Esboço de uma órbita do sujeito filosófico: Kant, Fichte e Novalis

 Lucia Ricotta[1]

“(...) não podemos evitar que o mar nos pareça mais alto ao longe do que junto à costa, porque, no primeiro caso, o vemos por meio de raios mais elevados; ou ainda, como o próprio astrônomo não pode evitar que a lua, ao nascer, lhe pareça maior, embora  não se deixe enganar por essa aparência”.

    Kant. Crítica da Razão Pura.

 

 Gostaria de desenvolver esse pequeno esboço fazendo incursão por alguns fundamentos da filosofia transcendental, nascida da Crítica da Razão Pura e, por algumas idéias de Novalis sobre a Doutrina da Ciência de Fichte, cujas construções sistemáticas nos legou uma tradição filosófica sob o nome de idealismo alemão, comumente associado a filósofos como, Fichte, Schelling e Hegel. Deve-se dizer que o horizonte do idealismo é construído sobre um solo de crise. Crise esta instalada pela tentativa de solapar os objetos da metafísica por uma crítica da razão. Kant, certamente, é o protagonista dessa tentativa. Ele expulsara do problema do conhecimento os objetos de natureza metafísica: Deus, liberdade e imortalidade da alma. Deus está para crença e não pro conhecimento, afirmava Kant contra os dogmáticos. No epicentro dessa crise, portanto, os escritos dos primeiros românticos (Novalis, Tieck e os irmãos Schlegel) dão forma à liberdade de constituição da subjetividade. Ficarei restrita a Novalis em duas de suas obras, Os Hinos à Noite e seus fragmentos reunidos em Pólen, espécie de manifesto do primeiro romantismo alemão, publicado em 1798, na Revista de Jena, Athenaeum.

  Começo por sublinhar o texto kantiano, a Primeira Crítica, mais especificamente, o final da Analítica Transcendental. Segue-se o trecho:

 

“Percorremos até agora o país do entendimento puro, examinando cuidadosamente não só as partes de que se compõe, mas também o medindo e fixando a cada coisa o seu lugar próprio. Mas este país é uma ilha, a que a própria natureza impõe leis imutáveis. É a terra da verdade (um nome sedutor), rodeada de um vasto e tempestuoso oceano, verdadeira sede da aparência (des Scheins) onde muita neblina e muito gelo, a ponto de se derreterem, dão a ilusão de novas terras, e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o viajante que sonha com descobertas”[2].

 

 A passagem anuncia que há apenas uma ilha cujos limites imutáveis estão definidos e medidos. Esta ilha, como diz o filósofo, é a ilha do entendimento, o qual extrai tudo de si próprio, sem o recurso da experiência real, para, no entanto, constituir o esquema puro que irá possibilitar a experiência. Portanto, os princípios e os conceitos que o entendimento produz têm, sim, validade objetiva. Para Kant, é impensável o pensamento sem o papel das condições transcendentais do conhecimento que supõem, por sua vez, o pensamento como um ato espontâneo e transindividual. Explica-se: em Kant, a princípio, a força do sujeito, o sujeito do entendimento ou o sujeito da apercepção transcendental (depois, o sujeito da razão) não pode ser inferida de condições privadas, mas de um momento geral e construtivo. Ele é uma figura lógica e formal que não tem como revelar uma substância. Não tem como revelar o conhecimento da essência divina, por exemplo.

 Voltemos à passagem destacada. O que importa para nós é entender que essa ilha e o vasto mar que a circunda encerra, de modo metafórico, o próprio aparato cognitivo humano (formado pelo entendimento, razão e sensibilidade), e se confundem com o homem mesmo. Leia-se a passagem e lembre-se das palavras utilizadas por Kant: “território”, “ilha”, “limite”, “posição”, “oceano”, “sede da ilusão”, “terra da verdade”, termos emprestados da geografia, a ciência que tem por objeto a descrição da Terra, e, em particular, o estudo dos fenômenos físicos, biológicos e humanos. Como se fosse possível esquadrinhar uma geografia para a razão humana e, a partir dela, indagar sobre quê grandeza e quê extensão repousa o solo da razão humana. A idéia é examinar os limites modernos do conhecimento humano, reconhecendo as fronteiras, sugestivamente nebulosas e enganadoras, entre a ilha da verdade e o movimento vasto e tempestuoso das ilusões que acometem o homem. (Lembre-se do mito da caverna em Platão em que a aparência, essencialmente enganadora, nega qualquer acesso à verdade inteligível. Em Kant, se por um lado, a única verdade possível é a verdade do conhecimento das leis naturais, causais e determinísticas, encerrado nos domínios lógicos e formais do pensamento humano, por outro, é justamente esse conhecimento que garante as condições de possibilidade da experiência do mundo das aparências. E essas aparências, embora enganadoras, têm para ele um valor positivo porque são sobre elas que se aplicam as idéias da razão, a sensibilidade humana, o entendimento e o simbolismo da imaginação.

