POR UMA EPISTEMOLOGIA DO ESPAÇO FICCIONAL EM LITERATURA

A GEOGRAFIA DO AFETO

                                                                                      Por Ítalo Meneghetti Filho[1]

 RESUMO

Espaços criados pela ficção, em literatura, exigem do ficcionista não somente a relação inventiva com a linguagem, mas também o exercício de memória, donde afluem as lembranças, renovadas por sua imaginação e recriadas, posteriormente, pelo imaginário dos leitores. Tal espacialidade tem no ato afetivo (e desafetivo) o seu principal vetor de expansão, diferentemente dos espaços comumente trabalhados e descritos pela Ciência da Geografia, aonde a cultura, ambiência, política, economia, tecnologia etc., agem como vetores construtores do modelo espacial. Exige-se, portanto, em Ciência da Literatura, o esforço epistemológico de teorização, em Teoria Literária, para se compreender a gênese, o funcionamento e as relações da espacialidade afetiva com as muitas e diversas realidades das irrealidades construtoras do literário na dimensão subjetiva da linguagem no espaço.

 

POR UMA EPISTEMOLOGIA DO ESPAÇO FICCIONAL EM LITERATURA

A GEOGRAFIA DO AFETO

Quando um escritor está diante da sua página em branco, está na realidade frente a um dilema afetivo de criação. A sua memória, nesse momento, se expande e se contrai, como o próprio Cosmo, num pulsar criativo aonde o tempo é pura criação de espaços. Ilya Prigogine[2], em seus estudos avançados com as teorias da termodinâmica, muito nos tem apontado neste caminho do conhecimento. Para ele, a situação do tempo e da temporalidade no, e do, Universo é puro desdobramento criativo na interagência com os seus espaços e as suas espacialidades. Pois bem, quando um escritor está diante da sua página em branco e o dilema afetivo se apresenta, o seu microCosmo aciona criativamente a sua temporalidade humana e a sua memória recorre aos seus arquivos dispostos em labirintos e extrai lembranças que emergem renovadas, num recriar da tempoespacialidade, arquivada, revisitada no seu agora e, por isso, tornada em agora novamente. É quando o guardado da memória é tornado duração, como nos ensina Bergson[3]. O tempo, tomado em sua permanência. Uma espécie de presente distendido ao infinito de si, numa seqüência infindável de agoras. Quando um escritor está diante da sua página em branco, é na verdade o agora, pelo poder da linguagem, que se reescreve e se reinaugura em seu tempo e espaço.  

A página em branco de um escritor é o lugar físico aonde se alocam os símbolos das suas lembranças, movidas por sua profusão criativa. Tal jorro de imagens só é possível porque o tempo e o espaço se expandem, na medida em que as imagens se sucedem[4]. As palavras, símbolos lingüísticos, potencializam a duração, por seu poder de poíesis, e, intensificam a expansão por seu poder de mímesis[5], numa potencialização permanente do tempo e intensificação constante do espaço. A página em branco de um escritor se escreve, portanto, a partir do seu conteúdo de reescritura, numa espécie de palimpsesto aonde as rasuras ganham tonalidades de inventiva e o novo se faz pela consubstanciação ao antigo, no que se entende por ficção, numa lavoisierização da escrita, aonde nada se cria, mas tudo se transforma nas sucessivas reescritas da linguagem.     

Poese e mimese, portanto, são intrínsecas ao fictício em sua potência de escrita, latência de tempo e produção de espaço. Fazem parte do constructu do ficcionista em sua viagem simbólica, em seu percurso de pensamentos e palavras, em seu devaneio de imagens e profusão de tempo e espaço. Essa a travessia de quem faz da ficção o seu ofício cotidiano de escritura na lâmina cortante entre a realidade e o sonho. Na poese o ficcionista encontra a sua chama piloto, o seu ígneo impulso de criação na formação do seu texto, a inspiração em sua ação de algo por fazer, a potência do seu ato criador. A mimese lhe proporciona a oportunidade de escavar os seus escombros e colocar a céu aberto os seus sítios arqueológicos, numa arqueologia da alma, capaz de recriar realidades e fazer espaços a partir do seu material afetivo, originado de afetos e desafetos com épocas, lugares, pessoas, situações e ambiências na caracterização dos cenários fictícios. E aqui, chegamos ao rumo de partida desta breve reflexão epistemológica, conseqüentemente, também, metodológica da questão espacial, dos espaços das ficções em literatura, quando algumas indagações se apresentam e esboçam o itinerário da nossa pesquisa.     

Será que é possível compreender o funcionamento desses espaços somente com o teor analítico e crítico da Teoria Literária ou será preciso emprestar da Geografia o seu sofisticado ferramental, amplo e intensamente desenvolvido na lida com a análise espacial?

