LITERATURA E A CONSTRUÇÃO DO SER

 

Lívia Aparecida de Almeida e Sousa

 

 

Na modernidade reflexiva, a crise sobre quem somos se revela por meio de vários canais midiáticos. Contudo, é na literatura que ela se intensifica, já que ela dialoga com o leitor fazendo com que esse reflita sobre quem é, por meio de várias histórias contadas. 

Nota-se, no desdobramento do tempo, a construção e a desconstrução do eu nas concepções de sujeito iluminista, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno (Hall, 2003). Observa-se, nessa última instância do eu, o esvaziamento das individualidades e a autoconstrução das identidades em meio ao caos da modernidade tardia. Nesse contexto, os escritores /intelectuais buscam resgatar os valores humanos através da arte literária.

Muito se discute sobre a descontrução do ser na modernidade tardia (Hall, 2003:7). Vive-se em plena “crise da identidade”, que é o deslocamento das estruturas e dos processos centrais das sociedades modernas. Tais descentramentos abalam os quadros de referência, que ofereciam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.

Percebe-se, por exemplo nos meios midiáticos, a desvalorização do ser humano através da banalização do mesmo, na medida que os indivíduos são tratados como uma massa coletiva, ou como homem-massa (Eco, 2001), projetada para a constituição do progresso e da ordem. Todavia, na tentativa de ordenar o mundo, a ambivalência, os paradoxos, a multiplicidade, a fluidez, as inconclusividades se revelam, ou seja, as condições “concretas” do ser humano. 

A busca por uma sociedade igualitária é almejada ao longo do tempo, apesar da existência de interesses divergentes pelos grupos sociais. De acordo com Collins, “a comunidade surge como qualidade de perceber ordem nas coisas (Collins apud Bauman, 1999:13)”. Assim, a ordem estaria intimamente relacionada ao desejo de uma sociedade mais homogênea.

Primeiramente, a idéia para a construção se uma sociedade mais unificada se encontrava na ideologia religiosa de que todos eram iguais diante de Deus (teocentrismo). O indivíduo não tinha voz, já que tudo se encontrava determinado pelas designações divinas por intermédio da igreja (Papa). O conhecimento submetia-se aos dogmas da igreja/Papa devido ao domínio do seu poder na Europa. Mesmo se os intelectuais, daquela época, elaborassem teorias sobre as ciências naturais ou sobre as multiformas do “eu”, eles podiam morrer nas fogueiras da “Santa Inquisição”.

Com a Revolução Francesa, por meio da ideologia de liberdade, de igualdade e de fraternidade, o iluminismo colocou a Razão/Ciência como mola propulsora do desenvolvimento do saber humano. O sujeito do iluminismo se baseava numa concepção de indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. A idéia predominante era essencialista, ou seja, concepção “individualista” do sujeito e de sua identidade.

Em outro momento, a noção de sujeito sociológico refletia a complexidade do mundo moderno e a consciência era formada na relação com outros indivíduos que compartilhavam os valores culturais. Essa concepção “interativa” da identidade e do eu estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, fazendo com que eles se tornem mais pré-dizíveis e unificados. Esses buscavam ordem na vida social.

No século XVIII, a construção do “eu” se baseava na subjetividade e na individualidade por causa da ascensão burguesa. O indivíduo (lat. individùus,a,um 'indivisível, uno, que não foi separado') passa a ser senhor de si, já que ele não estava mais condicionado às determinações dos “poderes ocultos” (Deus). 

A transferência do mundo organizado de modo divino (dogmatismos teológicos) para as ambições legisladoras da filosofia crítica e as intenções do recente Estado moderno contribuiu para o processo da  individualização, do mesmo modo que fez surgir o caos e a ordem – “gêmeos modernos”. Como afirma Bauman (1999:32), “os governantes modernos e os filósofos modernos foram primeiro e antes de mais nada legisladores; eles descobriram o caos e se puseram a domá-lo e substituí-lo pela ordem”.  Desse modo, fazia-se necessário organizar uma estrutura orgânica, em que cada parte singular se torna essencial ao todo.

