EDIÇÃO No. 7 - Setembro-Dezembro 2005

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ISSN 1809-2586


Ana Renata Baltazar da Penha

A Mobilidade Essencial do Sujeito Pós-Moderno na Poética de Ana Cristina César

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Atrás da Flor Azul ou A Cabeça Redentora

Cristiane Agnes Stolet Correia
Repensando o trágico pelo pulsar da veia nietzscheana

Ítalo Meneghetti Filho
Por uma epistemologia do espaço ficcional em literatura - A geografia do afeto

Juliana Nascimento Berlim Amorim
A ironia romântica: uma leitura

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A cacatua verde e a crise no espelho

Lívia Aparecida de Almeida e Sousa
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Lucia Ricotta
Esboço de uma órbita do sujeito filosófico: Kant, Fichte e Novalis

Mariana Gesteira da Silva
Cinema novo: um modo brasileiro de fazer cinema

Norma do Carmo
O tempo e a memória no poeta da construção

Vitor Alevato do Amaral
Poesia contemporânea nos Estados Unidos: comentários introdutórios sobre o New-Formalism
e um poema de Annie Finch

Vivane Arena Figueiredo
Caminhos cruzados x Atitudes opostas: Imagens eróticas em Lucíola e
Tereza Batista cansada de Guerra

Werner Aguiar
Música: poética do sentido. Uma onto-logo-fania do real
 



APRESENTAÇÃO
 

Um dos problemas de quem escreve academicamente é o de escrever em nome do pensamento, não de uma escola nem de uma instituição. Comprometido através de toda sua vida com o ensino universitário, escrevendo parte significativa de seus textos para serem aulas, em uma passagem de Introdução à Metafísica, Heidegger afirma: 

Quando algo de semelhante ocorre, por exemplo, a uma escola filosófica, é que não se compreendeu a investigação. Tais escolas só têm razão de ser no domínio do trabalho científico e profissional. Aqui tudo possui a sua hierarquia determinada. Tal trabalho também pertence, sem dúvida, e até necessariamente à filosofia, embora haja desaparecido hoje em dia. Sem embargo, a melhor competência profissional nunca substituirá com propriedade a força do ver, do investigar e do dizer por si próprio[1]. 

Aqui, aparece uma contraposição entre escola filosófica e compreensão da investigação. Em nossos dias, as duas possibilidades não se combinam mais: por um lado, a respectiva escola, o trabalho científico, uma competência profissional, uma certa filosofia atualmente desaparecida, e, por outro, a força do ver, do investigar e do dizer por si próprio, que seria o pensar em sua autenticidade. Este último estará sempre à margem da reprodução mecânica de um pensamento que não diz respeito àquele que o pensa. A cisão flagrada é entre a inautenticidade do pensamento e seu oposto.

            A experiência que interessa ao respectivo pensador é a do ver, do investigar e do dizer por si próprio. A tentativa de estabelecimento de uma escola filosófica se dá apenas através de um grande equívoco, ou seja, apenas por aqueles que acreditam que a competência profissional vale mais do que ver, investigar e dizer por si próprio. Este equívoco, tão alimentado nas universidades contemporâneas de todo o mundo, ocorre na transformação do espírito em inteligência, do espírito em  

simples habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na avaliação das coisas dadas, com vistas a uma possível transformação, reprodução e distribuição em massa, sujeita em si mesma à possibilidade de uma organização, o que não vale para o espírito[2].           

Como fazemos parte do meio acadêmico, corremos sempre os riscos de, consciente ou inconscientemente, querer transformar o pensamento em escola. Por isso, algumas palavras podem nos ajudar: 

Todavia tudo isso se afunda logo no mesmo vazio, se não se consegue transferir para a Escola, e desde os fundamentos, o mundo do espírito, o que significa: se não se cria na Escola uma atmosfera de espírito, que substitua a científica. E para tanto o primeiro passo é uma revolução real nas relações com a linguagem[3]. 

            Dentro deste movimento de revolução real nas relações com a linguagem, Heidegger estabelece uma escuta da poesia. De que maneira podemos ter, simultaneamente, uma escuta da filosofia e da poesia? Em primeiro lugar, precisamos estar dispostos a algo mais do que um mero entretenimento cultural, um escoamento emotivo ou algum ornamento supérfluo para passar o tempo. Ao invés de impormos nossa subjetividade ao texto que está sendo pensado, fazendo-o um espelho de cada um de nós, o que temos é uma abertura para deixar que o essencial das palavras nos adentre. Trata-se de uma escuta. Na dimensão mais banalizante do cotidiano, tal escuta é burlada: as palavras entram por um ouvido (que cumpre sua função estritamente anatômica e fisiológica) e saem pelo outro, não deixando vestígio algum de transformação. Na escuta poética do pensamento, porém, passamos a ficar inseridos naquilo que nos toma por inteiro: a palavra como pathos, ambiência à qual ficamos expostos. Nada de preconcebido se coloca entre o leitor, as palavras e aquilo que elas instauram. Dentro desta escuta poética e pensada, podemos nos transformar no vivo suporte da potência da poesia[4].

