Caminhos cruzados x Atitudes opostas
Imagens eróticas em Lucíola e Tereza Batista cansada de guerra

 

Viviane Arena Figueiredo

 

Meretriz, rameira, mulher-dama, cortesã, prostituta ... São muitos os nomes que designam um dos mais antigos ofícios do mundo. Como centro das atenções, mulheres. Mulheres que fazem de seus corpos instrumento de trabalho, demonstrando tratar o sexo com naturalidade. Ao oferecer prazer e realizar fantasias, a figura dessas mulheres mexe com o nosso imaginário erótico. Sempre disponíveis ao prazer, elas exercem uma espécie de fascínio que torna o mundo da prostituição envolto em mistérios.

            São muitos os livros de Sociologia que tentam explicar o fenômeno social da prostituição. Com a evolução das relações sociais, o ato de se prostituir também sofreu transformações. Ao longo dos séculos, foram diversas as formas de identificar as mulheres que praticavam o comércio amoroso: na Idade Média, já encontrávamos em número equiparado as “Mulheres públicas” (prostitutas de rua) e as “Mulheres secretas” (prostitutas de prostíbulo). No século XIX, encontramos o fenômeno da cortesã, mulher livre, que ao escolher um homem para o seu amante, doava seu corpo em troca de pequenas fortunas e jóias.

            Tantas modificações acabaram por alterar o espaço onde ocorrem as relações comerciais do sexo; no século XIX, os cabarés ou rendez-voaz constituíram-se como estabelecimentos sociais, que não só ofereciam os serviços de relação sexual, mas também diversos divertimentos, tais quais a música, a dança, o jogo. Atualmente, os serviços prestados por garotas-de-programa reduzem-se essencialmente ao ato sexual em quartos solitários, onde o preço é negociado e os casais vão direto ao ponto.

            Tais análises sociológicas procuram tentar entender o comportamento das mulheres que se dão por dinheiro e sem prazer. Ainda hoje, as mulheres que se prostituem são encaradas como profissionais vítimas da dicotomia dominador x dominado, no qual o cliente adquire um poder coercitivo sobre a prostituta, decidindo, na maioria das vezes, o rumo da relação sexual.            

Assim como a Sociologia, a Literatura também se ocupa desse tema, projetando as causas e efeitos desse fenômeno social. Por meio de romances, contos, poemas, a Literatura trás à tona a imagem da prostituta, dando-lhe voz e lhe humanizando perante a sociedade. Em seu poema Balada da prostituta, o escritor alemão Bertold Bretch coloca em foco o sentimento de uma prostituta que assume uma postura amarga, porém conformista de sua situação: “Como se esfria o coração,/ nesta labuta longa e triste,/ em que me entrego sem prazer/”. Na prosa, Alexandre Dumas Filho traça o perfil de uma cortesã do século XIX no famoso romance A dama das camélias.

            A temática da prostituição também recebeu enfoques na Literatura Brasileira. José de Alencar foi um dos primeiros autores a discutir o tema; ao estrear a peça Asas de um anjo (1858), cuja personagem principal é uma prostituta, Alencar sofre censura pelo fato de escandalizar com seu tema, a sociedade provinciana da época. Porém, quatro anos após a proibição de sua peça, Alencar retoma o tema das cortesãs no romance Lucíola.

            Mais tarde, delineando os rumos da prosa naturalista, Aluízio Azevedo traça o perfil da personagem Pombinha no romance O cortiço (1890). Característica de menina pura no início do romance, Pombinha deixa aflorar o desejo sexual reprimido ao ser seduzida pela cocote Leónie. Mesmo casando-se e tentando conformar-se com a vida insossa reservada às esposas da época, Pombinha não consegue ir contra a sua natureza: descoberto seu adultério pelo marido, Pombinha é abandonada, ficando livre para viver uma relação homossexual com Leónie, tornando-se assim, uma prostituta.

            Em meados do século XX, as prostitutas representantes do nordeste brasileiro começam a tomar forma através dos romances do escritor Jorge Amado; entre as mais conhecidas Tieta do Agreste e Tereza Batista cansada de guerra.

