leila Miccolis 
Novela de Televisão: Literatura? As narrativas contemporâneas 

Lucia Ricotta
A paisagem n'Os Sertões de Euclides da Cunha

Luciana Souto Maior Tavares
Jean Lorrain como expressão da modernidade: breve leitura de Historie des Masques

Luiz Manoel da Silva Oliveira
Os Jogos dos Sentidos Ficcionais em Jasmine e Alias Grace

Marcia Cristina Silva

A Lógica do Invisível


Maria José Ladeira Garcia

Desconstrução/Reconstrução em "Aqui e em Outros Lugares" de Oswaldo França Júnior


Maria Lucia Guimarães de Faria

Canção e existência: uma interpretação de "Sorôco, sua mãe, sua filha", de Guimarães Rosa


Marinês Lima Cardoso
Estratégias narrativas no romance Gli Indifferenti de Alberto Moravia

Maurício Chamarelli Gutierrez

A Lírica em O nascimento da tragédia: música e linguagem


Mauro Cézar de Souza Junior
Poesia e possessão extática na Obra de Leonardo Fróes

Mônica Amim
Mabinogion: uma visão celta das maravilhas e utopias medievais

Nilton José dos Anjos de Oliveira
Agostinho - Entre Mani e Pelágio: por uma hermenêutica do mal

Raquel de Castro dos Santos
Construção poética em Octavio Paz

Tatiana Pequeno da Silva
Luiza Neto Jorge e Al Berto: vertigem de corpos dissolutos

Víctor Manuel Ramos Lemus

Felisberto Hernández: um corpo frágil na cidade moderna





APRESENTAÇÃO

                       

Há uma passagem em que Valéry escreve:

Na minha opinião, a filosofia mais autêntica não está tanto nos objetos de nossa reflexão quanto no próprio ato do pensamento e em sua manobra. Retirem da metafísica todos os termos favoritos ou especiais, todo o vocabulário tradicional e talvez constatem que não empobreceram o pensamento. Talvez vocês, ao contrário, tenham-no suavizado, revigorado, e estarão livres dos problemas dos outros para ter que tratar apenas com suas próprias dificuldades, com suas surpresas que nada devem à pessoa alguma e das quais sentem verdadeira e imediatamente a aguilhoada intelectual[1]

Poetas, filósofos, pensadores, teóricos, críticos, acadêmicos... Todos têm o que aprender com estas palavras, que nos ensinam a autenticidade do pensamento. O que é autenticidade? Isto que, em nós, é o mais íntimo e estranho de nós mesmos, esta voz que, com a força da criação, quer fazer sua diferença falar através de nós. Contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, a autenticidade é o que não precisa nem mesmo ser buscado: à nossa revelia, ela nos aguilhoa, impondo-nos surpresas, perplexidades. Ainda que provocada por um outro, ela não nos torna devedor a ninguém, porque, gratuitamente, é em nós que irrompe, de maneira distinta do que pode tê-la acionado.

            Ao invés de por uma procura, somos surpreendidos por um encontrar, que, com seu impacto, nos faz sobressaltar, e a partir de então todo o trabalho é requerido. A autenticidade permite que o real nos aguilhoe, transformando-nos em receptores do impacto de uma possibilidade que quer se manifestar. Desvendados por ela, passamos a intervalo permissivo, propiciador do vir à tona do que quer aparecer e que, de outra maneira, não poderia. Ainda mais: a cada instante, ficamos perplexos com o que nos é estranho e que nasce por nosso intermédio, tornando-se, de nós, o mais íntimo, à medida que nosso esforço trabalha em seu favor. Em outro texto, Valéry dá voz a um Sócrates conversando com Fedro no Hades: Há palavras que são abelhas para o espírito. Têm a insistência desses insetos, e o importunam. Esta me aguilhoou[2]. As palavras têm uma autonomia capaz de aguilhoar o pensador, tornando-o outro; nesta relação, perseguindo-o insistentemente, elas o obrigam ao que lhe é completamente desconhecido.

