Uma Ótica Feminina na Literatura Pós-Moderna Brasileira 

                                                            

A voz do dono e o dono da voz. Chico Buarque

Até quem sabe a voz do dono gostava do dono da voz

O dono andava com outras doses, a voz era de um dono só

Porém a voz ficou cansada após cem anos fazendo a santa

Sonhou se desatar de tantos nós nas cordas de outra garganta

A voz foi infiel trocando de traquéia

E o dono foi perdendo a voz.

 

 

                  Os versos de Chico Buarque de certo modo esclarecem a maneira pela qual me aproximei desta pesquisa que se dedica aos impasses da literatura de autoria feminina dos anos 90 até o início do novo século e que propõe avaliar a provável superação dos “medos de falar” de mulheres de décadas passadas, que se descobriram objetos fixos no discurso do outro, porque eram proibidas de serem sujeitos de seus próprios discursos. A lei que hoje impera parece ser a mais coerente das respostas: após tanto tempo de exílio, a anistia, uma contundente “audácia no dizer”[1].

                  Foi-se o tempo em que o não-dito ficava pelo dito. O não-dito explicitamente não implica silêncio – ausência de código – mas sim calar – não formulação de    mensagem – , pois o calar é ainda uma forma – implícita – de dizer.[2] O silêncio, ou melhor, o calar foi, por muito tempo, o relato de muitas mulheres, não só brasileiras, que a ideologia patriarcal exigia secundarizadas, oprimidas e  violentadas no seu corpo, na sua inteligência, na sua dignidade. O silêncio deixa de ser, portanto, um campo neutro para tornar-se linguagem. E a Mulher aportou assim na década de 60: com uma história mais de uma vez milenar de subserviência.

                  Os anos 60 foram decisivos, não só para a revolução feminista, mas para todo um contexto histórico mundial. 60 foi a década de rebeldia, de crescimento econômico, do incrível avanço tecnológico, de contestação e repressão política, mas também de “imaginar todas as pessoas vivendo pelo hoje”[3]. A década de 60 assinalou o apogeu da bandeira comunista com a figura lendária de Ernesto “Che” Guevara e do ditador cubano Fidel Castro, enquanto, no Brasil, o regime militar prosperava e, que apesar da oposição dos partidos de esquerda  e do movimento estudantil, culminou com a imposição do AI-5, em 1968.

                  Os anos seguintes viveram o auge da ditadura militar brasileira instaurada com o golpe de 64, enquanto o povo andava “falando de lado e olhando pro chão”[4]. A década de 70 foi a era do “Brasil Grande”, do “milagre econômico” que pretendiam passar a ilusória imagem do governo empreendedor e que, com uma propaganda ideológica de progresso e de patriotismo carregado de um verde-amarelo desbotado insistia no já mais que batido slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Na primeira metade desta década, a institucionalização da censura, a tortura aos presos políticos, a repressão e o clima de terror, impostos pelo Estado ditadorial em nome da “Segurança Nacional e do combate à subversão comunista”, desagregaram os movimentos sociais. Contudo, a partir da segunda metade, se começa a assistir à crise da ditadura: as ruas dos anos 70 foram tomadas por passeatas de protesto realizadas pelos movimentos estudantis – época em que a UNE respondia pelos    estudantes -, pelos movimentos operários, e, claro, pelos movimentos de mulheres, todos expressando uma luta sócio-ideológica, reivindicando abertura e anistia política.  70 foi também época do fim da opressão colonial portuguesa em África e da Revolução dos Cravos em Portugal, lutas ofuscadas pela Guerra do Vietnã dominada pelo governo  totalizador dos EUA.

