CINEMA NOVO: um modo brasileiro de fazer cinema

 

AUTORA: Mariana Gesteira da Silva

ORIENTADOR: Eduardo F. Coutinho

CO-ORIENTADORA: Heloísa Buarque de Hollanda

 

No Brasil, durante a primeira metade do século XX, houve o intento de se produzir filmes que se equiparassem àqueles feitos nos países desenvolvidos tanto na expressão, como na produção. No entanto, o resultado frustrado da empreitada deu origem a filmes que, em geral, eram ignorados ou rechaçados por intelectuais e por críticos. Deste modo, essa produção tornava-se credora dum modelo, que, por não ser alcançado, entrou para a história como um cinema de má qualidade, fracassando duplamente:  primeiro porque não alcançava o original, sendo uma cópia inferior; segundo, porque a dita imperfeição na feitura do filme não era validada, no interior do país, como uma maneira própria de fazer cinema. Somente em 1955, com o lançamento de Rio 40º graus, de Nelson Pereira dos Santos, rompeu-se essa relação, pois pela primeira vez se buscava fazer cinema liberto do modelo das cinematografias dominantes no que concerne à produção e, sobretudo, à expressão.

Embora o Neo-realismo italiano houvesse inspirado as jovens cinematografias latino-americanas, que o tomaram como referência (de modo de produção e de narração) para a invenção de novas cinematografias, houve uma mudança de postura: a relação entre ambos se deu em pé de igualdade em substituição à atitude hierárquica que vigorava anteriormente. Ao invés de pensar a partir de, passamos a pensar ao lado de.  Tratava-se de uma postura ativa na qual se interferiu no modelo base, sem segui-lo como exemplo, mas apropriando-se de sua estrutura geradora.

O exemplo italiano fora tomado para referendar e dar continuidade algumas invenções esboçadas, aproveitando seu impulso fundador, mas não o modo de filmar, fato que se deve à forma como se deu o diálogo com o Neo-realismo – desordenado e paralelo –, enfraquecendo a idéia de que a solução para organizar a produção surgiria da adoção de uma determinada fórmula. Em parte, isto se deve, exatamente, ao fato de que filmes e as idéias neo-realistas sugeriam deslocar o ponto de referência do cinema para a realidade antes dele. Realidade apenas, sem nenhum enfeite, nenhum polimento. Dessa maneira, recusou-se o modelo a fim de se procurar uma forma nova ou novas formas próprias, pois não havia forma adequada na qual o conteúdo brasileiro devesse encaixar-se; muito pelo contrário, a forma nasceria desse conteúdo, inventada a partir da realidade brasileira que passou a ser o centro, a força geradora.

Nesse contexto, os recursos técnicos precários, aparentemente, mostravam uma realidade sem retoques, contrapondo-se ao projeto hollywoodiano, no qual, através de uma rígida divisão do trabalho e dos gêneros, os filmes tornavam-se produtos como convinha a uma indústria. O cinema estadunidense — fruto dos avanços econômicos proporcionados pelo êxito da Primeira Guerra Mundial — estruturava-se de maneira a potencializar lucros. Os gêneros possibilitavam ao cliente/espectador um repertório de modelos conhecidos em que a satisfação estava praticamente garantida, visto que se encontraria sempre o esperado. O sucesso desse modelo estava no fato de que poucas companhias poderosas (major companies) dominavam os três setores que articulavam a indústria cinematográfica: produção, distribuição e exibição. Para otimizar a feitura dos filmes, a produção baseava-se em dois fatores: o studio system e o star system. O studio system impunha uma rígida divisão do trabalho em que a equipe especializada nos vários componentes do trabalho artístico (diretores, atores, roteiristas etc.) realizava determinado filme subordinada à figura do produtor. Através de estruturas como o star system, ou estrelismo, ídolos eram criados com o objetivo de gerar identificação com o público, e, assim, promover o produto cinematográfico.

