NOVELA DE TELEVISÃO:
LITERATURA? AS NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS
Leila Miccolis
Novela
de televisão não é literatura – é o jargão. Até mesmo os não defensores
do texto telenovelístico acham certo exagero designá-la como obra literária.
Preferem examiná-la do ponto de vista da dramaturgia, onde se sentem mais à
vontade e menos deslocados.
No
entanto, não adianta deslocar-lhe a vizinhança, porque o impasse continua:
dramaturgia não é literatura? Autor de teatro não é escritor?
Comecemos
a refletir sobre o assunto com um questionamento aplicando o método de eliminação:
não sendo obra literária o que vem a ser um texto televisivo?
Considerar
o texto de telenovela TN como um melodrama, não nos esclarece muito, até
porque, mesmo sendo uma manifestação artística que envolve melodia (trilhas,
sons e ruídos) e teatro, ele não se esgota nessas duas artes: a música e a
tragédia e/ou a comédia. E, para acrescentar dificuldades a esta definição,
melodrama também é termo grego, arte conhecida e mencionada por Aristóteles.
Na sua Poética, o filósofo grego perfila todas artes miméticas, “produzidas
por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em
conjunto” (Capítulo I).
Outra
“teoria” nada teórica é a que
apresenta o texto telenovelístico como sendo um roteiro, que, como a própria
terminologia sugere, seria uma indicação-guia, um relato pormenorizado de métodos,
indicação de situações, direção de caminhos, descrição, sugerindo,
assim, que pouco ou nada exista de literário nele.
Um
mínimo de conhecimento dos procedimentos de elaboração dos capítulos de uma
novela, porém, vai mostrar-nos que se há algum roteiro, ele está contido
apenas na sinopse, na qual estão delineados os rumos da trama; nela, realmente,
não há necessidade de preocupações estilísticas. Também no planejamento da
macro-estrutura de uma telenovela ou nas micro-estruturas dos capítulos existe
um trabalho de roteiro, de planejamento estrutural prévio. No entanto, um
panorama total do texto telenovelístico nos mostra que ele não pode ser
considerado um mero roteiro, tal como o Aurélio define:
6. Cin. Rád. Telev. Documento que contém o texto de filme cinematográfico, vídeo, programa de rádio, etc., ger. estruturado em seqüências e com indicações técnicas destinadas a orientar a direção e a produção da obra.[Cf., nesta acepç., script, storyboard e decupagem.]
Esse
tipo de uma definição é bastante confuso: um “script” não é feito
apenas para orientar a direção e a produção da obra; storyboard,
atualmente, é um croqui ilustrado da sinopse; e decupagem não é trabalho do
escritor, mas da produção técnica. Trata-se, portanto, de uma explicação
que confunde bem mais do que pretende esclarecer. Afirmar
que a TN é exclusivamente um roteiro, é tomar a parte pelo todo, pois que o
roteiro é uma dos elementos técnico-estrutural existente no texto telenovelístico,
termo portanto insuficiente para abranger todas as possibilidades que o
extrapolam.
Se
não é um mero roteiro, o que é essa escrita? Voltamos nesse instante ao ponto
principal, para tentar responder à pergunta proposta no início: o texto
telenovelístico é um tipo de dramaturgia, e, como tal, desde os ensinamentos
aristotélicos, seu cerne é literário. A seu modo, ela
cultiva a literatura e/ou a língua, através de técnicas de narrativas
literárias, e de uma ficção construída por personagens inventados.
Para
nós, texto novelístico-televisivo é literatura ficcional, escrita, no qual
narramos uma história, cujo conflito é desenvolvido e solucionado, ao final.
Neste esboço de definição, já encontramos alguns elementos interessantes: 1)
uma história com começo, meio e fim (voltamos à Poética aristotélica, e a
suas noções de história completa. contínua, una – unidade de tempo – e
verossimilhante). 2) Esta ficção utiliza-se de uma narrativa escrita, composta de
diálogo, técnicas narrativas e seres ficcionais, que envolve uma emissora
televisiva, 3) e é sempre muito antenada no público-alvo, ou seja, no receptor
ao qual se dirige.
