ATRÁS DA FLOR AZUL ou A CABEÇA REDENTORA

 

 

Estava numa plataforma terrestre de onde por átimos de segundos parecia ver a super-realidade do que é verdadeiramente real.

(LISPECTOR, 1973, p.27)

 

      Nessa plataforma terrestre, vi a flor azul de Trakl, tomada de empréstimo de Novalis[1]. São todos alemães e românticos. São todos profundos e inúteis. A flor azul, no entanto, permanecia ali, na plataforma e era ela o trem que deveria me tomar e me levar a super-realidade do que é verdadeiramente real. Estava tão cansada que nem pensei em colocar sapatos ou ajustar o cinto, nem quis compor uma ode de despedida pois o único que sabia fazer naquele momento era sentir o aroma da flor azul e me deixar levar para algum lugar. Algum. Algo de um e já estaria bem. Minha visão estava turva de letras e de números e de prazos e de tentativas frustradas de dominar e calcular. A super-realidade do que é verdadeiramente real me esperava (o algo de um espera a gente). Deixar-me ir, deixar para trás o uniforme, as zonas equivalentes. Onde está o espaço prometido, a terra convertida nesse trilhar urbano, ainda promessa bíblica? Um homem desperta, eu vejo. Ele treme angustiado. Que espaço é esse, todo igual, todo opaco, no virar das esquinas e no atravessar e no aguardar sinais? Existiria mesmo esse famoso habitar que move as multidões até aqui, espaço urbano?

      Escolho o espaço urbano como um mambembe espaço poético. Que ele matize o afeto que se encolhe antes da tomada do trem na plataforma onde encontrei a flor azul.

 

***

 

      Esperem, não me acompanhem. Encontrei um aviso antes de embarcar: aviso aos senhores e senhoras por acaso leitores deste artigo: depositem com calma suas flores azuis no assento pois a destinação à cidade foi adiada. Repito: adiada. Esse trem está sendo sequestrado para o mar. Repito: para o mar. Nossa pretensão é que todos se entreguem a esse outro azul. Dêem adeus aos alemães. Aliás, não se despeçam como para sempre. Vejam a flor azul de Novalis se desfazer no mar. Vejam o mar como um desvio da cidade, dentro da cidade. Quanto à esperança de chegar a habitar algo de um lugar, não há mudança de planos. Mas levantamos a questão. Será redentor, apesar de romântico o desejo de construir, tanto construir uma cidade, quanto a construção pela escrita? Agora mesmo estou a construir pequenas rampas de desembarque do trem para que assim vocês possam saltar da plataforma terrestre para a marítima, e enquanto desvio o meu olhar da cidade, enxarco esse papel com o desejo de falar simplesmente sobre a escrita. A escrita marítima é um desvio no projeto original, mas ainda permanece como projeto?

 

ESCRITA MARÍTIMA

 

Em que sentido gostaria de dizer do mar aberto? Talvez do sentido azul profundo. Talvez Emily Dickinson que nunca viu o mar saiba muito mais dele do que qualquer um que nunca se atreveu a sentir a sua profundidade. (“A Lua é distante do Mar - / Com mãos de âmbar, porém, / Ela O conduz – Menino dócil - / Às praias que lhe convêm.”(1999: 41) O profundo que ela diz é reflexo de um Infinito, de um Aberto.

Então, até agora: mar é sinônimo de aberto, e de profundo-reflexo do infinito. O que é isso de aberto e profundo?

É o coração a pulsar na garganta e alguém-peixe-fora-d’água, mal respirando com a boca, que tem de se abrir para puxar o ar para os pulmões. Isso é se sentir em plena “segurança” do ar livre. Mas essa segurança não existe e certamente não existe a possibilidade de sentir a liberdade do ar circulante. Quem disse então, que o melhor jeito de morrer não é se afogando? Para nós, seres humanos, peixes fora d’água, talvez o melhor seja voltar ao pleno dos pulmões totalmente dilatados; a humanidade recolhida à ancestralidade marítima. Se deixar afogar e entrar-entrar, sem pestanejar, como Alfonsina Storni, que escolheu o mar como lugar para morrer (“um camino hasta el confín”- 1949:162).

