EDITORIAL
Caros alunos e professores.
Esse
é o segundo número da Revista Garrafa, representando o colóquio
dos alunos de 2003, organizado por Eduardo Guerreiro, Ricardo
Pinto, Marcos Guerra e João Camillo Penna. Quero agradecer ao
Camillo por ter estado presente em todas as mesas e ter praticamente
feito a maior parte do trabalho. Os alunos estão de parabéns.
Fica evidente o nível dos textos, fruto do esforço e da discussão
proporcionada pelos eventos.
Gostaria
de citar um trecho do livro que estou lendo agora para dar aula.
É retirado da Teoria do romance, de Lukacs: "A partir do momento
em que as idéias são apresentadas como inacessíveis e se tornam,
empiricamente falando, irreais, a partir do momento em que são
mudadas em ideais, a individualidade perde o caráter imediatamente
orgânico que fazia dela uma realidade não problemática... ela
o descobre em si de ora em diante não a título de posse nem como
fundamento da sua existência, mas como objeto de busca".
O
contexto dessa passagem está ligado à diferença entre a epopéia
e o romance. Ultimamente minha experiência tem sido muito parecida
com um romance lukacsiano e toda a sua reflexão da crise do sujeito
moderno. Digo isso pelo direito que temos de devanear com as idéias.
Lukacs, como tantos outros alemães, pensam grandiosamente, e certamente
um pequeno doutorando do Brasil se iludiria muito com uma grandiosidade
já criticada. Mas se ela só for um mero estímulo para a reflexão
de pequenas práticas universitárias, talvez seja um devaneio meio
arbitrário, mas legítimo. Então, vou me permitir fazer uma reelaboração
livre dessa questão para a feitura de uma revista virtual de um
departamento de ciência da literatura: quando as idéias são apresentadas
como ideais, tornam-se inacessíveis, pois se distanciam demasiadamente
da realidade e sua determinidade. Mas quando temos idéias de realização
parcial do ideal sempre inacessível, elas dão acesso à experiência
possível de um ideal individual para outras individualidades,
e contribuem para uma busca conjunta, que procura antes de tudo
a solidariedade das buscas individuais. Não gosto de pensar que
o ideal se realiza quando se torna realidade para outras pessoas,
porque há uma pluralidade de ideais na medida mesma em que há
a diferença dos indivíduos nas relações sociais. E como Lukacs,
Kant, Adorno e muitos outros colocam, ideal mesmo não se realiza,
trata-se da condição necessária para que esteja ao lado da justiça.
Digamos que a razão disso é dada primeiro por Hegel: a consciência
individual, por mais que negue, quer sempre destruir, suprimir
e absorver o Outro; segundo por Freud: um sujeito nunca pode ser
totalmente esclarecido, ele está sempre recalcando pulsões que,
volta e meia, quando tiverem oportunidade, o levarão a atos próximos
à barbárie, mais ou menos graves; terceiro por Lacan, síntese
dos anteriores: o sujeito tentará fazer tudo para diminuir a angústia
de sua existência faltante, e o fará tentando ter a posse de seu
objeto de desejo, o Outro, e ser o ideal do eu, preparando os
requintes de tortura masoquista do supereu.
Mas
talvez haja um embate de ideais quando pequenas idéias se tornam
realidades, realidades também pequenas, perto da realidade fora
do circuito universitário e literário. Nesse embate, talvez haja
a oportunidade de uma correção mútua das diferenças entre os ideais
pessoais, e uma união qualquer de suas semelhanças, porém sem
consenso, mantendo a produtividade da discussão, encontrando o
reforço mútuo da liberdade de pensamento e a alegria de potencializar
as idéias por meio mesmo da diferença. Isso poderia chegar ao
ponto de os indivíduos perceberem muito depois, lamentando o tempo
perdido antes da morte próxima, a falta de necessidade de embates
desnecessários e a grande necessidade de mais solidariedade. Entendo
solidariedade como um conceito não somente moralizante. Vou levantar
duas possibilidades para pensá-lo: é o reconhecimento, por meio
da imaginação, da nossa própria miséria e sofrimento e a partir
dela da do outro, de modo que o sofrimento individual não se torne
individualista, e sim compreensivo; segundo, é a abertura para
as pequenas amostras de amizade, carinho e amor que podemos receber
de quem menos se suspeitava e dar a quem menos nos estimularia.
É aí que a garrafa lançada ao mar poderia ser descoberta por pessoas
mais próximas do que nosso distante ideal imaginava.
É
isso que move minha busca, e talvez de outros tantos ensaístas
que escreveram aqui, até agora.
Eduardo
Guerreiro
Membros
da comissão editorial: Antonio Jardim, Eduardo Guerreiro, Francisco
Bosco, Vera Lins, Ricardo Pinto.
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