AGOSTINHO – ENTRE MANI E PELÁGIO: POR UMA HERMENÊUTICA DO MAL
 

Nilton José dos Anjos de Oliveira
 

 

Como afirma Levinás numa passagem aludida por Derrida no ‘Adeus’ que este pronunciou para aquele há dez anos atrás no momento do “sem resposta”[1]: o que me interessa [dizia Levinás à Derrida] não é a ética, não apenas a ética, é o santo, é a santidade do santo [referência a Êxodo 26,31]. Com isso, segundo Derrida, impõe-se uma distinção entre a sacralidade e a santidade (do outro). O espaço sagrado por excelência não seria um lugar qualquer instituído, desde sempre dado; mas sim, um lugar a ser constituído, construído na relação com outro, onde esse construir seria propriamente um ‘altruir’. Mesmo num nível macro vemos isso se repetir mesmo que não percebamos claramente a anterioridade das constituições para as instituições. Os homens constituem algo para, posteriormente, institui-lo. No entanto, quando o instituído ao cristalizar-se nos faz esquecer  ou nublar a sua condição de constituído, torna-se necessário, senão urgente a sua reconstituição – mesmo que venha a se tratar de um crime. O que objetivamos aqui é, em poucas linhas, reconstituir uma busca... pela santidade.

O que anima a discussão de Agostinho com os maniqueístas não se limita à questão de método interpretativo. O que lhe interessa é o pano de fundo dos discípulos de Mani, qual seja, a doutrina da dupla substância. É a realidade do mal que Agostinho quer objetar. O sentido é anterior ao método: adscrita no método a doutrina da dupla substância fazia com que os maniqueístas não defendessem a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento, já que para eles em se tratando de dois testamentos, contendo um a bondade, ao outro restava por conseqüência a posição contrária. Múltiplos foram os posicionamentos agostinianos em defesa da unidade na diferença dos dois testamentos. Quanto a essa relação entre multiplicidade e unidade, na tentativa de superar esta percepção de contrariedade, utilizará as mais diversas imagens como esta que trata da interposição do silêncio na linguagem:

 

Se nós, contendo ou regulando a voz, podemos interpor convenientemente o silêncio na linguagem, com quanta maior razão não realizará convenientemente a privação do bem em algumas coisas o perfeito Artífice de todas elas?[2]

 

 A discussão foi se aprofundando de tal maneira que Agostinho aproximou-se cada vez mais do motivo fundamental, repitamos: haveria o mal como substância? Invertendo a perspectiva teríamos o seguinte: a única maneira de superar a visão maniqueísta – que compreendia a existência como uma permanente luta entre o bem e o mal – seria a de refutar tal paridade ‘enfraquecendo’ uma das partes. Parece óbvio qual delas Agostinho se predispôs arrefecer. Foram os gnósticos os primeiros que especularam a respeito da procedência do mal tornando-o um objeto do conhecimento. Existe algo de genuíno (para não dizer original) nessa tentativa gnóstica, já que até então toda a filosofia tinha se ocupado, por influência platônica, da ascensão para o bem (não é de espantar que alguns poetas modernos denominados de malditos eram ou tornaram-se gnósticos, o que não conspira contra a beleza e profundidade de seus escritos, mas depõe sobremaneira contra a sua suposta originalidade). De qualquer maneira, Agostinho se via diante de mais uma situação que o incitava à apologia. Mais uma vez, ele deveria utilizar os métodos daqueles com quem debateria. Desse modo, a antignose tornou-se uma quase-gnose[3]:

           

Se a gnose é gnose, isto é, conhecimento, saber, ciência, é porque, fundamentalmente (...) o mal é para ela uma realidade. Longe de proceder da liberdade humana para a vaidade do mundo, ele procede dos poderes do mundo para o homem.