Quando Clarice Lispector descreve a entrada de Lóri no mar, cita sua coragem de se pôr diante-de (“aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos.”); prediz encaminhamento (“entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada”); elogia a leveza e a presteza (“a coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. ...Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas.”). Há encontro com tudo ao redor (“o cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular”); há alegria (“o sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada”); há atenção (“mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. ...Quer ficar de pé parada no mar. ...Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação.”); e há gratidão (“está brilhando de água, de sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. ...Sabe que fez um perigo ...tão antigo quanto o ser humano.”). (1973: 82-5)

Ao entrar no mar, não se pode querer controlá-lo. Diz, em seu poema, Dickinson: “Apenas a Lua, com suas mãos de âmbar pode conduzi-Lo”(1999: 41). Adeus ao controle. O mar: reflexo do céu, única possibilidade de infinito na terra. Como um berço, é a porção possível de trazer do céu a experiência da infinitude. Mas o Mar, como um papel de presente, envolve quem nele mergulha de um jeito que não tem metodologia que dê conta. Ele levanta Lóri de madrugada e a faz náufraga. Ele levanta Clarice Lispector e a faz, náufraga, escrever em sua casa.

Como ser humano, o que é preciso fazer: ir ao mar diretamente ou escrevê-lo? Clarice escreve, Lóri mergulha. Emily escreve e escreve, sem nunca tê-lo visto. O seu mar escrito é consolador no dentro do escritório; consola a todos os náufragos, seres humanos nostálgicos da Imensidão (“Senhor! É Tua a Mão de Âmbar - / E meu – o distante Mar – / Obediente ao menor comando / Que me impõe o Teu olhar.“). Alfonsina, que tinha o mar constantemente sob o olhar, e nele entrou e entrou, deixando para trás a escrita e a vida, é uma espécie de despertador. Enche o escritório de maresia e também de êxtase, para além de náufraga, ela passa a ser parte (“me aligero: / la carne cae de mis huesos. / Ahora. / El mar sube por el canal / de mis vértebras.”) (1949, p.163). E  o escritório está cheio de ondas. É preciso testemunhar a maré, ser o faroleiro a sinalizar pela escrita o movimento do mar. Com a camada de mar recolocada e relembrada sobre os ombros da humanidade, talvez se possa respirar melhor ao “ar livre”, sem se deixar morrer pela sensação do peixe fora d’água.

Escrever é deixar se envolver pela falta de controle e pela impossibilidade de uma metodologia, de uma técnica que tudo abarque. O que significa dizer: estar apartado de um projeto individual ou obediente a um gênero. O que não quer dizer que, enquanto se flutua em águas desconhecidas, não se encontre com pedaços dessas velhas embarcações: diários e romances, teorias literárias e formatos.  O que não quer dizer também que na escrita marítima, não se torça para que alguém leia o fio de letras, rastro de vida que a escrita vai fazendo, permitindo que a humanidade se adentre no profundo e no aberto e que mesmo assim respire. A escrita é um cordão umbilical. Escrever permite respirar no fundo, sem sufocar de tanta abertura.

Pela escrita, se pode ser Lóri, personagem. (Maravilhoso ser personagem de Deus. Se deixar ser sua invenção, vida vivida como romance de Deus, sem saber da próxima página e assim mesmo conversar com o Autor e influenciar a História.) Pode-se ser também Clarice pela escrita. (Mais uma maravilha: juntar palavras, deixando que elas formem um oceano, que corram rios, estrondem cachoeiras e ondas, sonoramente. A beleza de escrever faz reviver a criação no instante mesmo em que ela se faz. Escrever é paródia da criação.) Pode-se ser também Alfonsina, entrando e entrando, deixando morrer a pessoa Alfonsina, indiferenciando-se do que se escreve, sem se importar com as amarras do lógico, sem precisar de ninguém mais que seja leitor, salvador, alguém que recolha o escritor náufrago. Escrever como morte, sem precisar de reconhecimento, de prêmios, de editoras. Talvez o escritor moderno não se convença facilmente disso, mas em algum momento ele tem de autenticamente matar o Projeto. A escrita nasce assim, só assim entra no mais profundo e arcaico da terra, que é o mar. Pode-se ser também Emily e imaginar, transpôr-se, ser muito além da condição, da circunstância, da limitação do lugar e da época. Ser Emily e poder mesmo já estar morta e continuar escrevendo; é ser fantasma e continuar escrevendo; é tornar completamente inúteis as fronteiras; é saber-se parte de um Todo existente, de qualquer ponto da terra. Do escritório, com o Todo existente.

