A ironia romântica: uma leitura

                                                           Juliana Nascimento Berlim Amorim

Esta comunicação se pretende uma muito breve apreciação sobre o conceito de ironia formulado no período do Primeiro Romantismo, tal qual foi exposto por Walter Benjamin em sua tese de doutorado intitulada O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Como o próprio nome do livro indica, o enfoque principal de Benjamin neste estudo não é o do conceito de ironia, mas sim o da crítica de arte estabelecido durante o Primeiro Romantismo, segundo os pressupostos filosóficos da época. Apesar disso, em se tratando da ironia uma das principais formulações teóricas dos primeiros românticos, ela merece de Benjamin uma atenção particular na segunda parte de sua tese, batizada de A Crítica de Arte.

Como dissemos acima, a proposta teórica de crítica de arte do Primeiro Romantismo, assim como a construção schlegeliana da idéia de uma poesia transcendental, repousam sobre importante base filosófica. Além da conhecida contribuição de Kant, a filosofia transcendental de Fichte, tal qual é exposta na Doutrina da Ciência, serve como pilar das proposições românticas. Em linhas muito gerais, a inovação fichteana assimilada em parte pelos românticos consiste em sua divergência do modelo kantiano de separação entre o mundo do sujeito e o mundo do objeto: agora, toda a realidade, fosse ela de ordem espiritual ou material, seria produto da reflexão do eu, ou seja, o eu torna-se o centro de tudo. A natureza será uma criação do pensamento do próprio sujeito, pois este eu cria para si o ambiente do não-eu, que condiciona o eu a mover-se continuamente na tentativa de superação do não-eu. O processo torna-se dialeticamente inacabado porque, se o processo ascendente se concluísse, o movimento se extinguiria e a vida do espírito também.

A partir deste processo de mobilidade contínua, Fichte pretendia que o espírito obtivesse a liberdade. A retomada romântica de Fichte estabelecerá que a liberdade poderá ser obtida para além do âmbito restrito do ser que retorna a si mesmo em uma tentativa de superação dialética. Para o Primeiro Romantismo, a proposta de liberdade do espírito intentada no confronto do eu com o não-eu poderia ser obtida no confronto do indivíduo com um produto externo a ele mesmo, a obra de arte

Percebe-se, portanto, o papel preponderante da obra de arte na teoria estética do Primeiro Romantismo e, por conseguinte, em seu conceito de crítica de arte. O acesso do crítico à obra será realizado por intermédio da reflexão. O uso da reflexão como medium entre o artista e o objeto artístico é um dos mais caros fundamentos da teoria romântica e uma contribuição teórica inédita do estudo de Benjamin, como deixa claro Marcio Seligmann-Silva, na introdução à tradução brasileira de O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão:

Benjamin foi o primeiro a valorizar a teoria romântica da “Reflexão”(...). Benjamin define a crítica como um “médium-de-reflexão”(“Reflexionsmedium”). Na medida em que ele pôs este conceito no núcleo da sua tese, com todas as implicações de crítica ao modelo de teoria do conhecimento monológico, baseado na simples cadeia de causas e efeitos, e, portanto, de crítica também a uma concepção linear tanto do desenvolvimento do conhecimento como também do desenrolar da história.[1]

 

 O conceito de reflexão permitirá a Friedrich Schlegel e a seus pares a superação do juízo de valor reinante na crítica iluminista, ainda regida pelos valores aristotélicos da divisão dos gêneros literários. Isso implica em uma crítica que, assim como a poesia, assenta sua produção no princípio da poiesis e abandona o caráter valorativo sobre a obra de arte. Quanto ao valor da obra de arte pretensamente atribuído pelo trabalho do crítico, Benjamin infere o seguinte da compreensão primeiro romântica sobre o valor da obra de arte:

Pois o valor da obra depende única e exclusivamente do fato de ela em geral tornar ou não possível sua crítica imanente. Se ela é possível, se existe portanto na obra uma reflexão que se deixa desdobrar, absolutizar e dissolver-se no medium da arte, então ela é uma obra de arte. A simples criticabilidade de uma obra representa um juízo de valor positivo sobre a mesma; e este juízo não pode ser proclamado por uma pesquisa à parte, mas, antes, apenas pelo factum da crítica mesmo, pois não há nenhuma outra medida, nenhum critério para a existência de uma reflexão senão a possibilidade de seu desdobramento fecundo que se chama crítica.[2]

 

Ou seja: só será considerada obra de arte aquela obra que se deixar criticar, pois a crítica só é possível devido a uma característica imanente à obra, que a liga diretamente com a Idéia da arte. A circularidade do pensamento romântico também permite a visualização da conexão da obra com a unidade da Idéia, pois o desdobramento ininterrupto da reflexão visaria a um retorno místico a este Absoluto cuja percepção sensível é limitação física da arte, ou seja, sua forma.

 Embora os românticos considerem cada texto em particular uma unidade em si mesmo, a obra de arte, dentro da sua limitação formal, é também um fragmento atado de maneira imanente à unidade. Por isso os próprios românticos diziam que, ao contrário das obras de arte antigas, as obras de arte da modernidade não chegavam até o público em forma de fragmentos, mas já nasciam fragmentos. Como esforço de superação desta limitação formal do objeto artístico, faz-se importante o papel da crítica, pois através de seu papel poiético, de criação e ação ininterruptas, a obra poderá ser continuamente reexplorada e retrabalhada, em constante trabalho de recriação. Vale lembrar que a crítica e a poesia para os primeiros românticos eram, na maior parte das vezes, um mesmo trabalho indissociável.