            Sem dúvida interessa à Literatura a sensualidade impressa na figura da prostituta. Muito além da imagem de mulher sempre disposta a doar prazer, existe a sensação erótica do convite, da sedução, da procura. No imaginário masculino a prostituta coloca-se tal qual uma serva capaz de desejos sexuais incontroláveis que a impulsionam a realizar as mais diversas fantasias eróticas.

            Na Literatura Brasileira em especial, duas prostitutas de épocas diferentes chamam a nossa atenção: Lúcia/Maria da Glória personagem de Lucíola de José de Alencar e Tereza Batista, personagem de Tereza Batista casada de guerra. Cada qual, encarna a imagem da prostituta delineada pelo século e pelo lugar em que são encontradas.

            Este trabalho destina-se a pontuar as semelhanças e diferenças entre essas duas mulheres, levando em consideração a época em que vivem e o espaço físico onde atuam.

            Em relação à época, podemos perceber que não é apenas a diferença temporal que determina o comportamento dessas mulheres; o estilo de época em que ambas as personagens estão inseridas determinam suas atitudes e ações. Notamos assim, que a carga ideológica corrente na época em que se situam essas obras acabam por influenciar o autor ao delinear o caráter de suas personagens. Ao dar vida à Lúcia/Maria da Glória, José de Alencar é contagiado pela imagem de mulher idealizada pelo Romantismo. Já, Jorge Amado, impregnado pelas experiências modernistas, traça na personalidade de Tereza Batista , o perfil de prostituta do Agreste.

O século em que estas obras são publicadas, favorece a demarcação de um modelo de comportamento no qual a personagem se encaixa: no século XIX, Lúcia assume o papel de cortesã, ou seja, prostituta de luxo muito comum para a época. Já, Tereza Batista encaixa-se no perfil de mulher-dama e artista de cabaré.

            O espaço físico cumpre um papel importante no tocante as relações sociais em que as integravam. Neste caso, caminham paralelos os costumes locais que influenciam a personalidade das personagens, e o olhar crítico da sociedade em relação à vida das prostitutas. Lúcia consagra-se como cortesã do Rio de Janeiro, cidade sede da Corte e em crescimento. Tereza Batista cumpre no Agreste o destino da maioria das meninas abandonadas por suas famílias: de violentadas a mulheres-damas, com sorte amázias.

            Ainda levando em conta os espaço físico deve-se perceber a maneira como as prostitutas são encaradas no meio social. Em Lucíola, José de Alencar denuncia o preconceito latente de uma sociedade que apesar de “tolerar” o comportamento de tais cortesãs, acaba por condená-las por seus atos sem dar-lhes direito de recomeçar uma vida digna. Já, Jorge Amado, mostra uma sociedade que empurra suas meninas rumo à prostituição.

            Ao tornarem-se exemplos de prostitutas da Literatura Brasileira, Lúcia e Tereza Batista passam a carregar em suas personalidades tons sedutores que vão delineando nos textos uma certa carga erótica. Neste artigo, o apelo ao erótico estará recortando os capítulos presentes, constituindo-se como um dos principais objetivos do texto.

            Fazendo um contraponto entre essas mulheres, procura-se mostrar um mundo que vai além dos preconceitos e de reações negativas já enraizadas; é, pois o tema da prostituição um universo no qual podemos nos deparar com atos e pensamentos que vão além do princípio sexual da profissão.

 

Caminhos da prostituição:

 

Que caminhos levam a prostituição?Que motivos levam uma mulher a negociar o próprio corpo oferecendo prazer?

As respostas para essas perguntas podem ser meramente intuitivas, passando por nossa própria opinião a respeito desse assunto. Porém, deve ser levado em conta os numerosos estudos acerca desse tema, procurando explicitar a problemática, as causas e conseqüências desse fenômeno social.

O antropólogo e historiador francês Jacques Rossiaud concluiu nos seus estudos sobre a sociedade francesa do século XV, que as causas que ajudam as mulheres a ingressarem na prostituição são mais ou menos as mesmas desde a Idade Média. Geralmente, estas mulheres não escolhem serem prostitutas, seguindo apenas um destino traçado às marginalizadas.