O mar, esse Todo aqüoso, dissolvido e dissolvente, que não nos deixa ser inteiramente sólidos e que desfaz qualquer papel, é Ser presente em cada respiração humana, estando o homem no deserto ou no escritório. Amar esse Ser é se fundir com o mar, sem que importe o cálculo da distância. Escrever é se fazer um lugar do mar ser; é se tornar um embaixador distante da pátria marítima e defender seus interesses, como um ser abissal feito da sua matéria orgânica: salina, móvel e cheia de pequenas bocas constantemente se abrindo para o alimento invisível que é o plancton. A escrita marítima é Clarice, é Lóri, é Alfonsina e é Emily. A quaternidade. Humana, sobrehumana, terrestre e volátil. No sereno, frio, nutritivo e totalmente envolvente mar.

Mas como é possível dizer isso daqui do seguro escritório? Na frente do verdadeiro mar, o escritor poderia entrar e entrar sem medo? Esse medo pode até existir, mas já não importa. Se a pessoazinha-escritora tem medo, ela que fique para trás. A escrita lhe fará uma embarcação, tecerá uma corda e a resgatará. Náufraga do medo, ela que se segura firme na corda da escrita e assim poderá ir entrando, entrando. A escrita é pois uma ilusão? É uma vida não vivida, na qual se finge ir para o mar quando na verdade se está no escritório? A pessoazinha-escritora se pensa assim, acaba por querer cortar a corda. Prefere talvez chorar na margem e chorar à beira do mar como se ele fosse um imenso túmulo onde está enterrada a aventura de viver.  Verdadeiros e viventes serão então aqueles que mergulham e que não escrevem? Verdadeira seria Alfonsina e não Emily? Verdadeiros os pescadores, os mergulhadores profissionais, os velejadores, os ...? Os? Seria verdadeira uma sereia? Verdadeira como Lóri? Invenção de um Deus inventado por algum povo desesperado do deserto? E se todos esses pontos de interrogação forem, mas também não forem verdadeiros?  A armadilha é um redemoinho, faz o escritor virar uma âncora a se enterrar no mesmo lugar, sem poder sair, afogando em pontos de interrogação.

Não é possível questionar a corrente do mar, ela é como um vento. Escrever é escrever tal como o vento vem, sem perguntar por que vem, da onde vem, e se vai parar daqui a pouco. Escrever sem valorizar, pesar, analisar a brisa é aceitar cada sopro e agradecer. Acenar para todos a quem encontrar (incluindo leitor, editor, crítico, mas incluindo também o pescador que goza o mar à sua maneira, pacientemente, a espera de um peixe e a espera de nada) e seguir, entrando e entrando, sem esperar o aceno de volta, para continuar entrando e entrando. Do horizonte, rompe-se a linha de ser de-acordo-com, segundo regras. Do horizonte, a escrita fina, a mais fina, contínua e descontinuada pelo aparecimento de navios, gaivotas, marinheiros, cheiros, adornada por esse colar de gente adoradora. O horizonte amado. O altar marítmo. A escrita desse sagrado, sacrário. É. O mar. Mar. A Mar, mãe da terra.

 

***

 

      Termino então. Esse desejo ou hipertexto ou “barriga” no texto surgiu como um desejo fora do projeto, e talvez essa quebra tenha sacrificado a geometria figurativa representada por um artigo mas a mesma flor jogada no mar é que nos faz novamente aportar na cidade, recolocar o pé na terra e a reencarnar agora o operário que mexe no cimento e constrói um local de morar. Como abissais, retornamos anteriormente ao mar. Como anfíbios, dele retornamos para unirmo-nos à espécie dos construtores persistentes, sobreviventes e super-existentes, ou seja, criativos. Há algo desse um de todos nessa construção que ainda se faz. Por sob as camadas de asfalto exala-se um forte odor de desafio.

      Construir, constrói-se, construo: edificar, edifica-se, edifico: cultivar, cultiva-se, cultivo. Ah! Enfim habitar, habita-se, habito. Enfim, a poesia permanece. Posso ver, na experiência mesma cotidiana do homem, no habitual, sobrevive o algo de um, a super-realidade do verdadeiramente real. (HEIDEGGER, 2002: 127)

      Olhai pro mar? Olhai pro chão! As calçadas se prolongam indefinidamente. E às vezes, arrasta-se com violência um papel ou uma folha. Ou uma flor azul como um retrato em 3X4 do mar.

