PELAS VEREDAS DO GRANDE SERTÃO –

PERGUNTAS E OLHARES DE RIOBALDO

 

Francesco Jordani Rodrigues

Mestrando em Literatura Brasileira – UFRJ

 

Sábio é o que adivinha.

(Manoel de Barros, Livro sobre Nada)

 

         O presente texto constitui parte de minha pesquisa de dissertação de mestrado acerca do travejamento narrativo do Grande Sertão: Veredas, matriz indubitável do moderno romance brasileiro e obra-prima de João Guimarães Rosa. O objetivo desta explanação é explicitar, interpretar e debater a multiperspectiva narrativa decorrente das inúmeras indagações e reflexões que caracterizam a complexidade estrutural de Riobaldo, narrador-protagonista do enredo.

            Como um rio em transe, revolto e liberto, capaz de unir em suas águas a dinâmica caótica de um mundo diabolicamente dividido em margens antagônicas, o mundo do bem e do mal, de Deus e do Diabo, Riobaldo emerge como portador da energia poética que move todo ser: a corrente contínua da essência da ação: a poiesis. A turbulência discursiva de Riobaldo é motivada, sobretudo, pelas lembranças recorrentes dos duros e sofridos tempos de jagunço. Nas memórias do então fazendeiro Riobaldo, inúmeras dúvidas existências ainda perfazem imperiosa morada. Nas veredas do Grande Sertão, Riobaldo é lançado numa busca vertiginosa pelo sentido da Vida e dos seus próprios atos (motivado, sobretudo, pelo pacto travado com o Diabo quando pelejara contra o grupo do rival Hermógenes).

            Por meio de um profundo e conturbado processo especulativo de apreensão da realidade, o jagunço transforma continuamente a antiga visão de si; isto é, a visão de seu mundo interior e essencial e, conseqüentemente, a visão de seu Mundo exterior e existencial. Há um mundo riobaldiano, portanto. O Grande Sertão, incessantemente transmutado e revisto, passa a ser concebido e assimilado sob o primado da linguagem puramente poética. Surge e emerge, então, um cenário original e enigmático, um mundo sem margens dicotômicas ou dibólicas, o mundo nascente e infinito que flui pela eterna travessia da “terceira margem do rio” – mistério indecifrável aos olhos demasiadamente ou meramente humanos.

            À luz do estudo de Eduardo Coutinho, Em busca da terceira margem, torna-se imprescindível salientar que “Riobaldo, ao contrário dos seus companheiros, é um indivíduo que reflete, que está tecendo indagações e é precisamente esta qualidade que lhe confere individualidade e responde por sua transcendência do tipo jagunço”.1 Quanto mais indaga, mais Riobaldo quer saber, quanto mais sabe, mais põe em dúvida o finito e limitado significado, dos objetos, sentidos e ações mundanas. Verifica-se a seguir uma passagem do Grande Sertão que exemplifica com exatidão tal afirmativa. Ouçamos Riobaldo: “Deveras? É e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos. Sei desses”. (GS:V, p. 11)

            Riobaldo, sob este prisma, caracteriza-se como um indivíduo em constante e radical transmutação. Um Ser que já não é o que fora outrora, que pensa o que jamais imaginara pensar, tal qual a dinâmica mutante do novo conceito de realidade que agora sente, apreende e incorpora. Riobaldo apresenta-se em travessia existencial do Caos originário (No-nada; isto é, a nadificação total do real canônico e condição essencial para o rito de iniciação das novas possibilidades de ver e se ver (n)o mundo) para o Cosmos totalizante (o próprio Grande Sertão; ou seja, via linguagem sensível, via poesia, Riobaldo gesta o seu nascimento antropogônico e a criação mito-poética de um novo mundo, a qual denominamos cosmogonia).

            Em ensaio primoroso dedicado ao Grande Sertão: Veredas, intitulado O homem provisório no Grande Ser-tão, Manuel de Castro discorre acerca da obra roseana entendendo-a como forma de criação pura e genuinamente poética. Observa o teórico: “O relacionamento com o Real se concretiza na pergunta, a qual supõe um saber e um não saber”.2 Dono de natureza variável, de homens, sensações, formas e objetos provisórios e mutáveis, portanto, o Real já não se apresenta sob única face normativa e opressora, já não é mais o que fora, seria, queria ou supunha. O Real é a forma modelada pelo questionamento maior. Para cada interpretação há, pelo caleidoscópio movente da argumentação infinita, uma nova configuração de ser, um novo mundo em gestação, um novo diálogo entre o humano e a terra. Desmontam-se as verdades preconcebidas, posto que há, sempre, uma indagação que move a primeira questão a âmbitos inimagináveis; enfim, pára cada questão há uma outra, relativa, complementar e profundamente pessoal.

