EDIÇÃO No. 2 - Janeiro-Abril 2004

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ISSN 1809-2586   


 

   

EDITORIAL


Caros alunos e professores.

Esse é o segundo número da Revista Garrafa, representando o colóquio dos alunos de 2003, organizado por Eduardo Guerreiro, Ricardo Pinto, Marcos Guerra e João Camillo Penna. Quero agradecer ao Camillo por ter estado presente em todas as mesas e ter praticamente feito a maior parte do trabalho. Os alunos estão de parabéns. Fica evidente o nível dos textos, fruto do esforço e da discussão proporcionada pelos eventos.

Gostaria de citar um trecho do livro que estou lendo agora para dar aula. É retirado da Teoria do romance, de Lukacs: "A partir do momento em que as idéias são apresentadas como inacessíveis e se tornam, empiricamente falando, irreais, a partir do momento em que são mudadas em ideais, a individualidade perde o caráter imediatamente orgânico que fazia dela uma realidade não problemática... ela o descobre em si de ora em diante não a título de posse nem como fundamento da sua existência, mas como objeto de busca".

O contexto dessa passagem está ligado à diferença entre a epopéia e o romance. Ultimamente minha experiência tem sido muito parecida com um romance lukacsiano e toda a sua reflexão da crise do sujeito moderno. Digo isso pelo direito que temos de devanear com as idéias. Lukacs, como tantos outros alemães, pensam grandiosamente, e certamente um pequeno doutorando do Brasil se iludiria muito com uma grandiosidade já criticada. Mas se ela só for um mero estímulo para a reflexão de pequenas práticas universitárias, talvez seja um devaneio meio arbitrário, mas legítimo. Então, vou me permitir fazer uma reelaboração livre dessa questão para a feitura de uma revista virtual de um departamento de ciência da literatura: quando as idéias são apresentadas como ideais, tornam-se inacessíveis, pois se distanciam demasiadamente da realidade e sua determinidade. Mas quando temos idéias de realização parcial do ideal sempre inacessível, elas dão acesso à experiência possível de um ideal individual para outras individualidades, e contribuem para uma busca conjunta, que procura antes de tudo a solidariedade das buscas individuais. Não gosto de pensar que o ideal se realiza quando se torna realidade para outras pessoas, porque há uma pluralidade de ideais na medida mesma em que há a diferença dos indivíduos nas relações sociais. E como Lukacs, Kant, Adorno e muitos outros colocam, ideal mesmo não se realiza, trata-se da condição necessária para que esteja ao lado da justiça. Digamos que a razão disso é dada primeiro por Hegel: a consciência individual, por mais que negue, quer sempre destruir, suprimir e absorver o Outro; segundo por Freud: um sujeito nunca pode ser totalmente esclarecido, ele está sempre recalcando pulsões que, volta e meia, quando tiverem oportunidade, o levarão a atos próximos à barbárie, mais ou menos graves; terceiro por Lacan, síntese dos anteriores: o sujeito tentará fazer tudo para diminuir a angústia de sua existência faltante, e o fará tentando ter a posse de seu objeto de desejo, o Outro, e ser o ideal do eu, preparando os requintes de tortura masoquista do supereu.

Mas talvez haja um embate de ideais quando pequenas idéias se tornam realidades, realidades também pequenas, perto da realidade fora do circuito universitário e literário. Nesse embate, talvez haja a oportunidade de uma correção mútua das diferenças entre os ideais pessoais, e uma união qualquer de suas semelhanças, porém sem consenso, mantendo a produtividade da discussão, encontrando o reforço mútuo da liberdade de pensamento e a alegria de potencializar as idéias por meio mesmo da diferença. Isso poderia chegar ao ponto de os indivíduos perceberem muito depois, lamentando o tempo perdido antes da morte próxima, a falta de necessidade de embates desnecessários e a grande necessidade de mais solidariedade. Entendo solidariedade como um conceito não somente moralizante. Vou levantar duas possibilidades para pensá-lo: é o reconhecimento, por meio da imaginação, da nossa própria miséria e sofrimento e a partir dela da do outro, de modo que o sofrimento individual não se torne individualista, e sim compreensivo; segundo, é a abertura para as pequenas amostras de amizade, carinho e amor que podemos receber de quem menos se suspeitava e dar a quem menos nos estimularia. É aí que a garrafa lançada ao mar poderia ser descoberta por pessoas mais próximas do que nosso distante ideal imaginava.

É isso que move minha busca, e talvez de outros tantos ensaístas que escreveram aqui, até agora.

 

 

Eduardo Guerreiro

 

Membros da comissão editorial: Antonio Jardim, Eduardo Guerreiro, Francisco Bosco, Vera Lins, Ricardo Pinto.