      Existe um abraço mar e cidade que se vislumbra aqui. Sonhar no mar, sonhar na Rua Figueiredo Magalhães. Afinal, pode-se atravessar a rua em estado de devaneio? Nesse devaneio, reaparece a flor azul. Trata-se de um obrar mitológico-espontâneo. O lugar dela é o deslocamento. É preciso imaginar muito para “experimentar” um lugar. E se a imagem parece exagerada; é preciso exagerá-la mais um pouco ainda. “Prolongando o exagerado, temos possibilidade de escapar aos hábitos da redução” (BACHELARD, 2000: 222) e “sem exagerar, como viver? Como atingir, sem exagerar? O exagero é o único tamanho possível para quem é pequeno.” (LISPECTOR, 1970: 237)

      Subjaz nas loucuras do poeta, a cidadã desvairada que se deixa guiar pela flor azul, pelo mar azul e pelos becos escuros; a esperança mesmo que pousada no absurdo, uma busca redentora mesmo que entre os escombros. Assim, manto azul pode envolver o desfalecente (imagens de TRAKL, em “À noite”, 1994: 49). Se nos esforçarmos em perceber o poder de formação (de Bildung) das ruínas, “a força educativa da plenitude de formas ao redor da indivíduo”, como quis Goethe, estaremos talvez em atitude demasiadamente romântica. Mas não há formação sem contínua deformação ou des-formação. A formação talvez exista, a experiência pedagógica do olhar talvez se dê, mas se esvai com a mesma facilidade. Não nos acabamos nunca. Sob a égide desse viver paradoxal, cada lugar é individualizado e ilhado em sua aparição” (SOUZA, 1986:44).

      Será que cada coisa pode ser mesmo um tempo congelado e que se descongela? Uma permanência e uma fugacidade? Nesse sentido, a sensação de estranheza do deslocado talvez se dê pela sua exagerada e profunda sensação de alocamento em que a pele parece sempre em arrepio por estar sempre sendo tocada por algo.  O deslocado vê-escuta demais. Tempo que se espacializa presente. Espaço que se temporaliza passado. Mas o que há por vir? Onde se aloca o futuro na cidade? Nem no tumulto, nem nas varandas de ferro forjado. O futuro tem também o seu lugar na coisa concreta, na aparência, em sua atualidade. A verdade é que procuro ler Lispector, Trakl, Storni, Dickinson de forma redentora. “Redentora” aqui quer dizer lugar de redenção, de reunião das várias dimensões do ser. Redimir é resgatar, perdoar, salvar de uma situação desesperadora. Cristo, diz a Igreja Católica, morreu na cruz para redimir os pecados da humanidade. Princesa Isabel é chamada “A Redentora” porque resgatou os negros de sua situação de escravidão, através de uma lei. Redenção: através de uma lei divina ou através de uma lei jurídica? Parece que não se pode negar o efeito, caso pudéssemos isolar a lei como causa. Mas a lei não existe isolada. Trakl, guia que se fez azul, expira agora o poema “Aos emudecidos” e auxilia a pensar a redenção no contexto urbano-humano a que nos propomos.

 

Oh, o desvario da grande cidade quando à noite

Árvores aleijadas enrijecem junto ao muro preto.

Da máscara de prata espreita o espírito do mal.

A luz oprime a noite pétrea com látego magnético.

Puta que nos tremores gelados pare uma criança morta.

A ira de Deus açoita com fúria a testa do possesso,

Peste purpúrea, fome que estoura dos olhos verdes.

Oh, o riso horrendo do ouro.

Mas na cova escura sangra em silêncio a humanidade mais muda,

Forja com duros metais a cabeça redentora. (1994: 65)

 

      Para perceber o porvir no lugar da redenção, diferencia-se real e atual; ideal e abstrato; e finalmente porvir e realização do possível. Cada um desses pólos atua, presencia-se, e entre cada um dos elementos desses pares, encontra-se o élan de uma diferenciação criadora. Esse élan ultrapassa a  linguagem da inteligência lógica e metafísica; o élan vem menos de um pensamento inteligente (mesmo que liberado da doxa) e mais de um pensamento poético forjado com duros metais; não condicionado por eles; no entanto, sangrento e silencioso. Esse pensamento poético é coisa. Machuca em algazarra e jorra prazer silencioso. E, retomando Trackl: ainda que se fazendo a partir do desvario da grande cidade - ainda que enrijecidos, oprimidos, estourados, açoitados pelo desvario da grande cidade -, a máscara de prata; a luz; a fúria; e os olhos verdes não deixam de ver; criam porque vêem algo de um e deixam que esse algo fale, mesmo que aleijadamente. Deixar que esse algo fale - puta que pare uma criança morta - é deixar sangrar a cidade. A redenção está na perda da mudez do sangue. E mudez não é silêncio. O silêncio fala. Mudez é opacidade; estagnação do movimento entre os entes urbanos.