               O sertão riobaldiano é, por este prisma, a pergunta de eterno mover da trama do Grande Sertão. Riobaldo é o Ser-tão poético que agora indaga à linguagem silenciosa e pulsante, como a fonte originária de um rio, pelo seu Ser maior e universal. Riobaldo quer se conhecer para entender a si e a seu mundo e, não apenas isto, cria o jagunço, alçado à condição de narrador-protagonista, uma nova língua de conhecimento que germina seu novo mundo-morada: o Grande Sertão. No clássico, ouvem-se as palavras do narrador que, pouco a pouco, tecem a complexidade e a universalidade da região do sertão: “O Sertão é o sozinho... O Sertão é dentro da gente... O Sertão é do tamanho do mundo”.(GS:V, p. 292-93)

            Por meio de um monólogo/diálogo, empreendido durante longa conversa com um homem chamado tão-somente de “Senhor”, apreendemos do interlocutor sutis características, gestos, atos e sugestões de possíveis comentários, sempre e imediatamente filtrados pela percepção imagético-narrativa do vaqueiro Riobaldo. A vivacidade da expressão oral do narrador, somada à longa experiência de vida e às freqüentes indagações existenciais, levam-nos a afirmar que Riobaldo fala consigo mesmo. Riobaldo comporta-se, portanto, como um poeta, ou melhor, como um sábio poeta que ausculta a linguagem poética, deixando falar sua desconhecida natureza anímica junto à grande Natureza latente que emerge das terras do Grande Sertão.  

            Não esqueçamos, além disso, da questão-travessia de Riobaldo que motivou todo o percurso da narrativa: “O que é o Diabo?” Logo no início da obra de Guimarães Rosa, deparamo-nos com um trecho merecedor de maior reflexão: “Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.” (GS:V, p. 16) O subtítulo do Grande Sertão reforça esta intervenção: “O diabo no meio da rua, no meio de redemoinho”. Incrusta-se, portanto, a figura diabólica em tudo e em todos, presente e fincada no meio da Natureza da Terra; isto é, aos olhos de Riobaldo, o Diabo ordena, gera e regenera a Vida dos “homens humanos” e diabólicos, dos “homens aos avessos”.

            A narrativa do Grande Sertão: Veredas assume em seu percurso a tentativa de transmutar o homem humano diabólico em um homem profundamente intimizado com o natural e livre para reger sua própria existência; isto é, um homem que não seja pactário com nada nem ninguém, que viva plenamente num mundo construído por sua perspectiva, vivência e experiência e não pela visão induzida por outrem. Deste modo, por meio de sérias indagações, Riobaldo vislumbra e projeta o homem enquanto um rio que segue seu fluxo, às vezes manso às vezes turbulento, unindo mundos contrários e opostos sem limitar-se à restrição de suas margens díspares.

            A tradição dicotômica do pensamento ocidental-europeu, a partir do advento da filosofia platônica, moldou nossa forma de pensar à busca constante pela di-visão em duplos antagônicos: bem e mal, alma e corpo, céu e trevas, Deus e Diabo, etc. A estrutura racional e científica de análise e mensuração transforma o pensamento e a vida humanos, ser que naturalmente é e conjuga todas as possibilidades do existir e do não-existir; enfim, conforma todas as forças dessemelhantes em um homem meramente humano. O homem limitado e restrito à uma face, muitas vezes normativa e ideal, contrária à caótica complexidade da poética face complementar, vê-se silenciado e aprisionado numa pungente esquizofrenia. Este homem, sim, é o ser diabólico, este é o “homem dos avessos” e certamente estará, mas não escolherá, pois não possui liberdade para tanto, o lado do rio no qual lutará e pactuará em nome do bem ou do mal, de Deus ou do Diabo. Matará e morrerá em nome deles e não de sua vontade ou desejo, visto que padece da subordinação ao mundo opressor e pragmático já criado pela tradição racional.

A travessia de Riobaldo é permanente, não diverge nem compactua, em vista da compreensão poética de que tudo é vida, limites ou restrições. Como dizia o pensador originário da poesia Heráclito: “Tudo é um”. Assim, escutemos as sábias palavras de Riobaldo logo ao cabo do Grande Sertão, como início de nossa lição pela vida, aprendizado maior que nunca cessa: “...Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspeto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É  que digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia.” (GS:V, p. 568)                 

 

1 COUTINHO, 1993, p. 89.

2 CASTRO, 1976, p. 23. 

 

 

BIBLIOGRAFIA: 

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Record: Rio de Janeiro, 2004. 

COUTINHO, Eduardo F. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande Sertão: Veredas. Fundação casa de Jorge Amado: Salvador, 1993. 

CASTRO, Manuel Antonio de. O homem provisório no Grande Ser-tão. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1976. 

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. José Olympio: Rio de Janeiro, 1976. 



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