Analisando o livro A prostituição na Idade Média de Jacques Rossiaud, podemos perceber que certos fatos ligados ao comércio amoroso na Idade Medieval continuam valendo para ambos os séculos XIX e XX, onde se passam as narrativas de Lucíola e Tereza Batista cansada de guerra. O antropólogo aponta que a prostituição começa por volta dos 17 anos, sendo que 1/3 das meninas começa a se vender aos 15 anos. As causas da prostituição variam quase num sentido igualitário: algumas mulheres encontram-se sem saída após alguma violação pública, outras acabam sendo prostituídas por membros da própria família ou são arrastadas à prostituição pela extrema miséria e caráter repulsivo do ambiente familiar.

Para entender o sentido da violação é necessário ter em mente a condição social ou estat predominante na Idade Média. Segundo a mentalidade corrente na época, torna-se comum relacionar a honestidade de uma mulher ao seu estat. Assim, as mulheres das camadas sociais mais humildes não podem pretender a mesma idoneidade de uma mulher burguesa. É justamente ao estat que está relacionada a agressão. Rossiaud aponta que “os agressores atacavam sobretudo as mais fracas ou as isoladas (...) aquelas ainda solteiras ou que permaneceram por muito tempo viúvas”1.  É de se considerar que em uma sociedade regida pelos dogmas da igreja, que impunha o matrimônio como destino natural de todas as moças, as mulheres violadas acabavam por ser tornarem suspeitas ou desprezadas socialmente.

            Esta mesma constatação vale para as protagonistas Maria da Glória/Lúcia e Tereza Batista. Podemos dizer que ambas foram vítimas de agressões semelhantes: Maria da Glória é corrompida em sua ingenuidade por Couto, que abusa de seu corpo ainda virgem  em troca de ajuda monetária a família enferma da menina. Aos 14 anos, ignorando o que seria “a honra e a virtude da mulher”2, Maria da Glória começa cegamente a trilhar os caminhos da prostituição. Abandonada pela família que se escandaliza ao saber da violação, Maria da Glória acaba resignada a conseguir seu sustento comercializando seu corpo, sentindo-se impura para carregar o próprio nome, consagrado à madrinha Nossa Senhora, Maria da Glória assume a identidade de Lúcia, uma amiga também prostituta que morre tísica.

            O destino da jovem Tereza Batista não foge ao de Maria da Glória. Ao ser vendida ainda menina pela tia ao coronel Justiniano, Tereza vê-se violada, coagida sexualmente tornando-se escrava disponível a realizar os desejos do patrão. Após assassinar o coronel, Tereza não encontra outra saída a não ser “ingressar na vida”3 no prostíbulo de Gabi. De prostituta à amázia, de amázia à cantora de cabaré, Tereza Batista experimentou várias relações ilícitas ao olhar da sociedade.

            Nos caminhos trilhados pela prostituição, encontramos a figura apelativa da cafetina ou alcoviteira. Sempre dispostas a “ajudar” as meninas em desespero, elas procuram apresentar o mundo da prostituição como algo fascinante aos olhos das moças. Rossiaud aponta que na Idade Média as chamadas alcoviteiras cumpriam o papel de “acolher as vítimas das agressões, solicitam as mulheres oprimidas pelo casamento ou recebem moças pobres ou abandonadas”a. Na verdade, com o crescimento das agressões, a alcovitagem tornou-se um comércio frutífero capaz de triplicar a renda familiar. Entre as alcoviteiras encontramos viúvas ou mulheres casadas que junto de seus maridos (artesãos, carroceiros, feirantes) mantinham bordéis em suas residências.

            O comportamento das cafetinas sofreu poucas alterações com o passar dos séculos. Se na Idade Média, mulheres casadas chegam a manter prostíbulos, a regra geral dos últimos dois séculos passados (séculos XIX e XX) é que ex-prostitutas decadentes, porém conhecidas gerenciem os bordéis.