Contra essa gnose do mal, os Padres gregos e latinos, com unanimidade impressionante, repetiram: o mal não tem natureza[4], o mal não é alguma coisa; o mal não é matéria, não é substância, não é mundo. Ele não é em si, ele é de nós. O que cumpre rejeitar não é somente a resposta à questão, mas a própria questão. Não posso responder malum esse (o mal existe) porque não posso perguntar quid malum (o que é o mal?) mas somente unde malum faciamus? (de onde advém que façamos o mal?) O mal não é ser, mas fazer[5].

 

Existe aqui, como nos lembra Ricoeur, a confrontação de uma visão trágica (maniqueísta) e uma visão ética (dos padres da Igreja, para ser mais exato, bíblica) da existência, sintetizada assim por Agostinho: se há penitência, é que há culpabilidade; se há culpabilidade, é que há vontade; se há vontade no pecado, não é uma natureza que nos coage[6]. Portanto, para Agostinho – pelos menos o dos tratados anti-maniqueístas – o homem torna-se (ou deveria tornar-se) responsável por aquilo que faz. Intentando superar a dicotomia maniqueísta, afirmando assim a responsabilidade do homem diante de seus atos, retirando do mal toda a substancialidade, Agostinho viu-se diante de um outro problema: Pelágio - que afirmava, exacerbando o voluntarismo, que cada um peca por si. Tal embate carregava consigo inclusive o modo como cada um dos contendores interpretava a escritura sacra. Numa passagem de Romanos 5, enquanto Agostinho lia pecado em Adão, Pelágio lia pecar como Adão, já que para este por Deus ser justo não poderia querer nada de absurdo como punir um homem pelo pecado de um outro que lhe é radicalmente estranho. Em Pelágio vemos, num olhar apressado, os primórdios do que seria denominado pelo existencialismo sartreano da plena responsabilidade do homem. No entanto, quando observamos de um modo acurado a formulação sartreana – sem esquecer no entanto que Sartre já se situa num mundo secularizado – percebe-se algo genuinamente ‘agostiniano’[7], já que Sartre afirma que quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens[8]. Mas, a especificidade do pensamento de Agostinho (neste caso poderíamos afirmar sem receios de equívoco de seu sentimento) é de que a vontade não é tão decidida como poderia se supor. Nela reside uma luta que já não diz respeito ao bem ou ao mal. Uma dificuldade inerente ao ato de escolher, como o cativo que almejando libertar-se das cadeias que lhe prendem tivesse que deixar uma das mãos: abrir mão da mão que não poderá mais abrir[9]; ou como diria Agostinho no seu comentário aos Salmos: há que se estar embaixo da prensa para sair bom, como o azeite da oliva[10]. É em função disso que Agostinho formulará o conceito de pecado original, pois que ele foi

 

levado, pela própria experiência da conversão, pela experiência viva da resistência do desejo e do hábito à boa vontade, a recusar com todas as forças a idéia pelagiana de uma liberdade sem natureza adquirida, sem hábito, sem história e sem bagagens; que seria, em cada um de nós, um ponto singular e isolado de absoluta indeterminação da criação[11].

 

            Ricoeur afirma que apesar de antignóstico em sua intenção, o conceito de pecado original tornou-se por assim dizer gnóstico na medida em que se racionalizou[12]. No entanto, isso não deporia contra a tentativa agostiniana já que

 

Pelágio talvez tenha sempre razão contra a mitologia do pecado original e principalmente contra a mitologia adâmica, mas é Agostinho que sempre tem razão através e apesar dessa mitologia adâmica[13].