Ao cinema brasileiro, o Neo-realismo, mais do que oferecer modelos estéticos, vinha a fornecer uma atitude ética, ao mostrar como se debruçar sobre a realidade local, principalmente, sobre o mundo popular com um novo olhar. O duplo caráter de revolução em matéria de expressão e de produção conferiu ao Cinema Novo a dimensão de um modelo alternativo para as cinematografias nascentes da América Latina e do Terceiro Mundo em geral, bem como a busca de um processo de descolonização econômica e ideológica. As construções dicotômicas centro versus periferia, ou colonizador versus colonizado são desafiadas em suas bases dando lugar a outra lógica, na qual o elemento excludente cede lugar à possibilidade de adição. O Neo-realismo, recebido como gênero cinematográfico diferente do produzido por Hollywood, contribui no processo de invenção de novos modos de fazer e pensar cinema, pois ao deslocar a discussão da dramaturgia para a realidade, ela viabiliza, conforme afirma Avellar, um cinema liberto do modelo intelectual dominante.

O Neo-realismo na América Latina, em todo o caso no Brasil, mais que uma tradução dos modos de composição italianos, talvez tenha sido a incorporação de uma atitude: a tarefa do cineasta era procurar a realidade como se ela fosse uma agulha perdida num palheiro. Com as próprias mãos. Até ser espetado por ela. (Avellar, 2003, p.143)

Na verdade, os cineastas italianos, suas idéias e filmes colaboraram para reforçar algo já pressentido pelos latino-americanos, pois, mais do que um movimento artístico, o Cinema Novo possui caráter nitidamente político, originário de uma nova relação dos intelectuais de cinema com o país. Segundo Paranaguá (1984), para os cineastas das novas gerações, a modernidade deveria estar inscrita na própria linguagem do filme, no corpo da obra. Assim, o cinema passaria a estar mais entrosado com a literatura, o teatro e a música, ao articular nacionalismo cultural e experimentação estética. Portanto, como afirma Xavier, existe por detrás do Cinema Novo um projeto nacionalista, no qual haveria um compromisso de conhecimento e interpretação das características originais e das contradições da situação política e cultural do país, filmando o Brasil brasileiramente:

 

Em parte inspirado nas vanguardas históricas européias do início do século, o Modernismo de 1920 criou a matriz decisiva dessa articulação entre nacionalismo cultural e experimentação estética que foi retrabalhada pelo cinema nos anos 1960 em sua resposta aos desafios do seu tempo. Foram estas preocupações modernistas que definiram o melhor estilo do cinema de autor, o que resultou na realização de filmes sem dúvida complexos demais para quem pedia uma arte pedagógica.  (Xavier, 2001, p. 23-24)

 

A partir do Cinema Novo, a figura do intelectual militante passou a atuar no cenário cinematográfico, contrapondo-se ao profissional de cinema. O que fez com que esse movimento fosse além da questão da feitura e exibição de filmes, e englobasse um projeto político, em que se recusou o cinema industrial, considerado terreno do colonizador, espaço de censura ideológica e estética. Esse cinema, consciente do processo de dominação cultural, adequou, para a realidade brasileira, a produção e a expressão importadas. Ao assumir a pobreza e o subdesenvolvimento, esses passaram a ser a força motriz dum cinema que parte, justamente, da escassez de recursos técnicos e dos temas do universo popular, que, mais tarde, seriam absorvidos pela própria linguagem cinematográfica, fazendo, ainda conforme Xavier, com que ganhassem qualidade estética (o que Glauber viria a chamar de estética da fome).

