PELAS VEREDAS DO GRANDE
SERTÃO –
PERGUNTAS E OLHARES DE
RIOBALDO
Mestrando
em Literatura Brasileira – UFRJ
Sábio
é o que adivinha.
(Manoel de Barros, Livro
sobre Nada)
O presente texto constitui parte de minha
pesquisa de dissertação de mestrado acerca do travejamento narrativo do Grande
Sertão: Veredas, matriz indubitável do moderno romance brasileiro e
obra-prima de João Guimarães Rosa. O objetivo desta explanação é
explicitar, interpretar e debater a multiperspectiva narrativa decorrente das inúmeras
indagações e reflexões que caracterizam a complexidade estrutural de Riobaldo,
narrador-protagonista do enredo.
Como um rio em transe, revolto e liberto, capaz de unir em suas águas a
dinâmica caótica de um mundo diabolicamente dividido em margens antagônicas,
o mundo do bem e do mal, de Deus e do Diabo, Riobaldo emerge como portador da
energia poética que move todo ser: a corrente contínua da essência da ação:
a poiesis. A turbulência discursiva de Riobaldo é motivada, sobretudo,
pelas lembranças recorrentes dos duros e sofridos tempos de jagunço. Nas memórias
do então fazendeiro Riobaldo, inúmeras dúvidas existências ainda perfazem
imperiosa morada. Nas veredas do Grande Sertão, Riobaldo é lançado
numa busca vertiginosa pelo sentido da Vida e dos seus próprios atos (motivado,
sobretudo, pelo pacto travado com o Diabo quando pelejara contra o grupo do
rival Hermógenes).
Por meio de um profundo e conturbado processo especulativo de apreensão
da realidade, o jagunço transforma continuamente a antiga visão de si; isto é,
a visão de seu mundo interior e essencial e, conseqüentemente, a visão de seu
Mundo exterior e existencial. Há um mundo riobaldiano, portanto. O Grande
Sertão, incessantemente transmutado e revisto, passa a ser concebido
e assimilado sob o primado da linguagem puramente poética. Surge e emerge, então,
um cenário original e enigmático, um mundo sem margens dicotômicas ou dibólicas,
o mundo nascente e infinito que flui pela eterna travessia da “terceira margem
do rio” – mistério indecifrável aos olhos demasiadamente ou meramente
humanos.
À luz do estudo de Eduardo Coutinho, Em busca da terceira margem,
torna-se imprescindível salientar que “Riobaldo, ao contrário dos seus
companheiros, é um indivíduo que reflete, que está tecendo indagações e é
precisamente esta qualidade que lhe confere individualidade e responde por sua
transcendência do tipo jagunço”.1
Quanto mais indaga, mais Riobaldo quer saber, quanto mais sabe, mais põe em dúvida
o finito e limitado significado, dos objetos, sentidos e ações mundanas.
Verifica-se a seguir uma passagem do Grande Sertão que exemplifica com exatidão
tal afirmativa. Ouçamos Riobaldo: “Deveras? É e não é. O senhor ache e não
ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é
muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos. Sei
desses”. (GS:V, p. 11)
Riobaldo, sob este prisma, caracteriza-se como um indivíduo em constante
e radical transmutação. Um Ser que já não é o que fora outrora, que
pensa o que jamais imaginara pensar, tal qual a dinâmica mutante do novo
conceito de realidade que agora sente, apreende e incorpora. Riobaldo
apresenta-se em travessia existencial do Caos originário (No-nada; isto
é, a nadificação total do real canônico e condição essencial para o rito
de iniciação das novas possibilidades de ver e se ver (n)o mundo) para o Cosmos
totalizante (o próprio Grande Sertão; ou seja, via linguagem sensível,
via poesia, Riobaldo gesta o seu nascimento antropogônico e a criação mito-poética
de um novo mundo, a qual denominamos cosmogonia).
Em ensaio primoroso dedicado ao Grande Sertão: Veredas,
intitulado O homem provisório no Grande Ser-tão, Manuel de Castro
discorre acerca da obra roseana entendendo-a como forma de criação pura e
genuinamente poética. Observa o teórico: “O relacionamento com o Real se
concretiza na pergunta, a qual supõe um saber e um não saber”.2
Dono de natureza variável, de homens, sensações, formas e objetos provisórios
e mutáveis, portanto, o Real já não se apresenta sob única face normativa e
opressora, já não é mais o que fora, seria, queria ou supunha. O Real é a
forma modelada pelo questionamento maior. Para cada interpretação há, pelo
caleidoscópio movente da argumentação infinita, uma nova configuração de
ser, um novo mundo em gestação, um novo diálogo entre o humano e a terra.
Desmontam-se as verdades preconcebidas, posto que há, sempre, uma indagação
que move a primeira questão a âmbitos inimagináveis; enfim, pára cada questão
há uma outra, relativa, complementar e profundamente pessoal.