            O que geralmente marca essas mulheres é o poder do convencimento: ao acolherem meninas em sua maioria desamparadas, estas mulheres vislumbram um mundo fantástico no qual o prazer é liberado. Ao assumirem tal discurso, essas mulheres reproduzem um tipo de transgressão “isenta da preocupação de observar escrupulosamente os interditos”5. Na verdade, o discurso ligado ao apelo erótico complementava a chantagem inicial no qual as retribuições pelos favores prestados poderiam ser simplesmente pagas com a comercialização do corpo.

            Este mundo é apresentado às nossas protagonistas. Levando em consideração o fato de ambas Maria da Glória e Tereza Batista encontrarem-se desamparadas, o esforço de convencimento das cafetinas que as acolheram não foi em vão.

            Jesuína, personagem do romance Lucíola assume a figura da cafetina que cobra à Maria da Glória os favores prestados, traçando os novos rumos da vida da menina. Na confissão de seu passado a Paulo, Maria da Glória revela os dias de angústia em que Jesuína “coloca um preço a seus serviços”6.

            Tereza Batista, violada, tida na cidade como assassina (mesmo que de seu algoz), desiludida em seu primeiro amor vê na prostituição na “casa” de Gabi um meio de não só ganhar a vida, mas também fugir de seus fantasmas. Porém, no romance Tereza Batista cansada de guerra, o comportamento que aparece mais explicitar o discurso das cafetinas está presente nas palavras de Veneranda. Começando por descrever o ambiente luxuoso e confortável do prostíbulo onde mantinha suas meninas, Veneranda tenta através de seu poder de convencimento, seduzir Tereza Batista com inúmeras promessas.

(...) a esclarecida Veneranda se propunha a lhe estabelecer clientela seleta e de alto gabarito financeiro, de calendário mais ou menos estrito, clientela pouco fatigante e muito lucrativa. Se fosse tão competente quanto bonita, ela terá condições de ganhar dinheiro fácil e, não sendo de loucuras, dada a sustentar gigolôs, poderá fazer rico é de meia.”   (AMADO, p. 24)

           

Aliás em Tereza Batista cansada de guerra a maior parte da sociedade parece encarar a prostituição como um fenômeno natural, uma profissão como outra qualquer. Adriana, estalajadeira da pensão onde Tereza residia, é a voz corrente de quem encara com naturalidade as promessas das cafetinas.

“Para Tereza, bolada maciça – mais importante ainda, porém a possibilidade do generoso ricaço se agradar do manejo das ancas da rapariga, estabelecendo-a em casa forrada de um todo. Tereza com a mão na massa e ela, Adriana, amiga do peito, catando as sobras, com as sobras se satisfaz”  (AMADO, p. 54)

 

            Em Tereza Batista cansada de guerra parecem as meninas serem empurradas rumo ao vício. Em Lucíola, o fenômeno da prostituição é condenado pela sociedade hipócrita que apesar de utilizar-se dos serviços de prostitutas, condenava-lhes o modo de vida.

“‘_ Quem é esta senhora?’ Perguntei a Sá.  A resposta foi  um sorrido inexprimível, mistura de sarcasmo, bonomia e fatuidade (...)

_ ‘Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?’ ”   (ALENCAR, p. 15)

 

            O comportamento social do século XIX frente à problemática da prostituta pode ser entendido através desse trecho retirado do livro Eros e civilização: “Freud atribui ao sentimento de culpa um papel decisivo no desenvolvimento da civilização (...)” afirma ainda “a sua intenção de representar o sentimento de culpa como o mais importante problema da evolução da cultura (...)”7.

            Até certa forma, é o sentimento de culpa que a sociedade do século XIX acaba incutindo indiretamente na consciência Lúcia. Sem importar-se com as razões que a fizeram encontrar-se em tal condição, o meio social a condena, excluindo-a por sua imagem macular a presença das chamadas mulheres honestas.

 

 

Imagens eróticas em Lucíola e Tereza Batista cansada de guerra:

 

Pontuar as imagens eróticas em um texto é sempre uma tarefa complexa, solicitando pesquisas em torno de suas definições. Ao tentar definir erotismo esbarramos na dificuldade em encontrar o ponto onde o erotismo se finda e começa a pornografia. Por serem palavras pertencentes ao mesmo campo semântico, muitas vezes acabamos por confundir as imagens eróticas com as pornográficas.

