O TEMPO E A MEMÓRIA NO POETA DA CONSTRUÇÃO

 

Norma do Carmo.

 

 

O ser humano está naturalmente sujeito à lei do esquecimento e vive com este em uma eterna luta, pois necessita combatê-lo e, ao mesmo tempo contar com ele. Talvez seja por esse motivo que a questão do tempo e da memória tem sido objeto de estudo desde a antiguidade. Esta comunicação visa a abordar essa questão no sentido específico dado às noções por Marcel Proust, segundo a leitura de Walter Benjamin, dialogando com o poema “O Profissional da Memória” do livro Museu de Tudo (1975) de João Cabral de Melo Neto, autor de uma poética profundamente espacializante.

 

Na concepção de Benjamin, o processo de memória proustiano nasce justamente de uma contradição essencial entre a extinção da memória e o desejo de salvar o passado do esquecimento. Proust estaria convencido de que literatura e memória são bem próximas e que para um escritor a realidade só se formaria na memória, assim, um objeto como, por exemplo, uma flor só se transformaria em uma flor verdadeira como objeto de memória. 

 

Ao partir dessa premissa, Benjamin nos propõe uma concepção do sujeito que, seguindo a herança de Proust, não restringe à afirmação da consciência em si, mas o abre às dimensões involuntárias inconscientes em particular da vida da lembrança e, inseparavelmente, da vida do esquecimento.

 

De acordo com a tipologia Proust/Benjamin, a mnemotécnica dos antigos baseava-se no princípio da sensorialização, ou seja, nos cinco sentidos: a visão; a audição; o olfato; o paladar e o tato. Dentre estes, era o da visão que prevalecia como o superior e mais próximo da razão, por esse motivo os conteúdos da memória também eram vistos como imagens mnemônicas.

 

Proust, em uma tentativa destruir essa concepção racional de memória, entende que a visão não deve ser o sentido privilegiado e nem considerado o mais inteligente, reconhecendo que os sentidos considerados como “inferiores” pelos antigos por apresentarem deficiência de exatidão compensavam esta falha com a durabilidade de suas impressões, sendo, portanto, extremamente importantes para a memória.

 

Essa sensorialização segue uma ordem descendente, deste modo, a lembrança da audição em Proust está relacionada à memória verbal podendo ser exemplificada por nome de pessoas ou de lugares. O olfato é um sentido importante em seu pensamento, pois até o cheiro da gasolina pode remeter a algo que já foi vivenciado, logo em seguida temos o paladar presente no clássico exemplo do biscoito para o chá (la madeleine) que faz com que o autor retorne a um passado bastante remoto, sua infância. 

 

Em relação ao sentido do tato, Proust foi bastante amplo, não limitando sua atuação apenas no toque das mãos ao corpo, mas também pensou em pontos específicos, como quadris ou ombros. Determinadas posições que se permanecesse em algum determinado momento poderiam invocar em quem dorme, em sonho ou ao acordar, rememorações há muito esquecidas.   

 

 Deste modo, esses sentidos “inferiores”, nos remetem à memória do corpo, e é somente por meio deles que temos acesso a um passado distante. O que inicialmente era uma lembrança do cotidiano (memória voluntária) vai sendo depurado de seus conteúdos habituais para cair em esquecimento e se transformar em memória involuntária, trazendo à tona o conteúdo poético.

 

Teríamos assim dois tipos de memória: a voluntária e a involuntária. A primeira, também denominada memória da inteligência, era considerada inútil para a literatura, por ser racionalmente dirigida e, deste modo, não fornecer um retrato verdadeiro do passado. Já a memória involuntária não é dirigida pela razão e não tenta invocar lembranças através de um esforço da vontade, sendo essencial para a poesia.  Esse tipo de memória pode aguardar sem pressa, até que depois de longos intervalos, algumas lembranças surjam por vontade própria.

 

Ao contrário dos objetivos imediatos a que a memória voluntária tem de obedecer, a memória involuntária utiliza os sentidos inferiores, sendo uma memória em longo prazo, que abrange o tempo e a vida da pessoa, podendo ocorrer um longo intervalo de tempo entre a percepção sensorial e a vivência lembrada. Ela passa por um esquecimento longo e profundo.

 

Sendo assim, no início do processo proustiano há uma memória voluntária submetida a todos os objetivos cotidianos possíveis. Esta se despede de seus conteúdos assim que o valor utilitário deles se esgota, tranferindo-os para um esquecimento igualmente cotidiano. Para a poesia, essa memória não é importante. Somente quando o esquecimento durou tempo suficiente para se tornar bastante profundo é que a memória involuntária pode agir e resgatar desse abismo, de maneira espontânea, sentimentos ou sensações jamais pressentidas que não possuem a menor possibilidade de ocorrer e que por esse motivo são humanas e profundamente poéticas. Podemos, portanto, em Proust existe uma poética do esquecimento, mas que ao mesmo tempo é uma poética da lembrança.

 

Esta temática do tempo e da memória também aparece em alguns poemas de João Cabral. Apesar de ser considerado um poeta espacializante, Cabral faz uso dessa concepção em Pedra do sono (1942), como, por exemplo, no poema “Dentro da perda da memória”, em Serial (1962) e novamente no livro Museu de Tudo (1975) do qual foi extraído o seguinte poema.