 

Neste momento, falou a voz do intelectual militante mais do que a do profissional de cinema – foi o momento de questionar o mito da técnica e da burocracia da produção em nome da liberdade de criação e do mergulho na atualidade. Ideário que se traduziu na “estética da fome”, em que a escassez de recursos se transformou em força expressiva e o cinema encontrou a linguagem capaz de elaborar com força dramática os seus temas sociais, injetando a categoria do nacional no ideário do cinema moderno que, na Europa, tematizava a questão da subjetividade no ambiente industrial em outros termos. (Xavier, 2001, p.26-27)

 

Para Xavier (2001), a nação – na década de 1960 – tinha papel fundamental nos países de periferia, afirmando-se numa época marcada pelo processo de descolonização na África e na Ásia enquanto categoria orientadora de ação cultural ou política. Naquele momento, compreendia-se que os países avançados e subdesenvolvidos relacionavam-se em termos de herança colonial. Por sua vez, os países emergentes buscavam assumir novas bases técnicas e econômicas, o que colocava no centro da questão um nacionalismo engajado, mas não ufanista. A libertação nacional era um dos projetos do Cinema Novo, assim como de outros movimentos culturais no Brasil e na América Latina, que afirmavam de maneira incisiva o conceito de nação dentro de uma conjuntura internacional. Nas palavras de Xavier: 

O cinema brasileiro (...) engajou-se politicamente e se alinhou ao espírito radical dos anos 1960. Ao mesmo tempo, como parte de sua agenda política, o Cinema Novo, em particular, problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas, apresentando-se no mercado mas procurando ser a sua negação, procurando articular a sua política com uma deliberada inscrição na tradição cultural erudita. Como parte de sua crítica social lhe era necessário colocar-se como primeiro exemplo de uma experiência cinematográfica de grupo apta a dialogar de forma mais conseqüente com os segmentos mais consolidados da cultura, em especial a tradição do Modernismo dos anos 1920, movimento de atualização da arte brasileira que articulou em termos novos a questão nacional na literatura, música e artes plásticas. (Xavier, 2001, p. 23) 

Assim, a partir da desconstrução de teorias européias e de sua reestruturação, o Cinema Novo cria uma reflexão profundamente crítica sobre o elemento local, entrando em consonância com a literatura e as artes plásticas do país. Ao mesclar o modelo europeu com aspectos locais, ou ao introduzir polifonia de vozes, transgride as fronteiras ortodoxas, calcadas em padrões europeus, dando origem a novas formas irreverentes e questionadoras como o filme Deus e o diabo na terra do sol, que absorve e integra uma série de elementos heterogêneos: a montagem de Eisenstein, a poesia e a literatura de cordel do nordeste brasileiro.

Em 1964, o golpe militar atingiu o cinema em momento de ascensão, época em que grandes clássicos foram feitos — Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964). Esses filmes são provas, em diferentes estilos, do êxito do cinema de autor como afirmação estética, de luta política e ideológica em consonância com a sociedade. Não é mera coincidência o fato de que o principal cenário desses filmes seja o campo. A esquerda defendia a contestação dos conservadores, e o campo era o espaço simbólico no qual se permitia discutir a realidade social do país. O ambiente campestre faz parte dum imaginário segundo o qual o Brasil seria um país rural - imagem evocada, freqüentemente, pelo Cinema Novo como símbolo matriz da identidade nacional.

O projeto político unido ao cinema autoral foi consolidado por Glauber, que, talvez, dentre os cineastas do Cinema Novo, tenha sido aquele que assumiu a autoria de maneira mais completa. Não apenas deixou uma obra visual vasta, como também inúmeros livros, além de ser intelectual atuante. A intervenção de Glauber na história, através de seus escritos dos anos 1960, adquire tom exasperado, o que “se define na metáfora da estética da violência: o cinema político do Terceiro Mundo deve ser uma recusa radical do cinema industrial dominante; é preciso negar a universalidade de uma técnica para afirmar um estilo em conflito com as convenções vigentes; é preciso assumir a precariedade de recursos e inventar uma linguagem que, no plano da cultura, seja uma negação tão revolucionária, tão legítima, quanto a violência do oprimido na práxis histórica. ‘A mais nobre manifestação da fome é a violência’”. (Xavier, 2001, p.121)