Segundo Deneval Siqueira de Azevedo Filho “o erótico e o pornográfico são vistos como uma forma de revelação de alguma coisa que não deve ser exposto. Ao prazer do mistério eles oferecem, em oposição, o prazer do desvelamento”8. Na verdade ambas as imagens eróticas e pornográficas oferecem o recurso de trabalhar com o que é ocultado no campo da sexualidade. O sentido de revelação do sexo assume a ideologia do “mundo sagrado” descrito por Georges Bataille em O erotismo, pois concentra-se em transgredir os interditos sociais que tendem a enxergar a sexualidade como um tipo de pecado. Deste modo, pornografia e o erotismo vão deixando suas marcas, consagrando-se como “expressões do desejo que triunfam sobre as proibições”9.

Porém, em um ponto, existe uma diferenciação entre erotismo e pornografia: as imagens eróticas tendem a ocultar o que as imagens pornográficas revelam. Enquanto o texto erótico tende a trabalhar com a técnica de velamento, deixando subentendida uma cena sensual, o texto pornográfico faz questão de revelar, fazendo “surgir aquilo de que se tem vergonha”10.

A figura da prostituta excita o imaginário justamente por ser ela quem se revela numa relação. Não existem pudores, regras, interditos; a mulher que se prostitui sempre oferece a imagem da incansável mulher sempre disposta a doar prazer e realizar desejos. Da mesma forma ocorrem com as “modelos” de revistas pornográficas, ao revelarem o corpo nu, colocam-se tal qual uma oferenda pronta a transgredir os interditos.

            Nos romances Lucíola e Tereza Batista cansada de guerra encontramos trechos recheados de imagens eróticas. Assim, quando aparecem estas imagens, encontram-se dentro de um contexto adequado com a sua ação.

            Tal exemplo, pode ser encontrado na cena em que Lúcia toma a iniciativa de imitar as pinturas expostas na sala da casa de Sá:

“Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros de flores, trançou-a nos cabelos, coroando-a de verbena, como as virgens gregas. Depois agitando as tranças negras, que se enroscavam tais quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e começou a imitar uma das lascivas pinturas; mas a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação ge gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com a voz que expirava no flébil suspiro e no beijo soluçante, com a palavra trêmula que borbulhava dos lábios no delíquo do êxtase amoroso”   (ALENCAR, p. 41)

 

Há um apelo visual na cena, o vocabulário bem construído acaba por transmitir um toque de leveza ao momento, propiciando um tom de sensualidade à cena, não permitindo que esta se torne vulgar.

A tendência às imagens eróticas permanece ao analisarmos o comportamento de Lúcia. Ao entregar-se à volúpia sexual, a cortesã demonstra toda uma liberação de instintos que é marcado no texto pela presença de um léxico que traduz a zoomorfização da personagem:

“O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário o curvava, como uma haste delicada ao sopro de auras; e agora arqueava enfunando a rija encarnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso”  (ALENCAR, p. 25)  

 

            A zoomorfização da personagem serve para mostrar sua transformação ao serem animados os seus desejos mais internos, pois “Lúcia sentia; sentia com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes”11. Assim, Lúcia passa de felina à cobra, de cobra à gazela, construindo com suas atitudes um universo totalmente sensualizado.

“Era uma transfiguração completa. Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega Desfazia os frágeis laços que prendem as vestes. À mais leve resistência dobra-se sobre si mesma como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos”  (ALENCAR, p.26)

 

            O comportamento sensualizado de Lúcia mexe com as sensações eróticas de Paulo, fazendo-o desejar a Cortesã cada vez mais.

