A Mobilidade Essencial do Sujeito Pós-Moderno na Poética de Ana Cristina César

 

Ana Renata Baltazar da Penha

  

 Neste momento histórico, em que os papéis sociais e as identidades culturais são flexibilizáveis, de que maneira o Homem globalizado, ao se deslocar aceleradamente por diversas realidades, articula seu pensamento? Poderia o pensamento racional formular respostas únicas para as questões íntimas do sujeito fragmentado de nosso tempo? Como configurar a noção de identidade pessoal do sujeito pós-moderno?

 

 Pretendo, nesta comunicação, problematizar tais questões, próprias do Homem pós-moderno, a partir do poema intitulado “Travelling”, de Ana Cristina Cesar, escritora brasileira contemporânea, nascida em 1952 sob o ritmo urbano alucinante da metrópole carioca, tradutora com formação na Inglaterra, e realizadora de pesquisas sobre mídia cinematográfica; falecida, aos 31 anos, na condição de um sujeito em profunda crise pessoal.          

 

Primeiramente, pensar o sujeito pós-moderno significa distingui-lo, sem contrapô-lo (posto que a pós-modernidade não nega em definitivo as pressuposições de períodos anteriores da História, mas reatualiza-as), de outras formas de se elaborar a subjetividade. Nesse sentido, caracterizamos o sujeito do Iluminismo como um ser racional, centrado, unificado, totalmente consciente de seus atos e constituído de uma essência interior definidora de seu caráter individual, a qual não se modifica durante toda a sua vida. Portanto, toda reflexão solucionadora dos problemas existenciais de tal Homem deveria ser desenvolvida em torno de uma busca por tal essência fixa e imutável, supostamente reveladora de sua identidade verdadeira e única.

 

Como nos lembra Julia Kristeva, tal noção de identidade inteira do individuo moderno, para Lacan, se inicia na “fase do espelho”, momento em que a criança, na sociedade burguesa patriarcal, cujos papéis sociais são bem determinados, entra na ordem de representação simbólica da linguagem e da cultura, por meio de fantasias com os representantes de poder e de afetividade de seu ambiente familiar. A partir destas, seria levada a visualizar a imagem de seu eu refletida no espelho ou “figurativamente, no espelho do olhar do Outro”(STUART HALL), como coesa, ainda que, na idade em que esse processo se realiza, o ser vivencie vários afetos contraditórios em relação às pessoas que com ele convivem e ao seu próprio corpo. Por não ser solucionada, tal divisão de sentimentos permanece durante toda a vida do indivíduo, sem que este se conscientize disto, na medida em que continua a se reconhecer como um eu único e homogêneo.

 

Já o sujeito pós-moderno, segundo Hall, além de ter aprendido (na academia ou nos resquícios da sua cultura), que, para Marx, a sociedade de classes influencia intensamente as supostas escolhas individuais; que para Freud, nosso inconsciente não funciona sob a lógica da razão; que, para Saussure, a língua, antes de ser um sistema individual, é coletivo; e que, para Foucault, o indivíduo e seu corpo são submetidos, ainda que não se perceba, a um poder disciplinar, vivencia a perda das certezas quanto aos seus papéis relativos ao gênero, à classe social, à etnia, à nacionalidade, no sistema social, transitando por diferentes realidades sociais, culturais e virtuais no processo de globalização. Em conseqüência, modifica a noção unificada e estável que tinha sobre a sua própria subjetividade, isto é, sobre o “centro”(essencial) de seu eu, percebendo-se, dessa forma, como um ser provisório,  fragmentado e em constante transformação.

 

Vejamos, então, no poema pós-moderno denominado “Travelling”, do livro de Ana Cristina Cesar de título A Teus pés de 1982, que o olhar sobre a subjetividade do eu não é definido pelas lentes de uma câmera em panorâmica, cujo movimento se realiza a partir de um centro imóvel, mas por meio de um travelling, em que a “câmera na mão” acompanha a mobilidade de quem olha, revelando um sujeito que possui um centro essencial que se altera, para quem, mais significativo do que uma suposta essência fixa e unificada do seu ser é a possibilidade de vivenciar modificações ao longo de sua trajetória de vida como um eu múltiplo.

  

 

Travelling

 

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu

                                                           Lugar.

Guardo os papéis todos que sobraram.

Confirmo para mim a solidez dos cadeados.

Nunca mais te disse uma palavra.

Do alto da serra de Petrópolis,

com um chapéu de ponta e um regador,

Elizabeth reconfirma, “Perder

É mais fácil que se pensa”.

Rasgo os papéis todos que sobraram.

“Os seus olhos pecam, mas seu corpo

não”, dizia o tradutor preciso, simultâneo,

e suas mãos é que tremiam. “É perigoso”,

ria a Carolina perita no papel kodak.

A câmera em rasante viajava.

A voz em off nas montanhas, inextinguível

fogo domado da paixão, a voz

do espelho dos meus olhos,

negando-se a todas as viagens,

e a voz rascante da velocidade,

de todas as três bebi um pouco

sem notar

como quem procura um fio.