A
novela de televisão é e não é literatura, embora muitos só enxerguem o que
ela não é, até por ser ironicamente mais fácil nomear as ausências, nesse
caso específico. Há autores que afirmam que a TN não é literatura, para logo
nas páginas subseqüentes, falar em ficção (cuja assimilação à mimese
deu-se com Käte Hamburger, em 1954, em seu livro “A lógica dos gêneros –
portanto território pertencente à ciência da literatura), e em arte
narrativa, como se toda a arte já não carregasse, como pressupostos, noções
conceituais de estilos e de técnicas (mesmo aparentando não utilizá-las).
Quando nos referimos ao não ser literatura a TN, reportamo-nos ao que ela contém
que ultrapassa a área literária, pois o texto telenovelístico conjuga vários
tipos de narrativas, constituindo-se em uma narrativa plural, um tipo de ficção
interativa. Porque ela incorpora procedimentos áudios-visuais, como o cinema, não
significa que não seja literária, pois lida com letras, com uma narrativa até
hoje muito baseada na poética aristotélica.
Se é literatura, por quê então o desprestígio do gênero? Podemos alinhar
diversas causas, sendo talvez a mais visível ser ela um fenômeno da cultura
popular, da cultura de massa, ainda muito mal-vista por setores mais
tradicionais da intelectualidade brasileira. Desde Walter Benjamin com sua
teoria da perda da aura, na sociedade pós-industrial, que a reprodutibilidade técnica
é quase sempre condenada, sendo
mais cômodo, na melhor das hipóteses, considerá-lo um “gênero menor” –
o que, de certa forma, continua corroborando com a teoria de que a TN é
literatura, porque não há como falar-se de gêneros sem aliá-los à teoria
literária. Há muito, porém, sabemos que “cultura” não é apenas a que
nos chega através dos livros; por mais que os reverenciemos, não podemos
fechar os olhos à arte praticada fora dos limites das páginas, sob pena de
sermos intransigentes, sectários e opacos, imunes às questões da
contemporaneidade.
Assim como a arte popular é mais valorizada por seus aspectos folclóricos ou
históricos (de preservação cultural) do que literários, a novela é tida,
ainda, preconceituosamente, como sub-gênero. E, no entanto, consegue a façanha
de ser a única manifestação de cultura popular patrocinada maciçamente pela
mídia.
Há ainda alguns defensores da teledramaturgia, que, de forma inepta,
tentam aproximá-la do texto novelístico do folhetim – o que parece
piorar a situação dela, pois o termo folhetim também já se cristalizou
abrangendo forte conotação pejorativa. Quase de imediato associamos o adjetivo
“folhetinesco” aos textos exacerbadamente românticos, piegas,
esquecendo-nos de suas origens: romances publicados em fragmentos através da
grande imprensa, muitos sem qualquer vestígio do movimento romântico. Para
citaremos apenas um exemplo, na década
de 20 o mensário transatlântico parisiense Transicionpor publicou um folhetim
intitulado Work in Progress, em capítulos.
Dezesseis anos depois, o mesmo (com algumas mudanças e ampliações) ressurgiu
como Finnegans Wake, no início dos anos 40 (embora seja inintraduzível, o título
em português da obra joyceana, tradução dos poetas e irmãos Campos, é
Finícius Revém). Tão importante foi este folhetim de Joyce, que work
in progress acabou por abranger todo um tipo de obra em aberto, na qual o
texto telenovelístico se enquadra, pelo menos até certo ponto.
Nos dias atuais, as obras em aberto propõem grandes questionamentos, por
constituírem-se em textos que instigam um saudável debate do próprio conceito
de literatura, nessa nossa era tecnológica do “presente eletrificado”, no
dizer do poeta Wally Salomão. Ignorar ou menosprezar essa manifestação,
insistimos, ou renegá-la enquanto literatura, é simplesmente desprezar um
importante dado que existe, independente de qualquer critério valorativo que se
possa ter para mensurá-la, fugindo de algumas questões teóricas bastante
interessantes.