“(...) e não sei se no dia seguinte trocaria a voluptuosidade lenta e infinita de minhas recordações ainda recentes por outra hora de febre ardente que na véspera me prostrara nos braços de Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos os meus desejos que eu supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos da presa em que uma vez se tinham cevado. (ALENCAR, p. 27)

 

O velamento erótico em Tereza Batista cansada de guerra adquire um tom poético principalmente nas relações entre o par amoroso Januário Gereba e Tereza. Jorge Amado usa a metáfora “foi o mar” ao deixar em suspense as cenas em que Tereza se entrega a Janu. Aliás, uma das primeiras relações sexuais entre o casal acontece no mar: “(...) nas areias rolaram; as ondas molhavam seus pés, a aurora nascia da cor de Januário”12. Podemos associar o mar ao espaço de transformação e renovação, o espaço onde os desejos fluem infinitamente. Esta renovação pode estar vinculada ao amor verdadeiro de Tereza; um amor maduro:

“Era o mar infinito, ora verde, ora azul, verdeazul, ora claro, ora escuro, claroescuro, de anil e celeste, de óleo e de orvalho e como se não bastasse com o mar, Januário Gereba encomendara lua de ouro e prata, lanterna fincada no alto dos céus sobre os corpos embolados na ânsia do amor; (...)”  (AMADO, p. 47)

 

            Realmente, as imagens eróticas consagram-se quando a protagonista entrega-se a um homem por amor. Algumas cenas, apesar de narradas sem velamento, possuem um tom mais voltado para o lado sensual do que propriamente o lado pornográfico. Assim, acontece com o primeiro amor de Tereza, Daniel e mais tarde, o Dr. Emiliano Guedes: “Tereza é tomada por sentimentos e sensações para ela desconhecidos: moleza a descer pelas pernas, nasce-lhe um frio no ventre, um calor lhe queima as faces, súbita tristeza, vontade de chorar, vontade de rir (...)"13.  É com Daniel que Tereza conhece o gozo, o impulso sexual, o desejo reprimido. Esta transformação faz com que ao longo da estória Tereza ao Apaixonar-se fique “outra vez donzela”14.

 

Caminhos cruzados, atitudes opostas: a prostituta romântica X a prostituta moderna:

 

No mundo sedutor de Lucíola e Tereza Batista cansada de guerra encontramos fatores que aproximam a realidade dessas duas mulheres. Propondo-se como título do trabalho, que destina-se a pesquisar as semelhanças e diferenças dessas personagens, Caminhos cruzados, atitudes opostas mostra a diferença de personalidade, as virtudes, a maneira de encarar o sexo por parte das protagonistas.

A diferença no contexto espaço-temporal, os hábitos, a cultura vão influenciar diretamente no comportamento das personagens. Aliado a este fato, encontra-se a estória de vida desenvolvida no enredo dos romances. O passado das protagonistas é um fator que explica boa parte de suas atitudes no decorrer do romance.

Mas, antes de qualquer análise é preciso compreender que estamos trabalhando com personagens de estilos de épocas diferentes – este estilo acaba por influenciar o autor a construir suas protagonistas segundo um modelo recorrente. Daí, colocarmos em foco a prostituta romântica versus a prostituta moderna.

Comparando assim as personagens Lúcia e Tereza Batista podemos traçar logo de imediato a diferença no modo de encarar a prostituição. Enquanto Lúcia assume uma postura angustiada, Tereza Batista tende a manter uma certa indiferença pelo seu ofício.

            A personalidade triste e amarga de Lúcia é construída pela própria ambigüidade presente na personagem: apesar de não concordar com sua própria atitude, Lúcia é levada por um impulso incontrolável que a leva a realizar o ato sexual. Porém, em sua prostituição não existe preço; nada é negociado. Lúcia “aceita friamente o que lhe dão e nada mais.”15. Deste modo, a personagem assume o verdadeiro papel de cortesã – “o pudor não devia existir para ela, mas devia conservar o princípio do primeiro contato que ordena que uma mulher tenha medo de se entregar, e que o homem exija a reação de fuga”16.