Até que ponto, podemos compreender a dinâmica de criação e funcionamento dos espaços ficcionais, nas ficções literárias, por meio das ferramentas da Geografia usual, se os espaços analisados por esta são oriundos de forças e processos culturais, ambientais, políticos, econômicos, históricos, tecnológicos etc., e, nas narrativas de ficção as forças motrizes geradoras de espaços parecem estar relacionadas aos laços afetivos (ou desafetivos) do autor com a dimensão narrada? É possível então pensarmos uma categoria afetiva de espaço, responsável pela espacialidade ficcional em literatura? Será o afeto uma categoria válida de gênese espacial? Como lidar geograficamente com tal categoria? Estaremos diante da possibilidade epistemológica de uma geografia do afeto capaz de tratar adequadamente os espaços da alma em suas fontes afetivas extraídas à lembrança da memória? Tal geografia nos possibilitará identificar e mapear essas fronteiras de sutilezas aonde se alojam emoções mimetizadas pela razão? Poderá essa possível geografia do afeto nos revelar com mais clareza e profundidade analíticas as complexas relações emotivas entre autor, narrador e lugar? E para a chamada literatura regional, fortemente relacionada à noção de lugar, quem sabe não seja esta a ferramenta geográfica de análise que falta para que a crítica literária possa, sem preconceito, melhor delinear o caráter universal da região e suas localidades? Mais ainda, essa possível geografia do afeto poderá ser valiosa ferramenta de análise para a crítica literária em suas incursões, não raro às cegas, sobre a espacialidade ficcional? Será a afetividade narrativa das ambiências inventadas, mas com elementos extraídos da memória do narrador, o elo epistemológico entre a Teoria Literária e a Geografia do Espaço, numa aproximação metodológica capaz de acrescentar a uma e a outra, novos componentes aos seus campos de teorização? 

São muitas as indagações e o seu grau de complexidade, demanda aprofundado estudo no âmbito da pesquisa, no doutorado, na interface Teoria Literária / Geografia do Espaço, que é onde o nosso trabalho se situa e desenvolve. Trata-se de uma empreitada de natureza teórica, a qual podemos delimitar, por meio do recorte, o seu campo de abordagem, tornando-a mais previsível em função dos prazos da pós-graduação, atualmente encurtados pelos órgãos de fomento à pesquisa no país. Evidentemente que um objetivo de tal envergadura requer, além de sofisticado nível de abstração, uma capacidade transdisciplinar que permita trafegar por entre os diversos campos disciplinares, nos interstícios das suas interdisciplinas, mas com consistência metodológica e permanente olhar epistêmico. Para tal estamos tendendo a escolher por recorte a espacialidade sertaneja, que é aonde o espaço pode alcançar a sua mais plena riqueza simbólica e multiplicidade de lugares. Não sem razão, João Guimarães Rosa afirma na abertura do seu Grande sertão: veredas que “o sertão está em toda parte”, e o geógrafo Antonio Carlos Robert Moraes, Tonico, da Universidade de São Paulo – USP, escreve um importante texto sobre o sertão, enfocando-o na categoria de “um ‘outro’ geográfico”, onde a sua dimensão espacial transcende as categorias físicas, bióticas e antrópicas, ganhando uma realidade simbólica, um status de “ideologia geográfica”.[6] Assim, o sertão contemplado como recorte em nossa pesquisa, permitirá olhar os muitos e diversos lugares a partir do seu teor mítico, aonde os afetos e desafetos constroem complexos espaços representativos da totalidade humana e de mundo, quer seja nos seus cenários reais de lugares, situações, coisas, seres e pessoas, quer seja no imaginário da ficção construída por um autor em seu narrativo rememorar afetivo. 

Portanto, se tomada por recorte, a espacialidade sertaneja, real e fictícia, poderá ser laboratório das nossas formulações e incursões teóricas, possibilitando melhor situar o seu contexto numa perspectiva de estudo aplicado e não somente considerado no plano teorético, assegurando assim o seu caráter de contribuição prática em estudos de casos em literatura, geografia, história, antropologia, sociologia etc. 

Quando um leitor está diante do que fora sido a página em branco de um escritor, na realidade está perante uma ampla possibilidade espacial de mundos criados pela linguagem em seu poder de carrear da memória, de quem escreve e de quem lê, imagens emergentes das suas infindáveis lembranças, produzidas pelo vivido. Esse leitor em seu devaneio imaginativo, adentra pela imaginação produzida pelo escritor e chega assim, à dimensão do imaginário, comum a um e ao outro, construindo para o texto uma outra possibilidade simbólica, somente viável diante do encontro autor e leitor, no texto, em sua dimensão narrativa, em seu espaço feito de lembrança e inventiva, mas com tal força semântica e poética, que pode mesmo ser confundido com a própria realidade fora do texto, num processo mimético de verossimilhar o inverossímil. Desse modo, o espaço inventado é de um elevado grau de complexidade, tal que não bastam apenas as miradas interpretativas da literatura, nem historicizadas, tampouco somente psicanalizadas. É necessário mais, para se acercar dos protocolos de acesso ao conhecimento dos espaços ficcionais. É preciso, também, geograficizar o método teórico da ciência literária para se começar a compreender a magia desses espaços aonde a mente empreende os seus sonhos como se fossem realidades... e quem sabe, não sejam?  