Estes pressupostos nos auxiliarão, a partir de agora, a compreender como se processa a ironia romântica no tocante a sua relação direta com as obras de arte. Vale salientar que o conceito de ironia nem sempre foi bem compreendido, e esta incompreensão muito se deve à própria assistematização dos poetas-críticos, que não se preocuparam em organizar ou esclarecer vários pontos de suas formulações teóricas, muitas expostas de maneira obscura. Somado a isso, ainda encontramos leituras posteriores, como a de Hegel, que condenam sistematicamente a idéia romântica de ironia (Hegel atribuiria à ironia schlegeliana a alcunha de sofisma absoluto[3]). Para que possamos compreender este conceito, a recomendação de Walter Benjamin é a de que tenhamos em mente que a teoria romântica da obra de arte é a teoria de sua forma.[4]

A ironia romântica é uma reflexão aguda do escritor sobre a sua produção artística e, graças a isso, atribui-se a ela somente um processo arbitrário da vontade do poeta. Este caráter subjetivista é uma leitura recorrente dentre os estudos sobre o tema, pois estas teorizações costumam compreender a figura do poeta não como um veículo da Idéia da arte, mas sim como a personificação da própria poesia, traçando o perfil do poeta ilegislável, que se convencionou associar de maneira equivocada a todo e qualquer poeta romântico. Embora exista para Benjamin de fato uma vertente subjetivista no âmbito da ironia romântica, existiriam, na verdade, duas possibilidades da interferência da ironia sobre a obra de arte; além da subjetivista, ocorre também a ironia objetiva, ou ironia formal.

A ironia subjetivista é, de fato, uma investida da singularidade do poeta sobre a obra de arte, mas a interferência de sua reflexão limita-se, nesse caso, à matéria. No caso da ironia objetivista, ou formal, o alvo é a unidade da forma poética. Embora considere que a diferenciação entre ambas as modalidades de ironia não tenha sido suficientemente esclarecida pelos próprios românticos, Benjamin estabelece o contraste: a ironia da unidade da forma poética expõe um momento objetivo de dissolução da obra de arte. As comédias, sobretudo as de Ludwig Tieck, são o lugar privilegiado da reflexão irônica, pois o modus operandi da comédia implica um maior trabalho com a força ilusória e um conseqüente processo de desconstrução mais habitual do que em outros gêneros. Assim sendo, ela pode suportar com mais facilidade a ironia, sem que esta possa dissolvê-la completamente.

A ironia formal não é, portanto, como poderiam considerar alguns, um processo de destruição dos produtos artísticos, pelo contrário. Ela não visa à destruição ou à dissolução definitiva da obra; se alguma obra não suporta a investida do processo irônico, não se trata, na verdade, de uma obra de arte. O objetivo final do processo é identificar na conservação da estrutura formal da obra ironizada sua ligação direta com a Idéia da arte, pois, se empreendesse uma dissolução definitiva da obra de arte, a ironia não poderia ser considerada com um processo de viés artístico:

 

A ironização da forma, portanto, (...), ataca a ela mesma sem destruí-la, e é esta irritação que deve visar a perturbação da ilusão na comédia. Esta relação indica um parentesco patente com a crítica, a qual dissolve a forma de modo grave e irrevogável para transformar a obra individual em obra de arte absoluta, para romantizá-la.[5]

 

Retomando aqui a reflexão anterior sobre a conexão da obra de arte com a Idéia da arte, constatamos que a ironia formal pretende promover um movimento de ascese da obra sobre todo o condicionado.

           Logo, neste tipo de ironia, que surge da ligação com o incondicionado, trata-se não de subjetivismo e jogo, mas, antes, da assimilação da obra limitada ao absoluto, de sua completa objetivação que paga com sua eliminação. Esta forma de ironia provém do espírito da arte, não da vontade do poeta. É evidente que ela, assim como a crítica, só pode ser exposta na reflexão. [6]

 

E, nas considerações finais de Benjamin sobre a ironia:

A ironia formal não é, assim como a assiduidade e a sinceridade, uma atitude intencional do autor. Ela não pode, como é usual, ser compreendida como índice de uma ausência de limites subjetiva, mas, antes, deve ser apreciada como um momento objetivo na obra mesma. Ela representa a tentativa paradoxal de construir as conformações através da demolição: na obra mesma demonstra sua ligação com a Idéia.

 

 

 

 


 

[1] BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítico de Arte no Romantismo Alemão. São Paulo: Iluminuras/EDUSP: 1993. Tradução, introdução e notas de Marcio Seligmann-Silva. Pp.10 e 11.

[2] Ibidem, p.86.

[3]  OESTERREICH, Peter L. Ironie. In: SCHANZE, Helmut (hg.). Romantik-Handbuch. Stuttgart: Kröner, 1994. p. 354.

[4] BENJAMIN, Walter. Idem, ibidem. p.80.

[5] Idem, ibidem, p.91.

[6] Idem, ibidem, p.92.

 

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