            Apesar desse comportamento ser-lhe próprio de uma personalidade natural, Lúcia não conseguia controlar o desejo sexual que a invadia ao permanente contato com um homem:

“O rosto cândido e diáfano, se transformara completamente, tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam tímidos dos desejos que incubavam. (ALENCAR, p. 25)

 

 

Se o comportamento de Lúcia direcionava-se à volúpia e a entrega, a consciência de seu ato encaminhava-se a condená-la. Lúcia sentia repúdio pelo o que fazia, e pelo fato de não conseguir evitar o desejo; sabia que a uma cortesã não cabia o direito de escolha: “Quem não tem o direito de escolher, aceita o primeiro que lhe chega; e o mais ridículo é sempre o melhor”  (ALENCAR,  p.  71)

            Sua condenação pessoal é também resultado do próprio pensamento preconceituoso da sociedade em que vive. Lúcia inferioriza-se ao sentir este olhar preconceituoso; sente-se impura perante outras mulheres e não merecedora de afeto e amor sinceros: ela tem a consciência que perante a sociedade ela não é mais do que um mero objeto nas mãos dos homens que dispostos a saciar seus desejos não recusam a satisfazerem todas as suas futilidades.“Ah! Esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro de praça, que não pode recusar quem chega” (ALENCAR, p. 67)

            Tereza vê a prostituição como um modo de vida, de sustento. Para Tereza, na vida não existe o instinto do prazer; somente a obrigação de satisfazer o cliente: “(...) o frio a envolveu, aquela capa de gelo a cobrí-la em cama de prostituta, a mantê-la íntegra, distante do ato, vendendo apenas a beleza e a competência e nada mais.”17.

            O comportamento de Tereza sustenta a tese de Francesco Alberoni em O erotismo: “A prostituta finge para ganhar dinheiro (...) aceita os desejos eróticos do homem, mesmo se não os aprecia, se nada têm a ver com os seus desejos”18. Não existe troca para Tereza na prostituição – o homem paga, tem o seu corpo (não o seu prazer) e vai embora, deixando-a livre para outro.        

            O olhar de Tereza em relação à prostituição é frio, diferentemente de Lúcia. Isto ocorre, pois Lúcia se entrega na relação e Tereza, não. Porém, se compararmos a experiência do amor vivenciada pelas duas, vamos perceber que os papéis se invertem: enquanto Tereza só se doa por prazer quando ama, Lúcia sente que o prazer com o homem amado continua constituindo a mesma experiência de pecado que teve com outros homens.

            A personalidade angustiada de Lúcia procura manter o padrão de mulher imposto no romantismo. Aliás, esta aflição representada em Lúcia torna-se um mecanismo usado pelo autor no sentido de moralizá-la. A descoberta do amor faz com que Lúcia precise de perdão para seus pecados, procurando a redenção de sues atos.

            Tereza responde ao enamoramento de forma diferente. Sua sexualidade “assume uma forma e intensidade totalmente diferentes, excepcionais em certos períodos do amor”19. Para Tereza somente o amor é capaz de fazê-la sentir o sexo;  o gozo, o deleite amoroso com o ser amado é o que lhe purifica a alma:

“Sendo incapaz da luxúria pura e simples, para entregar-se com ânsia, para abrir-se em gozo, necessitava de afeto profundo, de amor; só assim, nela se acende o desejo em labaredas e em febre, não havendo então mulher como Tereza”.  (AMADO  p. 198)

 

            Tereza e Lúcia passam portanto, pela mesma experiência de via. Não somente o ato de prostituir as marcam, mas a ausência da família, que as conduzem diretamente ao caminho da prostituição. Porém, convém apontar como a absorção desta experiência marca a personalidade das protagonistas: Lúcia, responde ao ideal romântico, sustenta as culpas num “sorriso melancólico”20, Tereza obedecendo o ideal de mulher-dama dos romances de Jorge Amado “nasceu para rir e alegre viver”21.

 

Considerações finais:

 

A Literatura humaniza. Humaniza no sentido de trazer à tona as vozes dos marginalizados e excluídos da sociedade. Esta sociedade que com seu cajado reacionário condena os seres à uma eterna culpa. Entre esses seres repudiados pela sociedade, encontramos estas prostitutas que emergem de um universo obscuro para deixar vir à tona as reflexões sobre o destino dos seres condenados pelo meio social.

            Torna-se assim, fácil apontar somente os erros, atirando na lama o nome daqueles que por uma armadilha do destino ostentam o comportamento do vício e da promiscuidade. Assim acontece em Lucíola – o olhar hipócrita que despe a bela cortesã de suas vestes, é o mesmo que pune com uma moral decadente, o seu comportamento.