      A ironia das ruas duras e realizadas é que elas não mais realizam. Passam a ser nada, espectrais. Redenção é salvá-las dessa imobilidade numa percepção profunda, concreta e atenta dos lugares. Percepção que desbatiza os lugares, desconhece suas funções conservadoras. Praia é lugar de lazer. Eis uma função conservadora. A função imobiliza; o lugar passa a ser a função. Redimi-lo implica talvez em deixá-lo em paz, inutilizado, na eloqüência do seu silêncio.

      Talvez a visão redentora do lugar só seja visível, como quer Bakthin, se o vemos “aclarado pela atividade do homem” (1992: 257), um se deixar conduzir pelo lugar para ali ser. Eis um exemplo em que o lugar fala e diz-ensina a ser formiga na luz.:

 

Água escorria da bica e ela passava o pano ensaboado nos talheres. Da janela via-se o muro amarelo – amarelo, dizia o simples encontro com a cor. Esfregando os dentes do garfo, Lucrécia era uma roda pequena girando rápida enquanto a maior girava lenta – a roda lenta da claridade, e dentro desta uma moça trabalhando como formiga. Ser formiga na luz, absorvia-a inteiramente e em pouco, como um verdadeiro trabalhador, ela não sabia mais quem lavava e o que era lavado – tão grande era sua eficiência. (LISPECTOR, 1975: 97)

 

      E “isso” significa o quê? Pode um escrito que é dito-ensinamento como dito passado que já ensinou ainda gerar ensinamento? A formiga da luz repousa quieta, como o tempo entre o ser escrito e o ser lido, entre o ser visto e o ser narrado. A formiga da luz a-guarda o porvir de quem abre o livro e a lê. Mas ela também a-guarda quem se coloca nesse lugar da água a escorrer da pia? Nesse lugar, existe uma formiga da luz? Pode-se dizer que todo e qualquer espaço entreabre, libera e concede localidades e lugares pra gente habitar? A travessia da cidade para a plataforma terrestre, para o mar e novamente para a faixa de pedestre só se dá por pontes entre o paralisado e o movente. E do imenso da formiga, descrita em enciclopédias e livros de zoologia, aparece a formiga da luz, descrita pela poesia, que não separa o que faz do que é.

      Sei que não adianta simplesmente querer suprimir todo distanciamento: isso não trará necessariamente proximidade ao homem. A consciência do homem, ao se estabelecer como conscientizada, tende à monotonia e à uniformidade porque joga fora justamente o que está sendo. Não consegue mais ver-escutar aquilo que não corresponde a parâmetros. Mas a verdade é que a flor azul parece não existir, nem mesmo o mar azul parece não existir (pelo menos daqui, tão distante).       Como o que não se encontra em parte alguma e o que não é nada pode impulsionae a nossa vida?

 

No vazio

quase escuro

o povo se comprimia na zona da retreta

dentro de um círculo

demarcado. Era mesmo estranho

espiar os habitantes se empurrando:

aqueles cujas costas já davam para

o vazio

lutavam

sonâmbulos para entrar.

(LISPECTOR, 1975: 13)*

 

      O povo às vezes se comprime para sair do vazio e cair no nada, “dentro de um círculo demarcado”. Ali, onde estão os trens, os shoppings, os “lugares de lazer”, os espaços da cidade adiantada. Mas o habitar é a travessia entre o vazio e o cheio. Ao se querer eliminar uma dessas margens, a ponte se arruina.

      Talvez se possa pensar no vazio como o não-eu e nas formas da cidade como o eu, lembrando que nos encontramos na travessia, no incessante movimento que nos joga do vazio ao pleno. Talvez também se possa pensar que o não-eu protege o eu, cuida justamente para que ele não transforme seu medo em um prédio, para que ele possa se colocar num outro lugar e habitar um lugar que não seja construído em função desse medo. E no movimento do eu ao não-eu, assim como do não-eu ao eu, o homem possa ser hora e lugar do real, que não se resume a uma única leitura que dele possa ser feita, seja ela racional ou irracional. Como possibilidade da possibilidade do real, o homem se faz lugar das coisas, ao invés simplesmente das coisas se limitarem a ser um lugar para ele, enquanto império do eu.