            A transformação do assenhoreamento da subjetividade do leitor sobre o poema em abertura que se quer afetada, Heidegger denomina de combate[5]. Um combate a favor das palavras e contra nossas próprias individualidades autônomas, tentando minar o antropocentrismo que se instaurou no percurso do Ocidente. Da mesma maneira que o poeta e o filósofo são levados a aprender que ser homem não é dominar as palavras, mas ser e deixar-se ser dominado por elas, o leitor, em seu caminho de aprendizagem, terá de entregar-se às palavras. Leitores, poetas e filósofos se encontram, nos escritos, como servidores do pensamento. Tanto escrever como ler implicam a perda de uma dimensão de si mesmo para que algo mais fundamental possa eclodir.  

Assim, como o poeta transforma-se em mestre e servidor da poesia apenas por um combate, é também pelo mesmo combate que nos aproximamos, para além do poema particular, do espaço da poesia. O combate pela poesia no poema é um combate contra nós mesmos, na medida em que, na banalidade cotidiana do Dasein, somos rejeitados pela poesia e nos encalhamos, cegos, paralisados e surdos sobre a margem, incapacitados de ver, de entender e de sentir os movimentos do mar. Mas, o combate contra nós mesmos não significa de maneira alguma uma autocontemplação complacente e curiosa, nem uma dissecação espiritual, nem, muito menos, um exame dramático da consciência “moral”: o trabalho contra nós mesmos é o trabalho de travessia do poema.[6] 

A travessia do poema caracteriza-se pelo combate contra nós mesmos. Em nossos dias, a tarefa do pensamento reside na tentativa de superação da nossa própria metafísica moderna da subjetividade em que a linguagem abandona-se a nosso puro querer e à nossa atividade como um instrumento de dominação sobre o ente[7]. Para que tal superação aconteça, é necessária uma compreensão mais fundamental acerca de quem somos e acerca da linguagem... E não sabemos quem somos... E não sabemos o que é linguagem. Manter-se no plano do poético, do pensamento, é fazer adentrar em nós a questão quem somos?, de maneira que possamos realmente colocá-la nos defrontando com ela durante todo tempo de nossa curta vida[8]. A poesia há de ter papel relevante: o poema descobre-se lugar de combate contra a concepção da modernidade acerca do homem; ou, ainda dentro do mesmo âmbito: temos de freqüentá-la (a poesia) a fim de que se crie a condição necessária para que advenha o tempo em que poderemos enfim aprender quem somos[9].

Efetivando-se pela poesia, pelo pensamento, tal aprendizagem nos oferece a medida de quem somos. Não é o homem quem determina sua medida, antes, é ela (a medida) que o determina, pela poesia, pelo pensamento. A diferença é sutil, mas importa. Podemos falar na medida do homem apenas se, como em Heráclito e em Protágoras, ela for, primeiramente, a maneira pela qual o próprio cosmos se manifesta, conjuntamente no reino do desvelado e no reino do velado: aquilo que Heidegger chamou de Einschänkung[10]. Os textos que compõem este sétimo número de nossa revista são tentativas de flagrar esta força da literatura, das artes e do pensamento.


 

[1] HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Trad. por Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. p.49-50.

[2]HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Trad. por Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. p.72.

[3] Id. Ibid. p.82.

[4] HEIDEGGER, M. Les hymnes de Hölderlin: La Germanie et Le Rhin. Texte établi par Suzanne Ziegler, traduit de l’allemand par François Fedier et Julien Hervier. Paris: Gallimard, 1988.(Bibliothèque de Philosophie, série Martin Heidegger). p. 32.

[5] Id. Ibid. p.34.

[6] HEIDEGGER, M. Les hymnes de Hölderlin: La Germanie et Le Rhin. Texte établi par Suzanne Ziegler, traduit de l’allemand par François Fedier et Julien Hervier. Paris: Gallimard, 1988.(Bibliothèque de Philosophie, série Martin Heidegger).p.34.

[7] HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo.Trad. por Ernildo Stein. In:Heidegger. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Ed. Victor Civita. Col. Os Pensadores). p.152.

[8] HEIDEGGER, M. Les hymnes de Hölderlin: La Germanie et Le Rhin. Texte établi par Suzanne Ziegler, traduit de l’allemand par François Fedier et Julien Hervier. Paris: Gallimard, 1988.(Bibliothèque de Philosophie, série Martin Heidegger). p.65.

[9] Id. Ibid.

[10] Comumente traduzido como “restrição”; talvez seja melhor o termo “moderação”, que não traz a carga pejorativa que o anterior possa trazer. Cf. Nietzsche. v. 4. p.94.



Alberto Pucheu