Como afirma Giddens (1991:54), uma certeza, lei divina, foi substituída por outra; a certeza dos nossos sentidos, da observação empírica, da razão, e a providência divina foi substituída pelo progresso providencial.

Observa-se a experiência do processo de reconhecimento interior do “eu”, que se contrapõe à percepção religiosa do conhecimento. A figura do “eu” torna-se revolucionária e a visão crítica dos fatos aparece nesse contexto. Kant, Locke e Descartes (apud Bauman, 1999:35) sonhavam com uma humanidade magistral, ou seja, coletivamente livre de restrições. Eles se preocupavam com a soberania da pessoa humana, por isso desejaram elevar a Razão ao cargo de suprema legisladora.  Assim, os discursos sobre a interioridade do ser ganham maiores proporções, no cenário do século XVIII, tendo como fundamento a Razão, enquanto que os da exterioridade – visão teológica – são colocados à margem da nova concepção de conhecimento.

Por outro lado, como afirma Lima Lins (2004)[1], a literatura só foi formulada a partir do século XIX. Isso ocorre pois predomina, no contexto sócio-cultural, a classe burguesa. O elemento comercial passa a “ditar” normas de comportamento. O artista/ intelectual deveria ser a nova classe de prestígio, contudo isso não ocorreu, já que os escritores não conseguiram projeções de nobreza. O capital prescreve regras comportamentais que não se compatibilizam, muitas vezes, com os ideais de vida social desse artista/intelectual.

No século XIX, o eu continuou tendo seu status reconhecido. O desenvolvimento da desvalorização do eu inicia-se com a sociedade de massa, ou seja, na segunda metade do século XIX e no início do século XX. García Marquéz, por exemplo, em uma entrevista a Plínio Apuleyo Mendoza (1982:76), diz que os burgueses latino-americanos confundem o verbo ser com o verbo ter, visto que seus valores são de representação. Logo, tais valores podem ser vistos como mercadorias.

A literatura é desdobramento das relações sociais, que transforma as experiências humanas em histórias, como afirma Fuentes (1989:36). Ela penetra as interioridades de outros seres humanos. A construção do “eu” acompanha o sistema de literatura – autor, obra e leitor. O relacionamento entre intelectuais e a burguesia torna-se cada vez mais incompatível, já que a maior inquietação do autor é com identificação dos valores subjetivos do público leitor e da burguesia com o dinheiro como valor social.

Os primeiros anos do século XX foram, na Europa, os do romance psicológico, de análise. Análise de um adultério; história de uma resistência ou de uma entrega feminina; de idílios. Era o tempo em que as pessoas decentes se afastavam da política como de alguma coisa nauseante; em que as animadoras de salões literários proibiam as conversas sobre política aos seus convidados, como nos fala Carpentier (1987:50). Todavia, em menos de três décadas, o homem se viu bruscamente relacionado, como chamava Jean-Paul Sartre, com os contextos – políticos, científicos, materiais, coletivos, enfim contextos conectados à práxis do nosso tempo. Desse modo, o grande questionamento sobre quem é o público leitor de uma época que possuí diversos contextos, até mesmo contraditórios, se faz constante na literatura universal.

Nos dias atuais, não há verdades nem mesmo as científicas, pois o ser humano se revela de acordo com as contingências culturais. As reformulações dos valores estabelecidos,  como organizadores da vida social, conduzem ao esvaziamento do “eu”, visto que se procura eliminar todas as caracterizações de individualidade do sujeito social.

Como define Bauman (1999:10), “por causa da nossa capacidade de aprender/memorizar, temos um profundo interesse em manter a ordem no mundo. A ambivalência confunde o cálculo dos eventos e a relevância dos padrões de ação memorizada”. Por isso, Bauman diz que depois de nós – sujeito iluminista e sujeito sociológico – vem o dilúvio, ou seja, o caos do sujeito pós-moderno.