É neste olhar de reprovação que estão contidos a imagem da mancha, da mácula, do pecado. Invenções de uma sociedade que não move um músculo para ajudar seus indivíduos.

Porém, aliada à experiência da culpa encontra-se o discurso capitalista das autoridades – a falta de dinheiro que condena os seres menos favorecidos a cometer atitudes consideradas desagradáveis, é o mesmo que determina, compra e alimenta os tais vícios já enumerados por esta sociedade.

Sociedade esta, que empurrou as meninas Maria da Glória e Lúcia rumo à prostituição; um caminho sem volta para a maioria das mulheres. Mas elas mostram a força feminina frente à fatalidade do destino. Inconscientemente, elas lutam contra as forças repressoras que querem mantê-las na obscuridade de seus atos, castrando os seus desejos, sonhos e vontades.

Em resposta ao pensamento preconceituoso da sociedade, elas vivem. Vivem no nosso imaginário, nas nossas reflexões além dos textos de Alencar e Amado. Cada prostituta idealizada por estes autores traduzem uma personalidade particular, cheia de mistério e sedução: Tereza sorri, luta, ama, vivendo, tirando o máximo da vida. Lúcia/Maria da Glória revolta-se, coloca para fora a voz desesperada de quem percebe e sente a hipocrisia da sociedade. Em sua batalha, morre; mas deixa antever o seu espírito superior, já purificado de todas as tristezas.

Elas nos ensinam. Ensinam que precisamos saber mais, ler mais, pesquisar mais antes de sermos enredados pela máscara da sociedade e difundirmos visões pré-concebidas e ordinárias.

A literatura mais uma vez cumpre o seu papel desmistificador., abrindo espaço para denúncia de vidas que não encontram-se apenas presentes nas páginas de romances, mas que fazem parte de todo um universo além do literário.

 

Referências  bibliográficas:

 

 

1.      ALBERONI, Francesco.  Enamoramento e amor.  Trad. De Ary Gonzalez Galvão, Rio de Janeiro: Rocco, 1990;

2.      ------,  O erotismo.  Trad. de Élia Edel, Rio de Janeiro: Rocco, 1997;

3.      ALENCAR, José de.  Lucíola.  27ª ed. Rio de Janeiro: Ática, 2002;

4.      AMADO, Jorge.  Tereza Batista cansada de guerra. 15ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1981;

5.      BATAILLE, Georges.  O erotismo.  Trad. de Antônio Carlos Viana, Porto Alegre: L&PM, 1987;

6.      BRECHT, Bertold.  Antologia poética de Bertold Brecht.  Trad. de Edmundo Moniz, 3ª ed. Rio de Janeiro, 1982;

7.      FILHO, Deneval Siqueira de Azevedo.  Holocausto das fadas: a trilogia obscena e o Carmelo bufólico de Hilda Hilst. São Paulo: Anablume: Edufes, 2002;

8.      MARCUSE, Herbert.  Eros e civilização. Trad. de Álvaro Cabral, 8ª ed. Rio de Janeiro: LTC editora.

9.      ROSSIAUD, Jacques.  A prostituição na Idade Média. Trad. de Cláudia Schilling, Rio de Janeiro:  Paz e Terra, 1991.

 


 

1 ROSSIAUD, p. 38

2 ALENCAR, J  p. 109

3 AMADO, J  p. 235

a ROSSIAUD, op. cit, p. 40

5 BATTAILLE, G.  p. 126

6 ALENCAR, op. cit, p.110

7 MARCUSE, H  p.83

8 FILHO, D  p. 30

9 Ibidem, p. 30

10 Ibidem, p. 34

11 ALENCAR, op. cit. p. 26

12 AMADO op. cit, p. 46

13 Ibidem, p. 61

14 Ibidem, p. 160

15 ALENCAR, op. cit. p. 29

16 BATTAILLE, op. cit. p. 125

17 AMADO, op. cit. p. 199

18 ALBERONI, F.  p. 15

19 ALBERONI, F. Enamoramento e amor  p. 10

20 ALENCAR, op. cit.  p.17

21 AMADO, op. cit.  p. 14

  
 

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