 

Contra o mal como natureza pressuposta pelos gnósticos (maniqueus), a vontade. Contra o exacerbo da volição defendida por Pelágio, a herança (adâmica) como também a graça:

 

A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma dá uma ordem a si mesma, e resiste! Ordena a alma à mão que se mova, e é tão grande a facilidade, que o mandato mal se distingue da execução. E a alma é alma, e a mão é corpo! A alma ordena que a alma queira; e sendo a mesma alma, não obedece. Donde nasce esse prodígio? Qual a razão? Repito: a alma ordena que queira – porque se não quisesse não mandaria – e não executa o que lhe manda![14]

 

Vemos assim que o corpo não resiste aos desígnios da alma, ao contrário, o corpo obedece à proposição anímica – neste sentido há como que uma harmonia entre corpo e alma. O corpo não resiste à alma. Num (de)grau acima não ocorre tal consonância: a alma resiste à alma. A alma se propõe algo. É ela mesma que se propõe, mas não se dispõe a realizar. Ela resiste a si mesma. Ela resiste. No entanto, tal resistência não advém de um não querer, pois ela quer. Portanto, tem-se assim duas possibilidades: ou a alma finge querer; ou ela se propõe algo a seguir, mas não consegue. No fingimento de querer há tão somente um querer fingir. E não é disso que Agostinho se ocupa, pelo menos diretamente (Não é difícil compreender o porquê de Agostinho ter precauções com o fingir: como a ontologia agostiniana pressupõe, ou melhor, se funde com o amor; teríamos assim, que tanto amar fingir, bem como, fingir amar colocaria em xeque o amor, como verdade, que ele quer resguardar para guardar-se nele. Poderíamos dizer que Agostinho visa atingir e ser (a) tingido pelo amor, pois este como Criador não pode ter sido fabulado, inventado – fingere; mas sim, alcançado, tocado - attingere). Assim, resta compreender o porquê da alma se propor seguir e não conseguir: a  alma quer, mas não pode (sozinha)[15]. Por incrível que possa parecer  o que está em jogo é a força[16] e só através dela poderemos compreender melhor aquela resistência, já que resistir aqui, repitamos, não diz respeito a um não querer fazer, mas sim querer e não poder. Assim, a resistência é um fazer, um realizar, um afirmar aquilo que foi trazido à existência. Pensemos numa mãe que propiciou a existência a um filho. Ela deverá alimentá-lo para torná-lo resistente, ou seja, alimentá-lo para que ele possa continuar existindo (resistindo), mais do que isso, ela deverá insistir para que ele resista. Mas, a alma ordena a si mesma e resiste! O exemplo de Agostinho parece não confirmar a noção de resistência que desenvolvemos na casuística da mãe. Só parece, já que o que Agostinho explicita só pode ser apreendido em toda sua profundidade se não nos esquecermos da presença do Pai. Lembremo-nos de que a passagem supracitada encontra-se no Livro VIII das Confissões que trata justamente da sua conversão, onde ainda não tinha encontrado o alimento que tanto procurava.  Num primeiro momento, a alma resiste, justamente, por ser ela mesma que ordena (a luta entre o querer e o ‘não querer’). No entanto, num segundo momento, e é isso que Agostinho quer demonstrar, a alma resistirá em realizar o bem que tanto almeja desde que se abra Àquele que é a fonte de todo bem, pois só Ele poderá alimentar uma alma faminta de amor: tudo posso naquele que me fortalece (superação do suposto antitetismo querer e não querer – diz-se aqui suposto, justamente pelo fato de que não existe negatividade no querer já que este é sempre afirmativo - para um querer e não poder que expressa, enfim, a fragilidade humana[17]). Assim poderá dizer no Do espírito e da letra, ainda em resposta aos pelagianos:

 

Eis aqui a consideração que não conduz à soberba, vício que levanta a cerviz quando o homem põe antes de tudo a confiança em suas próprias forças, constituindo-se a si mesmo em razão autônoma de sua vida. Neste extravio se aparta daquela fonte de vida em cujas águas se bebe a justiça, isto é, a vida santa, e daquela luz indefectível por cuja a participação se acende em certa medida a alma racional, para chegar a ser ela também, mesmo criada e finita, uma verdadeira luz[18].

 


 

[1] Trata-se de uma das imagens com que Levinás definia a morte para o sobrevivente. Cf. DERRIDA. Adeus a Emmanuel Levinás, p.21. São Paulo: ed. Perspectiva, 2004.