Os filmes Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe representam instantes de ruptura em que a vida social põe-se como drama, enfretamento de crises com ascensões e quedas. A sociedade vive o drama da mudança ou da conservação em que há rebelião permanente e promessa de justiça. No cinema de Glauber, conforme Xavier, o elemento deflagrador é a violência:

 

De Barravento a Idade da Terra, o cinema de Glauber tem um movimento expansivo, articulando os temas da religião e da política, da luta de classes e do anticolonialismo: do sertão ao Brasil como um todo, e deste à América Latina e o Terceiro Mundo. Cada filme reitera o seu foco nas questões coletivas, sempre pensadas em grande escala, através de um teatro da ação e da consciência dos homens onde as personagens se colocam como condensações da experiência de grupos, classes, nações. (Xavier, 2001, p.117-118)

 

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), é pela violência de Antônio das Mortes que se processam as rupturas e se anuncia a Revolução. As revoltas camponesas, no filme, sinalizam que a Revolução era destino certo no sertão, não apenas porque há injustiças evidentes no presente, mas, principalmente, por existir uma continuidade entre a tradição de rebeldia do passado e a futura liberação pela violência. A vocação para a ruptura, inerente aos processos históricos, se expressa na metáfora “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”. Mas o processo se dá também com os personagens, que têm, conforme Xavier, de passar por experiências transformadoras, para, finalmente, chegar à consciência de que o caminho é a Revolução:

 

Este modelo revolucionário camponês se reforça nas proclamações de Glauber quando ele passa da estética da fome, pensada em termos do Cinema Novo brasileiro, para a metáfora das múltiplas frentes de guerrilha em três continentes. A ressonância do discurso de Che Guevara (1967) na ideologia do Cineasta Tricontinental é nítida. A discussão das relações entre cinema político e subdesenvolvimento se faz tomando a estratégia revolucionária de Guevara como inspiração e metáfora. (Xavier, 2001, p. 122). 

Disposto a enfrentar as grandes questões sociais, Glauber criou um cinema dotado de uma força peculiar, que trazia para o centro da ação os conflitos de poder e os desafios de seu tempo. A junção das dimensões poética e política, que caracterizariam o Cinema Novo, contribuíam com o debate das questões sociais vigentes em seu tempo. Ao mesmo tempo, o autor — que Glauber tão bem encarnou — era a antítese da indústria. A experiência do Cinema Novo revelou, com o cinema de autor, um projeto nacionalista e político que se chocava contra o cinema dominante e os interesses imperialistas de Hollywood, que, conseqüentemente, lhe proporcionaram uma conotação nacional e de esquerda.

O duplo caráter de revolução em matéria de expressão e de produção confere ao Cinema Novo a dimensão de um modelo alternativo para as cinematografias nascentes da América Latina e do Terceiro Mundo em geral, assim como a busca de um processo de descolonização econômica e ideológica. As construções dicotômicas centro versus periferia, ou colonizador versus colonizado são desafiadas em suas bases, dando lugar a outra lógica, em que o elemento alternativo, excludente, cede lugar à possibilidade de adição. O Cinema Novo latino-americano visa, enfim, diálogo em pé de igualdade entre vozes anteriormente antagônicas, desconstruindo a dicotomia hierárquica que se ocultava. Ao valorizar a postura ética sobre a estética e a técnica, as teorias neo-realistas foram um elemento deflagrador a mais na busca incessante de uma identidade nacional. 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 
 

AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol: a linha reta, o melaço de  cana e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.  

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GOMES, Paulo Emílio Sales. Pequeno cinema antigo. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 

GUEVARA, Alfredo (org.). Cien años de cine latinoamericano , 1896-1995. La Habana: Instituto Cubano del arte e industria cinematográficos.  

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XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.  


  

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