 Isso nos permite pensar ainda: a viagem que o viajante faz para alcançar novas terras lança-o no desconhecido. Esse desconhecido é povoado de imagens fraudulentas, enganadoras que deixam o viajante de mãos vazias. Mas pense-se o seguinte, ainda no campo da prática da viagem e da constituição de significação para o não-familiar que o viajante encontra: Aquilo que ele crê ver, as ilusões, não é necessariamente incerto ou desprovido totalmente do registro do verdadeiro. Aquilo que ele vê muitas vezes não pode ser atestado cientificamente, por operações lógicas do entendimento, no entanto, não quer dizer que não movam a imaginação do viajante e o faça representar o desconhecido simbolicamente. Aí, sim, parece que o simbólico da imaginação é convidado a operar, e, operar simbolicamente é dar ao desconhecido a aparência de conhecido, é dar uma aparência de verdadeiro ao que não pode ser conhecido na sua essência. “O vasto mar tempestuoso, verdadeira sede da aparência” é desde a abertura dos tempos modernos o lugar a ser produzido um certo conhecimento, um conhecimento que ganha efetividade porque a razão humana não concerne mais à natureza das coisas, senão que à sua aparição.

 Mas, não é também este “vasto mar tempestuoso” o próprio simbólico, o inconsciente, o que está oculto, por trás da verdade objetiva das coisas? Não remeteria ele para a porção subjetiva do homem e de seu conhecimento? Não quero utilizar categorias psicanalistas para explicar qualquer coisa de Kant. Quero apenas demonstrar que, em Kant, já estava previsto um campo indeterminado para além do conhecimento lógico, onde se encerram a razão e a sensibilidade. Razão e sensibilidade que acrescidas de um esforço auto-reflexivo irão caracterizar o poeta, o crítico e o escritor românticos. Do ponto de vista histórico, então, Kant intentava mostrar que há conhecimento fora da ilha da verdade, lugar das leis imutáveis, outrora lugar da teoria clássica do conhecimento, onde os homens se encontram com as coisas do mundo, e desse encontro misterioso com as coisas do mundo ele põe algo de subjetivo ao regime dos fenômenos. Nesse sentido, o mundo exterior se junta com o íntimo do homem, com o seu pensamento e sentimento. É este, portanto, o horizonte que o pensamento kantiano e sua filosofia crítica abrem para o romantismo. Resume-se da seguinte maneira: 1)o reconhecimento sobre a impossibilidade de uma independência ontológica para as coisas, e, 2) a confrontação agora da razão com o fenômeno, sob condição de que o conhecimento daí derivado não mais concerne ao regime do ser, senão ao regime dos fenômenos que se dá no tempo e no espaço.

     Mas, afinal, o que isso tudo tem a ver com o romantismo? A modernidade do pensamento kantiano veio para anunciar que o conhecimento é mera representação humana. Dessa forma, ele legitima historicamente o sujeito como um indivíduo independente de qualquer ordem prévia a ele. O sujeito com seu entendimento, sensibilidade e razão já possui aparato próprio que o ampare e lhe garanta legitimidade em sua individualidade cerrada. Há como que um auto-centramento do sujeito que só é possível quando ele toma a si mesmo como lei. Assim a subjetividade se constitui numa espécie de dialética que rompe com a divisão sujeito-objeto e instaura a especularidade transitiva entre o mundo interno da subjetividade e o mundo exterior do mundo. Na literatura romântica, o sujeito conserva-se firme. Longe da razão instrumental, ele pensa com a razão auto-reflexiva que inclui a imaginação e mantém uma compreensão crítica do processo criativo em geral. A literatura romântica está voltada para a expressão da subjetividade e ao desejo impulsionador da própria estrutura ficcional de se aproximar do objeto, pois que a consagração do indivíduo corre pari passu ao apreço deste pela objetividade.Vejamos como em Pólen Novalis, dominado pela lições de Fichte, está pensando a subjetividade do eu como recíproca à objetividade do mundo. Tudo se dá como se a vida e a arte, o exterior e o interior, a poesia e a filosofia fossem determinadas por uma determinação recíproca ou uma alternância entre todos os elementos. E o conhecido condicionamento do organismo: o organismo para funcionar tem de ser circular, tem de iniciar num ponto e voltar a ele, tem de ser o princípio do qual se partir e também o último resultado. Daí o fragmento 17 de Pólen segue o preceito kantiano de que o centro de gravidade da filosofia está no homem e de que a representação humana realça uma experiência pessoalizada do mundo, marcada de antemão pela precariedade do tempo e pela perspectiva, mutante e imperfeita, de abranger o mais verdadeiramente o real. Nesse movimento, induzido agora solitariamente, está o homem romântico com sua imaginação e pensamento, pronto para tornar ele e o mundo passível de conhecimento externo e reconhecimento interior.