[2] AGOSTINHO. El maestro – de la naturaleza del bien (contra os maniqueos), p.995. Madrid: La editorial Católica (BAC – 21), 1947.

[3] RICOEUR. O conflito das interpretações – ensaios de hermenêutica, p.228. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: ed. Imago, 1978.

[4] ‘Nenhuma natureza (...) é má enquanto natureza, senão em quanto diminui nela o bem que possui’. AGOSTINHO. (1947), p.995.

[5] RICOEUR. (1978), p.230.

[6] cf. IDEM, p.231.

[7] Como nos assevera Gerd BORNHEIM ‘é quase um lugar comum dizer hoje que santo Agostinho é um pensador existencial’. Metafísica e Finitude, p.61. São Paulo: ed. Perspectiva, 2001.

[8] SARTRE. (1973), p.12.

[9] Como afirma Martin BUBER: “A alma enredada pelo torvelinho estonteante não pode perdurar nele. Ela se esforça por sair. Se não voltar a calma que leva à normalidade usual, há duas saídas para ela. Uma está sempre à sua disposição: pode agarrar-se a qualquer objeto que o turbilhão lhe mostra e descarregar nele sua paixão. Ou pode, por sugestão de algo ainda incompreensível a ela, iniciar a obra ousada da auto-unificação. (...) [Neste caso] se a obra não tiver êxito, o que não é de estranhar num empreendimento de tal envergadura, conseguiu ao menos pressentir o que é orientação, ou melhor, o que é a orientação – porque neste sentido estrito só existe uma. Portanto, na medida em que a alma se unifica, experimenta a orientação, sente-se como tendo recebido a missão de procurá-la. Estará a serviço do bem e pelo bem”. Imagens do bem e do mal, p.55.Trad. Edgar Orth. Petrópolis: ed. Vozes, 1992.

[10] cf. VAN DER MEER. San Agustin – pastor de almas, p.79. Barcelona: editorial Herder, 1965.

[11] RICOEUR. (1978), p.235.

[12] IDEM, p.236.

[13] IBIDEM, p.237.

[14] AGOSTINHO. Confissões, p.181. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 10a ed. Petrópolis: ed. Vozes, 1990.

 [15] Quanto a isso é assim que Agostinho descreve o seu estado antes da conversão: “Tão pesado é o fardo do hábito! Não quero estar onde posso, nem posso estar onde quero, de ambos os modos sou miserável”. AGOSTINHO. (1990), p.262. Ver também AGOSTINHO em Contra as duas epístolas dos pelagianos, p.469. Madrid: La editorial Católica, 1952: ‘Mas, esta vontade que é livre para o mal porque se deleita com os males, não é livre para o bem não foi libertada. Nem pode o homem querer bem algum, se não lhe ajuda aquele que não pode querer o mal, quer dizer, a graça de Deus por Jesus Cristo nosso Senhor’.

[16] Como afirma Max SCHELER: ‘o que determina os “conteúdos da vontade”, enquanto conteúdos representativos da intenção, os que lhes seleciona dentre a esfera do “possível” a priori (...) não é o prazer real nem o resultado da ação (como estima Kant), senão tão somente, e antes de tudo, a vivência do “poder-fazer” ou do “não-poder fazer” no dito caso, (quer dizer, do “poder” ou da impotência da vontade)’. Ética – nuevo ensayo de fundamentación de un personalismo ético,p.179. Buenos Aires: Revista de Occidente Argentina, 1948. 

[17] AGOSTINHO. (1949), p.767. (“Paradoxo do espírito finito: riqueza e plenitude com relação ao mundo exterior que ele compreende pelo saber, transfigura pela arte, transforma pela técnica; pobreza e carência com relação ao outro que ele encontra no reconhecimento e no amor e, de modo radical, com relação ao Outro absoluto do qual espera a palavra última sobre a sua origem e sobre o seu destino”. LIMA VAZ.  Antropologia Filosófica (I),pp.242-243. São Paulo: ed. Loyola, 1992.

[18] IDEM, p.693.



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