O sertão riobaldiano é, por este prisma, a pergunta de eterno mover da
trama do Grande Sertão. Riobaldo é o Ser-tão poético que agora indaga
à linguagem silenciosa e pulsante, como a fonte originária de um rio, pelo seu
Ser maior e universal. Riobaldo quer se conhecer para entender a si e a seu
mundo e, não apenas isto, cria o jagunço, alçado à condição de
narrador-protagonista, uma nova língua de conhecimento que germina seu novo
mundo-morada: o Grande Sertão. No clássico, ouvem-se as palavras do
narrador que, pouco a pouco, tecem a complexidade e a universalidade da região
do sertão: “O Sertão é o sozinho... O Sertão é dentro da gente... O Sertão
é do tamanho do mundo”.(GS:V, p. 292-93)
Por meio de um monólogo/diálogo, empreendido durante longa conversa com
um homem chamado tão-somente de “Senhor”, apreendemos do interlocutor sutis
características, gestos, atos e sugestões de possíveis comentários, sempre e
imediatamente filtrados pela percepção imagético-narrativa do vaqueiro
Riobaldo. A vivacidade da expressão oral do narrador, somada à longa experiência
de vida e às freqüentes indagações existenciais, levam-nos a afirmar que
Riobaldo fala consigo mesmo. Riobaldo comporta-se, portanto, como um poeta, ou
melhor, como um sábio poeta que ausculta a linguagem poética, deixando falar
sua desconhecida natureza anímica junto à grande Natureza latente que emerge
das terras do Grande Sertão.
Não esqueçamos, além disso, da questão-travessia de Riobaldo que
motivou todo o percurso da narrativa: “O que é o Diabo?” Logo no início da
obra de Guimarães Rosa, deparamo-nos com um trecho merecedor de maior reflexão:
“Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno –
tem ordem de seguir caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está
misturado em tudo.” (GS:V, p. 16) O subtítulo do Grande Sertão
reforça esta intervenção: “O diabo no meio da rua, no meio de
redemoinho”. Incrusta-se, portanto, a figura diabólica em tudo e em todos,
presente e fincada no meio da Natureza da Terra; isto é, aos olhos de Riobaldo,
o Diabo ordena, gera e regenera a Vida dos “homens humanos” e diabólicos,
dos “homens aos avessos”.
A narrativa do Grande Sertão: Veredas assume em seu percurso a
tentativa de transmutar o homem humano diabólico em um homem profundamente
intimizado com o natural e livre para reger sua própria existência; isto é,
um homem que não seja pactário com nada nem ninguém, que viva plenamente num
mundo construído por sua perspectiva, vivência e experiência e não pela visão
induzida por outrem. Deste modo, por meio de sérias indagações, Riobaldo
vislumbra e projeta o homem enquanto um rio que segue seu fluxo, às vezes manso
às vezes turbulento, unindo mundos contrários e opostos sem limitar-se à
restrição de suas margens díspares.
A tradição dicotômica do pensamento ocidental-europeu, a partir do
advento da filosofia platônica, moldou nossa forma de pensar à busca constante
pela di-visão em duplos antagônicos: bem e mal, alma e corpo, céu e trevas,
Deus e Diabo, etc. A estrutura racional e científica de análise e mensuração
transforma o pensamento e a vida humanos, ser que naturalmente é e conjuga
todas as possibilidades do existir e do não-existir; enfim, conforma todas as
forças dessemelhantes em um homem meramente humano. O homem limitado e restrito
à uma face, muitas vezes normativa e ideal, contrária à caótica complexidade
da poética face complementar, vê-se silenciado e aprisionado numa pungente
esquizofrenia. Este homem, sim, é o ser diabólico, este é o “homem dos
avessos” e certamente estará, mas não escolherá, pois não possui liberdade
para tanto, o lado do rio no qual lutará e pactuará em nome do bem ou do mal,
de Deus ou do Diabo. Matará e morrerá em nome deles e não de sua vontade ou
desejo, visto que padece da subordinação ao mundo opressor e pragmático já
criado pela tradição racional.
A travessia de Riobaldo é permanente, não diverge nem compactua, em vista da compreensão poética de que tudo é vida, limites ou restrições. Como dizia o pensador originário da poesia Heráclito: “Tudo é um”. Assim, escutemos as sábias palavras de Riobaldo logo ao cabo do Grande Sertão, como início de nossa lição pela vida, aprendizado maior que nunca cessa: “...Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspeto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É que digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia.” (GS:V, p. 568)
1 COUTINHO, 1993, p. 89.
2
CASTRO, 1976, p. 23.
BIBLIOGRAFIA:
BARROS,
Manoel de. Livro sobre nada. Record: Rio de Janeiro, 2004.
COUTINHO,
Eduardo F. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande Sertão:
Veredas. Fundação casa de Jorge Amado: Salvador, 1993.
CASTRO,
Manuel Antonio de. O homem provisório no Grande Ser-tão. Tempo
Brasileiro: Rio de Janeiro, 1976.
ROSA,
João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. José Olympio: Rio de
Janeiro, 1976.