Nunca mais te disse

uma palavra, repito, preciso alto,

tarde da noite,

enquanto desalinho

sem luxo

sede

agulhadas

os pareceres que ouvi num dia interminável:

sem parecer mais com a luz ofuscante desse

                             mesmo dia interminável

                                          CESAR, pág 73)

 

No poema em questão, o sujeito inicialmente pretende “recoloc[ar] a casa toda em seu lugar”, buscando-se como um todo homogêneo, constituído em um tempo de seqüência linear, documentado “nos papéis todos que sobraram”, “confirm[ando] para [si] a solidez dos cadeados”. No entanto, suas memórias o reconstituem por meio de um “senso histórico verdadeiro”(FOUCAULT), no qual nenhuma inteireza é preservada sob os “acontecimentos perdidos”(FOUCAULT), e o sujeito, cuja história pessoal não é contínua, “rasg[a] os papéis todos que sobraram”, passando a rememorar sua trajetória de vida sob uma dinâmica temporal, em que o passado, o presente e o futuro (como potencialidade) acontecem simultaneamente, o que lhe permite movimentar-se no tempo, já que não escreve no momento exato em que os fatos aconteceram, e no espaço, ao relembrar de imagens que foram visualmente registradas, como a de Elizabeth “do alto da serra de Petrópolis, /com um chapéu de ponta e um regador ”.

   

O caráter provisório do sujeito, no poema, também está presente na necessidade de confirmar o que se tinha dito, na medida em que, ao longo do tempo, o que se diz e o que se escreve podem mudar: “Elizabeth reconfirmava”; e no trecho em que, após já ter afirmado uma vez “nunca mais te disse uma palavra”, escreve novamente o verso, acrescentando os termos “repito, preciso alto”. Além de que o tradutor por ser “preciso”, tem de ser “simultâneo”, pois, caso espere o momento seguinte para traduzir o pensamento ou o sentimento do eu, pode apenas registrar o que já não é: “dizia o tradutor preciso, simultâneo, e suas mãos é que tremiam”.

      

Estas reflexões da autora, nos remetem ao pensamento de Valéry, que, na primeira metade do século XX, já pensava sobre a relação entre o movimento, o tempo e a percepção sobre os objetos. Para ele, a vida é movimento e o observador de sabedoria, quando reflete sobre um assunto específico, que se torna o centro de sua atenção, não pensa a partir de conceitos imutáveis, pois “o que é fixo ilude-nos e o que é feito para ser olhado muda de comportamento [até mesmo o próprio corpo do pensante em relação a sua posição frente aos demais objetos]” (VALÉRY, pág 134), sendo assim, desloca-se em seu pensamento, em devaneio, redescobrindo o objeto olhado, sob um movimento diferente daquele do cotidiano. A partir dessa nova ótica, o que é visto apresenta detalhes que se assemelham aos de outras formas relembradas, e pode-se, então, estabelecer analogias entre coisas aparentemente díspares, o que permite que se chegue a conclusões geniais de caráter visionário. Tal método de descoberta nos lembraria, portanto que, de acordo com o autor, de que só vemos a gota como uma linha contínua, as diversas vibrações do som, como sendo apenas uma unidade, e o papel como uma superfície plana em função de uma determinada escala de velocidade e de luz, que nos possibilita ver a definição supostamente estável dos corpos.

 

A atualidade do pensamento de Valéry, quanto às alterações provocadas pelo movimento na percepção das formas dos objetos, talvez derive do fato de que, na pós-modernidade, o homem desloca-se tão aceleradamente por espaços reais e virtuais que parece estar sempre no mesmo lugar, sentindo o vazio de não se chegar a lugar algum (VIRILIO, Paul; In: LIMA, pág 224) . Este movimento inerte,  ao mesmo tempo que nos torna capazes de visualizar os espaços contemporâneos de distâncias aproximadas como se fossem identificáveis, por não lhes vermos os detalhes, tende a mascarar as profundas modificações existenciais vivenciadas por esse ser pós-moderno em sua trajetória de vida no contato cotidiano com realidades inesperadas, das quais quer se proteger com “a solidez dos cadeados”, no silêncio de quem “nunca mais disse [ao outro] uma palavra” e na “sede” de enxergar o mundo como um lugar reconhecível, “como quem procura um fio”.

 

No entanto, mesmo movimentando-se sob um ritmo que não permite que se torne consciente das causas de sua própria dor de desamparo, sentida como “sede” e “agulhadas”, ao eu, ainda resta a escolha de rememorar, no tempo descontínuo do devaneio. Neste, por meio de associações entre os espaços vistos, o recordador pode deixar de se perceber como “uma luz ofuscante [de um] dia interminável” que se cega para as mudanças que o acometem,  e tomar consciência de que não via com clareza os resultados de sua trajetória sobre sua própria subjetividade, dividida pelas “vozes” diferentes que compõem o movimento,   conforme observamos em: “a voz em off nas montanhas, inextinguível/ fogo domado da paixão, a voz/ do espelho dos meus olhos,/ negando-se a todas as viagens,/ e a voz rascante da velocidade,/ de todas as três bebi um pouco/ sem notar”.