O sujeito pós-moderno não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente. Essa concepção coerente é uma fantasia. Ela torna-se uma “celebração do móvel”, construída e desconstruída por meio das múltiplas formas como somos representados ou projetados pelos sistemas culturais que nos cercam.

De acordo com Fuentes (1989 : 239), “uma das maravilhas de nosso globo ameaçado é a variedade de suas experiências, de suas memórias e de seu desejo. Qualquer tentativa de impor uma política uniforme a essa diversidade é como um prelúdio à morte”. Assim, a identidade passa ser definida historicamente – diversificada – e não homogênea.

Nesses termos, o indivíduo se torna mais alienado, na pós-modernidade, sobre sua nova condição de ser, até  então unificado e buscando uma coerência na identidade ordenada. Ele se encontra perdido diante das possibilidades de vir a ser. A tendência, mais cômoda, é seguir o fluxo das massas por meio das tecnologias de informação.

A sociedade de massa reivindica mais benefícios, visto que as novas tecnologias promovidas pelo advento das ciências prometem facilitar a vida de todos. É preciso fugir do caos, da indeterminação. Para isso a massificação do indivíduo, tendência apresentada pelas sociedades industriais modernas, padroniza gostos, hábitos, opiniões, valores etc. e representa, geralmente, empobrecimento cultural.

A cultura de massa torna-se o sinal de uma queda irrecuperável, diante da qual o homem de cultura pode apenas dar um testemunho extremo. Ele diz que “a imagem do apocalipse ressalta dos textos sobre a cultura de massa; a imagem da integração emerge da leitura dos textos da cultura de massa.”  Assim, a atitude do homem de cultura se concentra na elaboração de uma nova imagem de homem em relação ao sistema de condicionamentos.

Logo, percebe-se o esvaziamento dos sentimentos e, principalmente, da ética, pois o que movimenta o mundo globalizado é a competição desenfreada entre as grandes instituições financeiras. Eco (2001:35) diz que o novo modelo humano é exigido por parte de alguns homens de cultura a fim de que haja uma atitude de indagação construtiva.

Outro motivo para o apagamento do ser é o consumo avassalador de mercadorias. Muitas vezes, esse consumo é desnecessário, mas o desejo de ser igual faz com os indivíduos busquem adquirir identkit nas vitrines do mundo global. Como diz Bauman (1999:216), o mercado possui uma ampla gama de “identidades”, das quais pode-se escolher uma. As propagandas publicitárias se esforçam para mostrar o contexto social que mais tem afinidades com o estilo de vida do comprador. Então, o mercado oferece instrumentos e competências especializadas para a construção de identidades que melhor combina com a “individualidade” do consumidor.

Todavia,  nem sempre isso é possível devido aos altos custos das mercadorias, em que o fenômeno da indústria cultural, a lucratividade, faz-se presente em todas as instâncias do contexto social. Nesse cenário, o papel do escritor se torna incômodo, visto que esse oferece uma consciência infeliz: a de que para ser alguém nessa sociedade de consumo selvagem se faz necessário ter capital para isso.  Logo, o problema da cultura de massa hoje se verifica na manobra “de grupos econômicos” que miram fins lucrativos e na realização de “executores especializados”, sem que se verifique a intervenção maciça dos homens de cultura na produção.

Dado o exposto, nota-se que o surgimento e a desvalorização do “eu” acontece pelo intermédio da classe burguesa. O afundamento do “eu” se vincula à sociedade consumista que massifica o indivíduo a fim de enquadrá-lo em uma determinada norma de conduta. A literatura como a arte em geral revela bem esse acontecimento da desconstrução do “eu” que aparece intensamente na modernidade.

 


 

[1] Aulas ministradas no curso Literatura e Desconstrução do Ser por Ronaldo Lima Lins no Mestrado de Teoria Literária, na Faculdade de Letras, no segundo semestre de 2004.


  

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