Se
não é um folhetim, no sentido de suas origens, pois não é um texto para ser
divulgado em jornais, também não é um romance, cujo autor se segrega e se
isola – na acepção de Walter Benjamin.Trata-se de uma obra aberta, de um work
in progress, porque muitas tramas paralelas podem ser alteradas durante a
elaboração do texto, devido a várias causas, sendo, uma delas, a própria
opinião pública, em um exercício coletivo – mesmo remoto – de co-autoria.
A
partir dessas ilações parece-nos que se tornam visíveis as possibilidades do
exame do texto teledramatúrgico dentro de uma Faculdade de Letras. Tal
questionamento dá-se em três âmbitos distintos, mas de alguma forma
interligados:
1) na descoberta dos elementos da literalidade deste texto composto de diversos
tipos de narrativas que coexistem simultaneamente: a escrita, a áudio-visual, a
dramática (nela compreendendo-se o drama e a comédia). Esta literalidade está
contida na unidade da ação aristotélica, nas elipses, nas fusões, no tipo de
narração mais adequado à determinadas ações, nas passagens de tempo, nos
subtextos de determinadas cenas, na fragmentação narrativa, e até mesmo nas
imagens metafóricas empregadas, pois, segundo Aristóteles, em sua Poética:
17. (...) pois, descobrir metáforas apropriadas equivale a ser capaz de
perceber as relações. (Cap. XXII)
Muito da elaboração de suas técnicas narrativas repousa em teorias literárias
de famosos estruturalistas, como a decupagem dos trinta elementos fixos da fábula
– ou funções –, baseados na
“Morfologia do conto folclórico”, de Vladimir Propp (1928); ou nas
estruturas de Tzvetan Todorov que procura chegar a uma análise “gramatical”
na qual as personagens são vistas como substantivos, seus atributos como
adjetivos e suas ações como verbos; ou, ainda, no conceito de actante, de
Greimas, que enumera seis actantes da unidade estrutural: Sujeito e Objeto,
Emissor e Receptor, Ajudante e Adversário.
2)
A segunda área a que o texto lítero-teledramatúrgico nos conduz, na prática,
diz respeito a algumas questões da pós-modernidade, em especial à singular
teoria de Michel Maffesoli, sobre a questão do lugar como elo de ligação das
“tribos” pós-modernas, sendo, este lugar, por mais incrível que pareça, a
literatura – que aproxima diversas classes sociais, via novelas, mesmo que
através de textos pouco criativos ou mesmo desinteressantes; é o texto literário
que une referencialmente, através da afeição e do compartilhamento de emoções,
milhares de pessoas, tão diferentes, mas enlaçadas pelas ondas magnéticas (e
muitas vezes hipnotizantes) dessa narrativa, deste sítio, onde tantos partilham
a mesma história, dividindo suas afinidades, expectativas, ansiedades, inquietações,
tristezas e alegrias com os demais. É o texto-televisivo que proporciona, maciçamente,
esse estar-junto, e, cada vez mais, “informa sobre a maneira como deve se comportar aqui e agora, como
viver e como agir” (Michel Maffesoli, in Notas sobre a pós-modernidade – O
lugar faz o elo, Atlântica editora, RJ, 2004).
No “local” do texto
literário, há um corpo comum vivido articuladamente, corpo este constituído
pelo “conjunto de referências que
compartilho com terceiros”. Esta “ligância”,
no dizer que Maffesoli, esta interpessoalidade, ligando uma pessoa a outras, é
proporcionada pelo texto novelístico-televisivo, configurando-se no típico “espaço
em que circulam as emoções, os afetos e os símbolos, o espaço em que se
inscreve a memória coletiva, o espaço, enfim, em que se inscreve a memória
coletiva, através da teatralidade urbana” (In
obra acima citada). No texto teledramatúrgico novelístico
fica muito visível, o tempo todo, esse sítio vivenciado pelo outro, até
pela possibilidade de mudar os destinos de certos personagens, interagindo e
articulando-se com a proposta estética apresentada.
A terceira trilha diz respeito ao tipo de drama que o texto da TN desenvolve.