                  Se os anos 60 foram marcados no mundo todo por uma grande efervescência política, social, cultural e ideológica, na qual a rebeldia contra os valores existentes e o engajamento na revolução socialista foram as grandes causas de uma geração voltada para o social, a década de 70 apresentou um painel de acontecimentos de diversos recortes, que foram de golpes a revoluções. E tudo isto vai ecoar numa das décadas mais importantes da História recente do País e do Mundo. Os anos que se seguiram  abrigaram as “Diretas Já”, movimento de um povo que, de volta às praças depois de quinze anos de silêncio forçado ou de calar(-se), procurava recuperar seus espaços. E estes anos culminaram, nada mais nada menos, com a Queda do Muro de Berlim e com a vitória eleitoral do mais corrupto dos nossos presidentes, que sofreu devidamente o impeachment já no início da década de 90. 

                  A conscientização do impacto produzido pela revolução cultural incluía a subversão de costumes, de modos de pensar e de ver o mundo da modernidade, cujos valores em decadência abriram espaço para o que, hoje, podemos denominar pós-modernismo. Os movimentos de mulheres assumiram a retórica da ruptura, corroendo os fundamentos ideológicos que haviam modelado o paradigma do Ocidente.

                  Antes disso, porém, a posição da mulher, ou da mãe, nas décadas revolucionárias[5], era privilegiada junto ao grupo familiar. Receptadora de discursos provenientes da esfera pública e produtora de discursos próprios, é ela a responsável pelos processos de transmissão da língua e dos valores sociais. A figura feminina era e de certa forma ainda é, portanto, a intermediadora dos discursos desde os aspectos mais íntimos da vida pessoal até a dimensão mais coletiva da vida social. Em outras palavras, cabia e, de um certo modo, ainda cabe à mulher o espaço de mediação entre a família e as outras instituições sociais, entre o mundo público e o privado[6]. E, claro está, que todas essas transformações tiveram sua repercussão também na literatura.

                  O romance A asa esquerda do anjo, de Lya Luft, foi publicado em 1981 e é, portanto, uma narrativa que faz eco aos anos rebeldes e que conta a trajetória da narradora-protagonista em busca de sua identidade. Gisela é uma mulher partida, fragmentada e dividida entre pólos antagônicos: o padrão vigente e a ânsia por liberdade, o paradigma falocêntrico e o desejo de se livrar de um jogo mentiroso do silêncio, ou melhor,  do calar, porque Gisela percebeu que sua “família era apenas um nome, baile de máscaras, talvez sobretudo uma aflição. Pois esta massa com tantas cabeças, olhos e bocas e nomes, predestinada a juntar-se paulatinamente no Jazigo, fragmentou-se em estilhaços.” (AEA, p. 67)
 

                  Gisela perpassa toda a narrativa açoitada pelo sentimento de culpa, aquela necessidade de dar satisfação à sua própria consciência e a toda uma sociedade de ideologia patriarcal representada, no romance, pela prepotente avó Frau Wolf, mulher poderosa e ditadorial de origem germânica. É válido lembrar que a Alemanha figura na sociedade do conhecimento como um  país de poderio econômico, político, cultural e bélico, quase no mesmo nível de importância, enquanto imagem mundial, que os EUA, já que ambos são sociedades consideradas de Primeiro Mundo. E é esta a representante de um país dito desenvolvido, a matriarca da família, que atua como agente educador, responsável pela transmissão dos valores patriarcais, simbolizando, assim, a ideologia do opressor e a repressão castradora exercida pela família tradicional. Assim,  a voz da narradora ainda nos relata, quando, finalmente, consegue desfazer-se da sua culpa simbolizada, surrealisticamente, no romance, por um enorme verme que lhe rói as entranhas.