 Novalis se pergunta:

 “Então o universo não está dentro de nós? As profundezas do nosso espírito nós não conhecemos – para dentro vai o misterioso caminho. Em nós, ou em parte nenhuma, está a eternidade com seus mundos – o passado e o futuro. O mundo exterior é o mundo das sombras. – Lança suas sombras no reino da luz”[3].

 E ainda outro fragmento dele que está no Borrador Universal: “(...toda inversão – olhar para o interno – é ao mesmo tempo ascensão – viagem ao céu- olhar verdadeiramente para o externo)”[4].

 Embora as referências kantianas sejam evidentes, convém lembrar, apoiada em indicação de Rubens Rodrigues Torres Filho, que há também referência bem próxima e verossímil na Primeira Introdução à doutrina-da-ciência de Fichte. Ali, Fichte escreve: “Atenta a ti mesmo: desvia teu olhar de tudo o que te circunda e dirige-o a teu interior – é a primeira exigência que a filosofia faz a seu aprendiz. Não se trata de nada que está fora de ti, mas exclusivamente de ti mesmo[5].(p. 206, notas).

  Essa interiorização e introspecção levam à egoidade infinita já delineada de antemão na filosofia fichteana. Novalis sublinha no Fragmento 43:

 

 “Retornar para dentro de si significa, para nós abstrair do mundo exterior. Para os espíritos, a vida terrestre significa, analogicamente, uma consideração interior – um entrar dentro de si – um atuar imanente. Assim a vida terrestre origina-se de uma reflexão originária – um primitivo entrar-dentro-de si, concentrar-se em si mesmo – que é tão livre quanto nossa reflexão. Inversamente, a vida espiritual neste mundo origina-se de um irromper daquela reflexão primitiva – o espírito volta a desdobrar-se – o espírito volta a sair em direção a si mesmo – volta a suspender em parte aquela reflexão – e nesse momento diz pela primeira vez – eu. Vê-se aqui quão relativo é o sair e o entrar. O que chamamos entrar é propriamente sair – uma retomada da figura inicial”[6].

 

 É que Novalis acaba não podendo escapar do paradoxo inerente à sua descoberta. Será preciso mostrar que a saída em direção a si ou o movimento de entrar para dentro de si, da subjetividade, sua exteriorização como eu, é inerente à própria constituição da filosofia transcendental e condição indispensável para a inteligibilidade de determinada perspectiva romântica. Para Novalis, o idealismo parece enfim ter chegado àquele “interior” ao qual o romântico se dirige, o principal princípio dialético que ele mesmo descobre – o da reflexão – revela que refletir sobre si é também entrar e sair de si: a reflexão necessária do eu sobre si mesmo é o fundamento de todo sair de si mesmo e entrar dentro de si. A reflexão é o que permite saber-se como cada indivíduo é diferente e como cada um concorda consigo mesmo na sua irredutibilidade.

 Expressão mais acabada e perfeita do gênio é, segundo Novalis, aquele que primeiro penetrou a si mesmo. Ele afirma do fragmento 93:

 

“Quase todo gênio foi até agora unilateral, resultado de uma constituição doentia. Uma classe tinha demasiado sentido externo, a outra demasiado interno. Raramente a natureza conseguiu um equilíbrio entre ambas – uma constituição genial perfeita e acabada (...) O primeiro gênio que penetrou a si mesmo encontrou o germe típico de um mundo imensurável – Fez uma descoberta, que tinha de ser a mais notável na História Mundial – pois com ela começa uma época  totalmente nova da humanidade – e somente nesse nível se torna possível verdadeira História de toda espécie – pois o caminho, que até agora foi deixado para trás, constitui agora um todo próprio, inteiramente explicável. Aquele lugar fora do mundo está dado”[7].