Por certo uma geografia capaz de tratar tal espacialidade subjetiva, deve ser uma geografia dotada metodologicamente e epistemologicamente de recursos refinados de análise espacial, capaz de simular formulações de entendimento para modelos espaciais retirados da inventiva da linguagem, alicerçada pela memória. As espacialidades ficcionais, assim tratadas, poderão revelar aspectos inusitados de sutilezas que escapam ao olhar desprovido de tais ferramentas, extraídas sobretudo a partir do movimento da renovação da geografia, com ampla repercussão nos anos setenta do século vinte e que teve em Milton Santos, um dos seus maiores expoentes, este, desenvolvendo uma geografia capaz de relacionar a técnica, a emoção, o tempo e a razão na procura pelo conhecimento da natureza do espaço[7], chegando a construir, nos seus últimos anos de vida, até o ano de 2001, um texto na fronteira do poético e do geográfico, sustentado pela consistente reflexão filosófica. Todo esse trabalho pode e deve ser aproveitado na busca por se compreender os espaços inventados na dimensão poética dos textos literários em suas relações de reais irrealidades... ou de irreais realidades. 

Tratar o afeto e a afetividade na perspectiva de uma construção metodológica e epistemológica geográfica, em ciência literária, significa levar em conta a emoção[8] evocada pela lembrança, quando o ficcionista faz emergir da memória os elementos construtivos da sua inventiva textual. A emoção, ao contrário de outras forças motrizes do espaço, imprime fortes imagens na imaginação, criando vínculos de estreitamento mais intensos e duradouros, capazes de perdurarem por uma vida inteira e não é demais, aqui, citar alguns grandes ficcionistas, como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Gabriel Garcia Marques, Alberto Camus, Antônio Torres, dentre tantos outros, para não dizer de grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Salgado Maranhão, Adriano Espínola etc., que mesmo residindo bem longe das suas terras de origem, jamais as deixaram de fora dos seus afetos (e até desafetos, como no caso de Graciliano Ramos). A memória permanentemente revisitada, permitiu a esses autores e a tantos outros, criarem espaços de intensa pigmentação afetiva, construindo uma verdadeira espacialidade do afeto, capaz de levar o leitor a percursos de fortes realidades vividas, ainda que ficcionais. 

Buscar as bases metodológicas e epistemológicas para uma geografia que contemple a afetividade como produtora de espaços é em parte retomar algo da geografia do vivido de Yi-Fu Tuan[9] e traze-la para os dias de agora, como o fogo crepitante que arde as madeiras da lareira da casa de Anita, nesta fria noite de junho, aonde em minha mente a espacialidade, real ou fictícia, deve refletir o entrelaçamento dos possíveis com os impossíveis do lugar, numa produção de sentido, capaz de significar o mundo, ainda que apenas narrado nas páginas de um velho livro, jogado fora por um leitor apressado, desinteressado da matéria densa e sofrida com que os genuínos escritores inauguram espaços em nossas almas ou os revisitam, não raro, para nos desaprisionar do claustro da nossa própria espacialidade tangida de humana escassez.  

Relembro neste instante, antes de buscar o ponto final por provisório, Armando Corrêa da Silva[10], meu saudoso amigo e mestre de geografia feita com afeto e que era professor, pesquisador e orientador na USP, ao mesmo tempo em que nas frias madrugadas era pianista num piano-bar de São Paulo e que encontrou o seu derradeiro instante, sozinho, em casa. Pois bem, penso que no fundo todos os espaços que buscamos ao longo da nossa vida são plenos de solidão, ao mesmo tempo em que construídos de presença e outras matérias do cotidiano, mas é na solidão que o nosso espírito contempla a vaziez e despresença do outro e que somente o afeto da amizade e do amor podem atenuar e que sejam portanto, o que um escritor busca escrever diante da sua página em branco, no enfrentamento do seu dilema afetivo de criação, trazendo para dentro das suas páginas a presença desse outro, numa contigüidade espacial capaz de assegurar o diálogo entre ele e o desconhecido.


 

[1] Ítalo Meneghetti Filho é graduado em Oceanografia, pela UERJ, e, Filosofia, pela UFRJ; pós-graduado, com especialização em Planejamento Ambiental, pela UFF, mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária), pela UFRJ, orientado pela Prof. Dra. Angélica Soares, e, doutorando em Ciência da Literatura (Teoria Literária), pela UFRJ, orientado pelo Prof. Dr. Alberto Pucheu.

[2] PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa (Portugal): Edições 70, 1990.

[3] BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

[4] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

[5] AUERBACH, E. Mímesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1987.

[6] MORAES, Antonio Carlos Robert. O sertão: um outro geográfico. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, v. 13-14, p. 360-369, 2002.

[7] SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1997.

[8] PUCHEU, Alberto. Pelo colorido, para além do cinzento. Mimeografado.

[9] TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar. São Paulo: Difel, 1983.

[10] SILVA, Armando Corrêa da. O espaço como ser: uma autoavaliação crítica. In: MOREIRA, Ruy. (Org.) Geografia: teoria e crítica. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 75-92. 


  

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