 

O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA

 

Passeando presente dela

pelas ruas de Sevilha,

imaginou injetar-se

lembranças, como vacina,

 

para quando fosse dali

poder voltar a habitá-las,

uma e outras, e duplamente,

a mulher, ruas e praças.

 

Assim, foi entretecendo

entre ela, e Sevilha fios

de memória, para tê-las

num só e ambíguo tecido;

 

foi-se injetando a presença

a seu lado numa casa,

seu íntimo numa viela,

sua face numa fachada .

 

Mas desconvivendo delas,

longe da vida e do corpo,

viu que a tela da lembrança

se foi puindo pouco a pouco;

 

já não lembrava do que

se injetou em tal esquina,

que fonte o lembrava dela,

que gesto dela, qual rima.

 

A lembrança foi perdendo

a trama exata tecida

até um sépia diluído

de fotografia antiga.

 

Mas o que perdeu de exato

de outra forma recupera:

que hoje qualquer coisa de um

traz da outra sua atmosfera.

 

O próprio nome do livro, Museu de Tudo, indica uma idéia de temporalidade, pois o museu é o lugar onde guardamos os objetos valiosos que desejamos preservar da ação do tempo. O museu, portanto, é a garantia de que as coisas até então resistentes por si mesmas sejam protegidas da destruição, como uma espécie de arquivo ampliado ao nível coletivo da memória voluntária individual.

      

Nas quatro primeiras estrofes de “O Profissional da Memória”, poema em que o próprio nome já parece uma estratégia de defesa contra o tempo, nos deparamos com um poeta determinado a construir um acervo bastante organizado da memória. Para tal, assim como os antigos, ele parte de uma mnemotécnica dos sentidos, ou seja, de uma atitude científica baseada inteiramente na visão, com o objetivo de tentar escapar da atuação destruidora do tempo. Em seu pensamento inicial, este processo metodológico e racional seria o que melhor poderia garantir o bom resultado de sua construção.

 

A partir dessa premissa, o poeta passa a promover a espacialização do que organizadamente pretende guardar em seu tecido de memória, como pode ser visto nas quatro primeiras estrofes do poema. Assim, ele vai tentando guardar em seus fios de memória as lembranças de todos os momentos vivenciados em Sevilha.

 

Esse ato de tecer a memória parece iniciar uma ligação entre o conceito de memória proustiano e o poema, pois nos lembra a metáfora do véu tecido por Penélope citada no ensaio de Benjamin sobre Marcel Proust. Penélope faz e desfaz sua tecelagem, assim como o poeta faz seu tecido de memórias e o vê sendo desfeito pela força do tempo.

 

Ao tecer esses fios, o poeta se coloca atento a cada detalhe que pode captar em sua visão: “a mulher, ruas e praças”, como se tentasse guardar em sua memória fotografias de toda a sua vivência, para que consultando futuramente este acervo consiga reencontrar cada acontecimento que foi registrado com base no rigor e no método.

 

No momento em que o poeta acaba seu tecido de lembranças, quando deixa de conviver com as mesmas, pois já se encontram distantes de sua vida e, principalmente do seu corpo, ele percebe que não consegue mais lembrar daqueles momentos que havia injetado tão racionalmente em si mesmo como vacina. As lembranças organizadas em seus fios foram aos poucos “perdendo a trama exata tecida” devido à ação do tempo.

 

Como se dialogasse com o conceito de memória proustiano, o poema vai caminhando a cada verso para uma ampliação de sua técnica do sentido, passando a dar valor para uma memória do corpo que também se baseia no olfato, e principalmente no tato. Quando a vida e o corpo do poeta param de conviver com aquelas lembranças é praticamente impossível haver uma rememoração, pois o fio tecido se parte.

 

Assim, o profissional da memória comete uma falha enquanto profissional, para triunfar como um servo da memória involuntária em toda sua autonomia, pois se não podemos exercer um controle rigoroso sobre a mesma e nem é necessário, podemos obter de sua ação espontânea um resultado ainda mais satisfatório. 

 

Ao tentar reconhecer que falhou, ao mesmo tempo, o poeta vai reconhecendo a dimensão profunda existente em outro tipo de memória, aquela presente nas concepções de Proust/Benjamin e que é superior a este esforço realizado pela memória voluntária submetida a todos os objetivos cotidianos possíveis e que acompanham a vida habitual. A partir desse pensamento contido na última estrofe, o poeta assume que através de uma outra experiência provinda de qualquer natureza sensorial, pode se trazer de volta aquela lembrança já totalmente esquecida, reforçando o valor que passa a ser dado aos outros sentidos. Pode-se reconhecer, portanto, o triunfo da memória involuntária, que aparece sempre como sendo a mais eficaz no empreendimento de fazer reviver o passado no presente.

 

Deste modo, o profissional da memória passa a considerar o esquecimento como algo essencial para a retomada de suas lembranças, pois somente quando se deixa a memória banal voluntária cair em um esquecimento profundo e duradouro, tem-se acesso à memória poética involuntária que possui o poder de curar o nosso medo da destruição causada pelo tempo e da morte.

 

Bibliografia:

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, vol. 1, 1987.

GAGNEBIN, J. M. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva,  1999.

 

MELO NETO, J. C. “O profissional da memória”. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. 

 

WEINRICH, H. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  
 

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