 

“Criei coragem, estou me libertando: boca ferida, maxilares travados, nem querendo poderia voltar atrás, como num parto: a mulher não pode recolher o filho, fechar o corpo, acabou-se a encenação.”(AEA, p.107)

 

 

                  Como num fluxo contínuo da História, nós, indivíduos e cidadãos do século XXI, vivemos a chamada Sociedade do Conhecimento para onde confluem alguns importantes processos históricos, como a Revolução da Informática, a crise econômica do Capitalismo, o colapso do movimento comunista, a revolução na Genética, o surgimento da cultura da virtualidade e o apogeu de movimentos sócio-culturais como o liberalismo e o feminismo. A Globalização, enquanto ingrediente básico da sociedade do conhecimento, implica, necessariamente, na economia transnacional dominada pelo capital financeiro, na aceleração da produção em massa, no acirramento do consumo através da propaganda, na eliminação de barreiras geográficas que permitem a livre competição do jogo globalizado. Contudo, a Globalização também acarreta transformações sociais: a entrada da mulher no mundo do trabalho, por exemplo, que ampliou a renda familiar.

                  Quanto aos conhecimentos culturais, pode-se afirmar que há uma forte tendência à homogeneização cultural mundial, incentivada também pela Globalização, com o esvaziamento das culturas locais e a dominação, inicialmente político-econômica e, por extensão, cultural-ideológica dos EUA pela mídia universal. E são justamente estes conceitos da sociedade do conhecimento de que a teoria literária contemporânea vai se ocupar: o humanismo liberal, a unidade, a universalização, a homogeneidade, a origem. A proposta da literatura pós-moderna é crítica e questionadora, porém esta postura interrogativa e de contestação da autoridade é resultado da revolta descentralizadora desde a década de 60. A nova descentralização do sujeito e de sua busca no sentido da individualidade e da autenticidade repercute na teoria psicanalítica, filosófica e literária do pós-modernismo. Este movimento da contemporaneidade é, portanto, um movimento literário e filosófico, mas também um momento cultural-ideológico contraditório, plural e ex-cêntrico por excelência.

                  A vivência revolucionária e a transformação da percepção do mundo e da vida proporcionam à mulher da pós-modernidade a apropriação da tradição da literatura e da realidade para criar a sua linguagem pela ótica feminina. Deste modo, a experiência feminina percorre as demais reivindicações da mulher e o ímpeto libertário vai cedendo cada vez mais espaço ao questionamento existencial como um todo, passando, inclusive, pelo engajamento social.  Assim, o “eu”poético da poetisa Mônica Mello dá voz a um “nós” num espaço globalizado e capitalista.

 

11 de setembro – Mônica Mello

A ilusão explode seu rosto

                    em minha sala

A inocência ferida tece um

                    Coro de vozes esquizofrênicas.

Bósnia grita, Iugoslávia grita,

Hiroshima grita, Vietnã grita,

África grita, Palestina grita,

América Latina grita.

 

A miséria atinge seu alvo na

                    Caricatura do mundo.

Haverá porta sob a árvore cinzenta?

 

 

                  Apesar de não citar, em nenhum momento o evento 11 de setembro dos EUA, há, neste poema, um resgate de demais nações que vivem um conceito que se transforma na insatisfação típica da Pós-Modernidade. Os EUA, enquanto poderio econômico e político, são a própria ilusão passível de sucumbir em ruínas justamente devido a um ataque feito por uma nação considerada minoria no mundo, entretanto, não citada no poema. Os EUA representam, portanto, a própria “caricatura do mundo”, uma vez que a potência inatingível, o modelo inalcançável, o centro intocável apresenta-se distorcido como a imagem de uma caricatura. Assim, a poetisa fecha seu poema, trazendo para o espaço poético um elemento natural que liga terra e céu, mas que também pode ser lido como a própria torre, símbolo de um império, que explode e desmorona: “Haverá porta sob a árvore cinzenta?” ou ainda: Haverá saída para os que sofrem os efeitos da destruição?

                  Ainda dentro da linha da emancipação feminina, as expressões de algumas poetisas dos anos 90 ecoam numa perfeita sintonia com a ambivalência que reina na mutante pós-modernidade,  a exemplo de Verônica Diaz, que ainda apresenta o dualismo interior entre a aventura da transgressão e a herança da tradição opressora.