      Tentar assegurar as coisas como patrimônio de um ou mesmo de toda humanidade não impedirá, no entanto, as “angústias de domingo” ou a falta de saber para onde ir. Quando se diz aqui “possibilidade da possibilidade” se emprega essa última palavra como um campo para poder ser, no sentido de um movimento que ponha o eu em cheque. Ou seja: um campo para poder ser não se dá pela eliminação da “angústia de domingo” ou da falta de saber para onde ir.

      Ao homem, resta uma possibilidade: a possibilidade da possibilidade: de ser um campo onde a inteligência do lugar, das coisas do lugar possam acontecer. E como é isso? É olhar diretamente as coisas, é ser como a água que se deixa frisar pela brisa. Viver no provisório é habitar. “Não habitamos porque construímos”, diz Heidegger. “Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos.(2000:128) Para além do tempo e do espaço calculadores, o homem se faz lugar do homem; cidade se faz lugar de humanidade. Nesse caminho de olhar sem ânsia, “o horizonte cortado de chaminés e telhados” se torna real. Difícil é perceber que a aparência é a realidade. Não há paisagem na cidade, sem a experiência que a torne real.

      Sabemos, no entanto, que a linguagem oscila, está no entre o exprimir e o demonstrar. A linguagem, aliás, pode ser um lugar quente que pulsa. Tal como a terra. Ao deixar a terra falar, quer dizer, recolhendo essas dimensões expressiva e demonstrativa da linguagem, eis que surge a flor. Ah! A flor azul reaparecida! Ao deixar a terra falar:

 

as superfícies adelgaçavam-se cada vez mais

embora dentro de cada coisa ainda estivesse escuro e brilhante.

 

Mais um momento porém –

e uma flor amoleceu de súbito no talo,

raízes adoçaram-se na terra podre,

os arcabouços dos sobrados ruíam –

a cidade inteira fremia depois de desmoronar.

 

Seria o momento de desembarcar e tocar afinal em todas as coisas.

A cidade permitiria que se apalpasse arrepiada sua pedra?

Antes de fechar-se sobre a ousada presa, elevando seus muros com mais uma laje... (LISPECTOR, 1975: 56 e 58)

 

      A flor logo se esconde. Não adianta querer lhe edificar um altar. Assim que inaugura, a poesia se esvai. Por impotência, pode-se inventar um sinal misterioso e inocente. Algo que possa sempre dizer algo do um. Um aceno permanente ao poético é possível? Reunido o sensível ao inteligível, inquieta-se permanentemente o homem. Qualquer palavra, a mais simples das relações o agita. A flor azul: o projeto extático. Essa a pátria a não se esquecer. Enquanto projeto, invenção de sinal; enquanto êxtase, vibração de pétala no oceano e de oceano na pétala. Um lugar a se habitar. Como seria então uma arquitetura, uma urbanização, uma escola, uma escrita que levasse em consideração essa possibilidade de travessia em que não mais nos colocamos atrás da flor azul mas no caminho mesmo que permite ir da flor da superfície ao mar profundo?

 

***

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A poética do espaço, trad. Antonio de Pádua Dannesi, São Paulo, Martins Fontes, 2000.

BAKTHIN, M. O romance de educação na história do realismo. In: Estética da criação verbal. Trad. M. Ermantina Pereira. São Paulo:Martins Fontes, 1992.

DICKINSON, E. 75 poemas. Trad. de Lúcia Olinto, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002.

LISPECTOR, C. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: José Alvaro Editor, 1970.

___________ . Uma aprendizagem ou O livros dos prazeres. 3a. ed., Rio de Janeiro: Sabiá, 1973.

___________ .  A cidade sitiada. 4a.ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1975. 

SOUZA, R. de Melo. A epigênese do pós-moderno. Revista Tempo Brasileiro, 84: 32/60, jan-mar, 1986.

STORNI, A. Antología poetica. Buenos Aires: Editora Espasa-Calpe, 1949.

TRAKL, G. De profundis. Org., posfácio e trad. Cláudia Cavalcanti, São Paulo: Iluminuras, 1994.


 

[1] Cf. HEIDEGGER, M., A linguagem na poesia: uma colocação a partir da poesia de Georg Trakl. In: A caminho da linguagem, trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária S. Francisco, 2003; NOVALIS, Henri d’Ofterdingen. Trad., notas e prefácio de Marcel Camus, Paris: Aubier-Montaigne, s/d. (1942).

* Texto reorganizado em forma de poema para fins de destaque.


  

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