 

Tal rememoração libertadora, que permite ao sujeito refletir sobre seu próprio tempo pós-moderno, utilizando as ferramentas do seu momento histórico impregnado de recursos midiáticos é possível, segundo o raciocínio de Bergson, , porque a consciência, enquanto força vital que nos permite agir sobre a matéria, transformando-a criativamente e prevendo as possibilidades do objeto sobre o que ainda não aconteceu, é memória. Esta, para o autor, seria regida pelo tempo da duração, que conserva o passado na íntegra, mesmo quando “extraordinariamente longo”( BERGSON, pág 71), em diversos níveis, superficiais e profundos, de memória. Assim, tanto as experiências percebidas pelo corpo em sua interação com os objetos, como todos os  detalhes que configuram a História da matéria  observada,  não apreendidos pela percepção permaneceriam  preservados. Portanto, a consciência é “um traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro”(BERGSON, pág 71), que mantém  o passado como novidade e o futuro como ação.        

  

Um outro pensador visionário, do início do século XX, que pode dialogar com o poema “Travelling”, foi Bakhtin, para quem toda linguagem, como produção de sentido, é uma prática dialógica que se estabelece no nível da interação verbal entre enunciador e enunciatário, ou no interior do próprio texto, como intertextualidade. No primeiro caso, a interlocução é determinada na interpretação do discurso pelo enunciatário e na persuasão do enunciador, que pretende comunicar a mensagem. No segundo, a dimensão intertextual, que precede a textual, se estabelece no interior do próprio texto, formando um tecido constituído por diferentes vozes polifônicas, provenientes de diferentes tempos e espaços contextuais, da tradição cultural, mesmo nos escritos em que se utilizam estratégias discursivas monofônicas.

 

 Julia Kristeva, partindo dessa perspectiva dialógica do discurso, questiona o uso do termo intertextualidade, considerando que este pode ser entendido de maneira superficial, como restrito ao nível de simples estudo de fontes bibliográficas. Por isso, prefere o termo transposição, que permite especificar que, ao aceitarmos a possibilidade de ocorrer um diálogo interno no sistema de signos que compõe um texto, deve-se considerar também que toda prática enunciativa é uma rede composta por vários sistemas de signos transpostos em um jogo com outros textos, e que o enunciador ou a matéria representada não são “singulares, completos e idênticos a eles mesmos”, mas múltiplos e divididos.          

 

Nesse sentido, o papel de centro da interlocução, que era atribuído ao sujeito, passa a ser ocupado pelo lugar criado pelo “eu”, pelo “tu”, e pelas inúmeras vozes que ambos transpõem para o discurso. Em conseqüência, o sujeito passa a ser entendido, simplesmente, como um efeito lingüístico, não restrito a um pensamento proveniente de uma fonte homogênea, a qual, para existir, deveria estar fora da linguagem.

 

No poema “Travelling”, além do diálogo com o interlocutor de suas memórias, “nunca mais te disse uma palavra”, e a resposta de  Carolina “é perigoso”, o eu cita um verso de Elizabeth Bishop “perder é mais fácil que se pensa”, e o verso traduzido “os seus olhos pecam, mas seu corpo não”. No entanto, o dialogismo que se estabelece no interior desta poesia pós-moderna transcende as marcas textuais aparentes, revelando um eu múltiplo, e de centro essencial móvel, em toda “malha dos significantes que a compõem”(BARTHES). Não poderíamos, então, distinguir nela o que Armando Freitas Filho reconhece como traço identificador de Ana Cristina César: aquela que consegue, em sua poesia, “pegar o pássaro sem interromper o seu vôo”?          

 

 

  

Bibliografia:

BARROS, Diana Luz Pessoa de (org) & FIORIN, José Luiz (org). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade, Ensaios de Cultura 1, ed USP, São Paulo: 2003 

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a recordação do corpo com o espírito. Tradução: Paulo Neves. Martins Fontes, São Paulo: 1999 

CESAR, Ana Cristina. A Teus Pés. Ed Ática, São Paulo, 1999 

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós- Modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.  Ed DP&A, Rio de Janeiro, 2002 

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Tradução: Ricardo Cruz, ed Imago, Rio de Janeiro, 1991 

LIMA, Regina Helena Souza da Cunha. O Desejo na Poesia de Ana Cristina Cesar: (1952/ 1983) escritura em t(e)s. Ed Annablume, São Paulo, 1993 

KRISTEVA, Julia. “Linguistcs, Semiotcs, Textuality”. In: MOI, Toril (edited) The Kristeva Reader. Columbia University Press, New York: 1986 

VALÉRY, Paul. Variedades. Tradução: Maiza Martins de Oliveira, ed Iluminuras, São Paulo: 1999        

  

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