Há uma passagem em que Valéry escreve: Na minha opinião, a filosofia mais autêntica não está tanto nos objetos de nossa reflexão quanto no próprio ato do pensamento e em sua manobra. Retirem da metafísica todos os termos favoritos ou especiais, todo o vocabulário tradicional e talvez constatem que não empobreceram o pensamento. Talvez vocês, ao contrário, tenham-no suavizado, revigorado, e estarão livres dos problemas dos outros para ter que tratar apenas com suas próprias dificuldades, com suas surpresas que nada devem à pessoa alguma e das quais sentem verdadeira e imediatamente a aguilhoada intelectual[1]. Poetas, filósofos, pensadores, teóricos, críticos, acadêmicos... Todos têm o que aprender com estas palavras, que nos ensinam a autenticidade do pensamento. O que é autenticidade? Isto que, em nós, é o mais íntimo e estranho de nós mesmos, esta voz que, com a força da criação, quer fazer sua diferença falar através de nós. Contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, a autenticidade é o que não precisa nem mesmo ser buscado: à nossa revelia, ela nos aguilhoa, impondo-nos surpresas, perplexidades. Ainda que provocada por um outro, ela não nos torna devedor a ninguém, porque, gratuitamente, é em nós que irrompe, de maneira distinta do que pode tê-la acionado. Ao invés de por uma procura, somos surpreendidos por um encontrar, que, com seu impacto, nos faz sobressaltar, e a partir de então todo o trabalho é requerido. A autenticidade permite que o real nos aguilhoe, transformando-nos em receptores do impacto de uma possibilidade que quer se manifestar. Desvendados por ela, passamos a intervalo permissivo, propiciador do vir à tona do que quer aparecer e que, de outra maneira, não poderia. Ainda mais: a cada instante, ficamos perplexos com o que nos é estranho e que nasce por nosso intermédio, tornando-se, de nós, o mais íntimo, à medida que nosso esforço trabalha em seu favor. Em outro texto, Valéry dá voz a um Sócrates conversando com Fedro no Hades: Há palavras que são abelhas para o espírito. Têm a insistência desses insetos, e o importunam. Esta me aguilhoou[2]. As palavras têm uma autonomia capaz de aguilhoar o pensador, tornando-o outro; nesta relação, perseguindo-o insistentemente, elas o obrigam ao que lhe é completamente desconhecido. Para conseguir a manifestação do autêntico, em nós, nada a ser acrescentado. Conta-se que Nan-in, mestre zen no reino dos Meiji (1868-1912), recebeu um professor universitário que queria conhecer o zen. Servindo chá, foi enchendo a xícara do visitante até transbordá-la; mesmo então, continuou derramando o líquido quente, enquanto o professor, já molhado, gritava: - A xícara está cheia, não adianta mais enchê-la! Ao que o mestre retrucou: - Você está cheio como esta xícara. Como posso mostrar-lhe o zen?[3] Como pensar autenticamente? Como descobrir nossa maneira de atravessar as exclamações encontradas? Na citação que nos ensina o pensamento autêntico, Valéry quer o mesmo que o mestre da anedota, ou seja, esvaziar-nos: retirem da metafísica todos os termos favoritos ou especiais, todo o vocabulário tradicional e talvez constatem que não empobreceram o pensamento. Talvez vocês, ao contrário, tenham-no suavizado, revigorado (...). O pensamento começa quando estamos aptos a deixar que algumas palavras cotidianas, sem uma prévia carga conceitual ou poética, às quais nenhuma atenção era dada, adquiram novo vigor. Como diz Manoel de Barros: Pegar certas palavras já muito usadas, como as velhas prostitutas, decaídas, sujas de sangue e esterco - pegar essas palavras e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da morte por clichê[4]. Ou: As palavras querem me ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro-lhes o verniz e os vôos metafísicos. Corto o desejo de se exibirem às minhas custas[5]. É preciso que sejamos escolhidos pelas palavras que serão escritas, que sejamos aguilhoados pela simplicidade de algumas palavras pouco importantes que querem estabelecer sentidos inesperados. É necessário, também, tirar a dimensão metafísica que carregam em seu corpo pelo uso que delas foi feito. Atingir a autenticidade do pensamento está ligado a acolher uma zona de esvaziamento, para ser surpreendido pelo impensado que habita o mundo e quer nos atravessar. Mas o que é o pensamento? Menos os objetos de suas reflexões, seus assuntos, suas respostas do que sua manobra, sua maneira de se realizar, seus arranjos. Valéry está interessado na poética do pensamento, na exigência do que a mão põe em obra para destiná-lo a se movimentar deste, e não de outro, modo. Em diversos momentos, Manoel de Barros também manifestou a experiência do pensamento enquanto manobra de si próprio como uma das mais importantes realizações de sua poética: inventar para elas [as palavras] novos relacionamentos, subverter a sintaxe até a castidade, propor novos enlaces para as palavras, fazer casamentos novos entre as palavras, buscar contigüidades anômalas, os coices na gramática etc [6]. Para que nosso idioma não morra a morte por fórmulas, por lugares comuns, para tirar o tédio do nosso paladar de ler[7], ele nos oferece uma nova indicação: no lugar de destruir a sintaxe (como uma de nossas vanguardas teve por programa), ele a leva a delirar, injeta-lhe insanidades, subverte-a do princípio ao fim, busca suas tortuosidades populares. Enquanto a tentativa de destruir a sintaxe significa, ainda em algum grau, uma submissão à sua tirania por quem dignamente luta contra ela, a subversão é capaz de demonstrar a conquista de liberdade de uma poesia que aprendeu a fazer dançar seu pensamento em um campo antes minado.
Todo pensador fortalece nele e
em nós a autenticidade do pensamento. A maneira pela qual mostra isto é
pensando, à nossa frente, para que, com ele, aprendamos a realização de
nossas próprias manobras do pensamento. A Revista Garrafa, cujo número 6
vem a público, tem a alegria de trazer, exatamente, estas muitas
aprendizagens das manobras do pensamento realizadas entre nós. Alberto Pucheu
[1]
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. por Maiza Martins de Siqueira.
São Paulo: Iluminuras. 1991 . p.216. Alberto Pucheu |