            Para conseguir a manifestação do autêntico, em nós, nada a ser acrescentado. Conta-se que Nan-in, mestre zen no reino dos Meiji (1868-1912), recebeu um professor universitário que queria conhecer o zen. Servindo chá, foi enchendo a xícara do visitante até transbordá-la; mesmo então, continuou derramando o líquido quente, enquanto o professor, já molhado, gritava: - A xícara está cheia, não adianta mais enchê-la! Ao que o mestre retrucou: - Você está cheio como esta xícara. Como posso mostrar-lhe o zen?[3] Como pensar autenticamente? Como descobrir nossa maneira de atravessar as exclamações encontradas? Na citação que nos ensina o pensamento autêntico, Valéry quer o mesmo que o mestre da anedota, ou seja, esvaziar-nos: retirem da metafísica todos os termos favoritos ou especiais, todo o vocabulário tradicional e talvez constatem que não empobreceram o pensamento. Talvez vocês, ao contrário, tenham-no suavizado, revigorado (...).

            O pensamento começa quando estamos aptos a deixar que algumas palavras cotidianas, sem uma prévia carga conceitual ou poética, às quais nenhuma atenção era dada, adquiram novo vigor. Como diz Manoel de Barros:  

Pegar certas palavras já muito usadas, como as velhas prostitutas, decaídas, sujas de sangue e esterco - pegar essas palavras e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da morte por clichê[4].   

Ou: As palavras querem me ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro-lhes o verniz e os vôos metafísicos. Corto o desejo de se exibirem às minhas custas[5]. É preciso que sejamos escolhidos pelas palavras que serão escritas, que sejamos aguilhoados pela simplicidade de algumas palavras pouco importantes que querem estabelecer sentidos inesperados. É necessário, também, tirar a dimensão metafísica que carregam em seu corpo pelo uso que delas foi feito.

            Atingir a autenticidade do pensamento está ligado a acolher uma zona de esvaziamento, para ser surpreendido pelo impensado que habita o mundo e quer nos atravessar. Mas o que é o pensamento? Menos os objetos de suas reflexões, seus assuntos, suas respostas do que sua manobra, sua maneira de se realizar, seus arranjos. Valéry está interessado na poética do pensamento, na exigência do que a mão põe em obra para destiná-lo a se movimentar deste, e não de outro, modo.

            Em diversos momentos, Manoel de Barros também manifestou a experiência do pensamento enquanto manobra de si próprio como uma das mais importantes realizações de sua poética: inventar para elas [as palavras] novos relacionamentos, subverter a sintaxe até a castidade, propor novos enlaces para as palavras, fazer casamentos novos entre as palavras, buscar contigüidades anômalas, os coices na gramática etc [6]. Para que nosso idioma não morra a morte por fórmulas, por lugares comuns, para tirar o tédio do nosso paladar de ler[7], ele nos oferece uma nova indicação: no lugar de destruir a sintaxe (como uma de nossas vanguardas teve por programa), ele a leva a delirar, injeta-lhe insanidades, subverte-a do princípio ao fim, busca suas tortuosidades populares. Enquanto a tentativa de destruir a sintaxe significa, ainda em algum grau, uma submissão à sua tirania por quem dignamente luta contra ela, a subversão é capaz de demonstrar a conquista de liberdade de uma poesia que aprendeu a fazer dançar seu pensamento em um campo antes minado.

            Todo pensador fortalece nele e em nós a autenticidade do pensamento. A maneira pela qual mostra isto é pensando, à nossa frente, para que, com ele, aprendamos a realização de nossas próprias manobras do pensamento. A Revista Garrafa, cujo número 6 vem a público, tem a alegria de trazer, exatamente, estas muitas aprendizagens das manobras do pensamento realizadas entre nós.
 

Alberto Pucheu


[1] VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. por Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras. 1991 . p.216.
[2] VALÉRY, Paul. Eupalinos: ou o arquiteto. Trad. por Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34, 1996. p.71. Edição bilingüe.
[3] Cf. Paroles zen.Textes recueillis par Marc de Smedt. Paris: Albin Michel, 1996. p.39.
[4] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. p.308.
[5] Id. Ibid. p.333-334.
[6]BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. p.310, 312, 320.
[7] Id. Ibid.

Alberto Pucheu