 

Devoluta – Verônica Diaz

Quero em mim mãos de jardineiro

Mãos grandes e fortes

Calejadas e cuidadosas

Não quero aquelas mãozinhas indecisas

Que pegam sem tocar

Aqueles aristocráticos fiapos de dedo

Sem calos, sem vincos, sem marcas

Quero mãos que dominem o cultivo

Da minha geografia

Mãos de arado

Não, eu não disse “tarado”

Mãos que ampliem meus espaços

Abram meus sulcos

Mãos que me reguem

E descubram minhas pétalas

Não, eu não sou flor

Eu sou terra

Quero em mim alguém

Que seja dono e senhor.

 

                  O retorno radical à ideologia do patriarcado parece estar explícito neste poema de Verônica Diaz, conforme indicam as constantes figuras eróticas. Entretanto, mais parece um monólogo confesso de uma mulher que quer um homem “que seja dono e senhor”, mas por desejo e não por subserviência: o relato de uma mulher, diferente da Gisela de Lya Luft, livre do sentimento de culpa e que, como uma mulher da pós-modernidade, quer ao seu lado um homem de “mãos grandes e fortes”, ou seja, alguém igualmente forte, seguro e decidido e não “aquelas mãozinhas indecisas”, aqueles “fiapos de dedo”. Deste modo, [Quero] “mãos que ampliem meus espaços”seria, a meu ver, a esperança – possibilitada pelos positivos resultados da revolução feminista – de compartilhar a vida com alguém que a incentive como ser humano, alguém que não imponha o silêncio, ou o calar. Todavia, esta leitura está meio que implícita no poema, o que não ocorre com Carnaval.

 

Carnaval – Verônica Diaz

É na hora que escrevo

Que tiro o casco

A casca

E penduro no cabide.

É aí que me esparramo

Me derramo

E extravaso fragilidade

Intra-molecular.

No bloco

Eu me largo como no carnaval

Nem sei se vem ou não

Gente atrás

Mas levo a sério

E brinco sem máscara.

 

 

                  À primeira vista, este poema indica uma total libertação das falsas aparências que a educação falocêntrica impunha. Porque, aliás, é isto que Carnaval significa, segundo a Teoria da “Carnavalização” de Bakhtin: uma confusão, a ausência da regra e a liberação do desejo , em oposição às obrigações e aos deveres. Em suma, a festa, o natural sem limite como  acontece na vigência do Princípio do Prazer, contrário às regras sociais do Princípio da Realidade[7]. Assim, como as mulheres da atualidade já não precisam esconder seus desejos, elas tiram a máscara e brincam sem medo nem culpa.

                  Livre[s] das correntes falocêntricas, as mulheres da pós-modernidade podem, então, como sugere Verônica Diaz, “entreg[ar-se] agora ao mundo”[8]. Assim, entre avanços e recuos, a mulher vai traçando seu próprio caminho. E se hoje houver recuos, medos, culpas não é porque estamos tratando de identidades contextualizadas por gênero, classe, raça, etnia, preferência sexual ou função social, e sim, por estarmos diante de seres humanos. 

 



[1]PARENTE CUNHA, Helena. “Audácia no dizer ou medo de falar: visão psicanalítica e interdisciplinar de vozes femininas brasileiras do século XIX ao XXI” (Título do Projeto de Pesquisa CNPq 2002-2005).

[2] LIMA, Luiz Costa. “Metamorfose do silêncio”. Revista Tempo Brasileiro. RJ: Tempo Brasileiro, 1968, p. 40-79.

[3] Imagine, John Lennon.

[4] versos proibidíssimos de Chico Buarque em Apesar de você.

[5] Considero aqui décadas revolucionárias os anos 60, 70 e 80 em que eclodiram estes movimentos de ordem social também ligados às reivindicações femininas e suas respectivas transformações.

[6] ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos. A mulher brasileira nas relações familiares.RJ: Rocco, 1994, p.63.

[7] FREUD, Sigmund. Para além do Princípio do Prazer.

[8] DIAZ, Verônica. Livre. RJ: Ed. Da Autora, 2001.



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