 

 A originalidade propriamente romântica do gênio reside no enlace metodológico da Doutrina da ciência de Fichte entre o ideal e o real, sujeito e objeto, “eu como sujeito filosofante” e “eu como objeto do filosofar”. Como elaboração especulativa, é um artifício para mostrar à consciência aquilo que, por assim dizer, ela não pode ver ou reconhecer: o espírito humano não é capaz de intuir diretamente a própria atividade, pois para poder apreendê-la tem, por uma lei que lhe é inerente, de fixá-la num objeto exterior. Só o gênio filosófico é capaz de fazer isso de ao mesmo tempo pensar, agir e observar; isso seria o ideal do filosofar que intenta encontrar a raiz da identidade entre sujeito e objeto. É preciso estabelecer uma determinação de reciprocidade do “eu consigo mesmo”, pois este não é um só, mas dois inteiramente diferentes. Para entender essa estrutura de reciprocidade que se dá entre sujeito e objeto, ideal e real, morte e vida e diversas antinomias modernas é preciso, paradoxalmente, mergulhar cada vez mais fundo no espírito e perceber que o eu é capaz de um casamento feliz consigo mesmo ( ato de auto-amplexo) e de fazer companhia a si mesmo.

 Eis aí o que se poderia chamar desse programa do romantismo de Novalis: a artificialidade da construção filosófica deve ser devolvida à vida, transformando-se em obra de arte. O homem tem de ser ao mesmo tempo filosofia e vida, vida ideal e filosofia real – vivente teoria da vida. Se esse programa ainda tem muito do filósofo efetivo fichtiano, isso se deve à dupla exigência de genialidade na qual se inspira e que terá de satisfazer. É o que se pode verificar num dos fragmentos logológicos de Novalis:

 

“Quem procura, duvidará. O gênio, porém, diz tão atrevida e seguramente o que vê passar-se dentro de si porque não está embaraçado em sua exposição e, portanto, tampouco a exposição embaraçada nele, mas sua consideração e o considerado parecem consoar livremente, unificar-se livremente numa obra única”[8].

 

 O sujeito filosofante é distinguido do objeto do filosofar, mas ao mesmo tempo deve “unificar-se” com ele “numa obra única”. A exposição da filosofia depende, assim, de dois talentos que diferem entre si, mas que são complementos de um todo. Um deles é a habilidade natural de falar do mundo exterior, de tratar de objetos imaginados como se tratasse de objetos efetivos, e também de tratá-los como a estes (reflexão originária); o outro (reflexão artificial) é a capacidade de expor, observar com precisão – descrever finalisticamente a observação. Tomemos as palavras de Márcio Suzuki, em O Gênio romântico: “Os dois talentos devem ser combinados: sem a genialidade natural, todos nós simplesmente não existiríamos; sem o segundo talento, o espírito só se vê pela metade – e se é somente meio gênio. O gênio filosófico tem de ser ao mesmo tempo dois em um, gênio e gênio do gênio”[9].

 

 


 

[1] Lucia Ricotta é bolsista de docência e pesquisa PRODOC/CAPES ligada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, na Faculdade de Letras/UFRJ.

 

[2] KANT, I. “Do princípio da distinção de todos os objetos em geral em fenômenos e númenos””_ In: Crítica da Razão Pura (Trad. Manuela Pinto dos Santos eAlexandre Fradique Morujão). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 257

[3] NOVALIS. Pólen (tradução, apresentação e notas: Rubens Rodrigues Torres Filho). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2001, p.45.

[4] idem, p. 206 notas.

[5] FICHTE. Primeira Introdução à doutrina-da-ciência (tradução Rubens Rodrigues Torres Filho). Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1980.

[6] NOVALIS: op. cit., p.61.

[7] NOVALIS. Op. cit., p. 89.

[8] NOVALIS. Op.cit., p. 112.

[9] SUZUKI, M. O Gênio romântico. São Paulo: Editora Iluminuras/FAPESP, 1998.

 

 

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