Emil Staiger, filósofo heideggeriano, afirma em seu livro: “Considerações
fundamentais da Poética”, que, dentro do trágico, há duas modalidades de
estilo de tensão: o patético e o problemático. Ambos conduzem a ação para
adiante, mas, enquanto o pathos quer,
o problema pergunta. Nas tragédias gregas, ou clássicas, existe a união do pathos
do herói com o problema/problematização. No entanto, cada vez mais na
modernidade, há uma separação entre ambos: enquanto a ópera italiana tende
mais ao pathos, o drama de Ibsen
concentra-se no problema. O texto telenovelístico de nossa era pode ser
considerado o grande divulgador do drama problemático, que pergunta e que deixa
a resposta em suspenso para o próximo capítulo, quando torna a formular novas
perguntas, criando expectativas através delas, e prometendo respondê-las em
seguida – em um sucessivo abrir de portas, até o momento final.
Frisando
a diferença entre a tragédia clássica e a moderna, Heggel já observava que
os personagens da tragédia antiga, “verdadeiras
estátuas vivas, são isentos de conflitos íntimos. Estão eles informados pela
consciência de sua vontade e por suas altas paixões, direitos, razões ou
interesses pessoais. Eles fazem sempre a reivindicação moral de um direito
relativo a um fato determinado. Ao contrário, a tragédia moderna apropria-se,
desde seu começo, do princípio da personalidade ou da subjetividade. Por
conseguinte, o personagem moderno, contrariamente ao herói trágico, enfrenta
conflitos que dependem, mais que qualquer outra coisa de seu caráter” (Profª
Drª Renata Pallottini).
A teatralidade contida no texto televisivo é causa e efeito da teatralidade
cotidiana, do jogo de máscaras diário do theatrum
mundi. Como lembra Mafessoli, em sua
obra “A parte do diabo”, entre o arquétipo
e o estereótipo há apenas um passo, que pode ser dado com facilidade”.
Que outro texto literário é capaz de trazer ao debate o questionamento desses
limites, refletindo sobre esse passo tênue que vai do inconsciente aos estereótipos
sociais manipuladores e coarctativos?
De
modo paradoxal, o texto telenovelístico acentua o
sentimento trágico-lúdico (para usarmos a terminologia de Maffesoli),
expondo a nu a tensão entre suas próprias contradições: enquanto
inconsciente coletivo retorna com força à vida cotidiana; enquanto transmissor
de clichês, pode inserir-se na poética da banalidade que traz um tipo de
subversão específica, propiciando o rir-se dos chavões que veicula, mesmo que
a grande maioria não se dê conta desse componente subversor, ou melhor,
subvertedor. Inequivocamente o texto telenovelístico é um dos mais emblemáticos
“altares” em que a banalidade cotidiana é celebrada; no entanto, trata-se
de uma banalidade importante, sede de encontros ideológicos e afetivos, espaço
alquímico de sociabilidade. Tentar afastar os preconceitos e estudar o texto
teledramatúrgico com mais respeito é debruçarmos em diversas questões que
nenhum outro “local literário” nos proporciona.
No entanto, se nenhum desses ângulos até então citados tiver sido válido
para uma mudança de atitude com relação ao texto teledramatúrgico novelístico,
que o derradeiro, da Profª Drª e poeta Renata Pallotini possa ecoar, e surtir
o efeito por nós pretendido: “Mesmo
quando se restringe a um roteiro de ações, quando emerge da encenação,
quando é uma adaptação de um texto pré-existente, quando foi feito para não
ser ouvido, um texto é um texto, e resiste como tal. Como tal, portanto, tem até
o direito de ser estudado”.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. Arte Poética. TELLES JÚNIOR, Godofredo, estudo introdutório. Rio de Janeiro: Ediouro, s/ data.
MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade - O lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004.
______________.
A parte do diabo – Resumo da subversão pós-moderna. Rio de Janeiro: Record,
2004.
STALLONI, YVES. Os gêneros literários. NASCIMENTO, Flávia, tradução e notas. Rio de Janeiro: Difel, 2003.
CALZA, Rose. O que é telenovela. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
PALLOTINI, Renata. O que é dramaturgia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.