FANTASIAS DE AMOR E MORTE: MÁSCARAS CARNAVALESCAS EM EDGAR ALLAN POE E LIMA BARRETO

 

Deize Fonseca

(Mestranda em Ciência da Literatura, Poética, UFRJ)

 

Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou(...)

Vinicius de Moraes e Carlos Lyra,Marcha da quarta feira de cinzas

 

RESUMO: O Carnaval é por excelência,um momento de exacerbação e mascaramento. Edgar Allan Poe(1809-1849), em seu conto “A Máscara da Morte Rubra”, mostra um Carnaval da era medieval, que se transmuta de escapismo da nobreza em momento de ajuste de contas com o Destino. Já Lima Barreto(1881-1922), em seu conto “Cló”, mostra a fantasia de desregramento e liberação sexual de uma jovem da pequena burguesia carioca em plena belle époque . O que permite esta leitura comparada é a máscara, que emerge como elemento catalisador, tanto das emoções dos personagens quanto da crítica social presente nos dois contos.

 

Pretendo neste trabalho estabelecer uma leitura comparada dos contos “A máscara da Morte Rubra”, de Edgar Allan Poe e “Cló”, de Lima Barreto, sob a perspectiva carnalesca e carnavalizante que ambos proporcionam.

Edgar Allan Poe(1809-1849), escritor norte americano do Romantismo, é consagrado por seus contos de ambientação gótica, em que fatos bizarros e inexplicáveis são narrados com maestria e sofisticação de linguagem.

Lima Barreto(1881-1922),escritor brasileiro, é considerado hoje uma das vozes mais importantes da Literatura brasileira do início do século XX,não somente por seu estilo antecipador das idéias modernistas, mas também pelo forte caráter de crônica social expresso em seu trabalho. Tal como Poe, foi mal compreendido pelos seus contemporâneos, sendo muito mais reconhecido hoje do que em seu próprio tempo.

O pensamento gótico em si mesmo, em sua atmosfera de horror e sobrenatural, pode ser naturalmente considerado uma transgressão. A transgressão resulta da busca incessante do gótico pelo recôndito do sentimento humano, o gosto pelo medo, pelo perigo e o pecado.

Perigo e pecado. Dois elementos que também estão presentes no Carnaval. Porém, antes de compreender esta afirmação, é preciso definir o que se entende por Carnaval.

Uma das possíveis maneiras de entender-se o Carnaval é vê-lo como um ritual de inversão e um rito de passagem. Nessa abordagem, o Carnaval teria origem nas festas pagãs da Antigüidade, onde havia a celebração dos deuses e da natureza. Os festejos “carnavalescos” seriam momentos de supressão da ordem social pré-estabelecida, em que tudo seria permitido, dentro um período de espaço e tempo delimitados. Nesta “suspensão” do tempo cotidiano, predomina a idéia de mundo às avessas: troca-se o dia pela noite, troca-se de parceiros, ou de sexo. Come-se e bebe-se desmedidamente, procede-se enfim, a uma exacerbação dos sentidos. No entanto, tal desregramento tem dia, hora e local para começar e terminar. É uma válvula de escape, que na verdade, longe de questionar a ordem

social, apenas contribui para mantê-la, promovendo o controle social dos instintos naturais dos seres humanos.(MEDEIROS, 2005:6)

Com a ascensão política do Catolicismo na Idade Média, a Igreja Católica tomou para si a função de reguladora social. Não haveria de omitir-se na questão da liberação dos sentidos: o período pré-quaresma passa a configurar o momento de mundo às avessas, sendo assim legitimado. Em troca dos 322 dias de contenção ,somados os 40 dias de privação, ganhavam-se os três dias de folia – surgindo assim o Carnaval como o  conhecemos hoje, inclusive no Brasil. É nessa atmosfera de Carnaval, festa popular com dia e hora marcados, que Lima Barreto situa seu conto “Cló”.

Em “A Máscara da Morte Rubra”, temos uma situação carnavalizada, embora não necessariamente carnavalesca. Poe ambienta o conto em um espaço-tempo indefinido, mas nos remete a uma atmosfera medieval. “Durante muito tempo devastara a morte rubra aquele país” – assim inicia-se o conto. A morte rubra é uma peste mortal e avassaladora, que extermina suas vítimas em curtíssimo espaço de tempo. Neste contexto, surge o Príncipe Próspero “feliz, destemido e sagaz”. É o único personagem nominado no conto, e é ele na verdade, o fio condutor da história. Seu nome remete ao shakespereano personagem de A Tempestade –senhor absoluto de uma ilha utópica, que ao ver-se  subitamente traído e destituído de seus bens, busca vingar-se em seu exílio, com a ajuda de poderes sobrenaturais.

Já o Próspero do conto de Poe, cria para si e seus eleitos, um exílio carnavalizado, onde a ameaça da dor e da morte ficam isoladas, formando uma realidade que desafia a ordem e o destino: ”Providenciara o príncipe para que não faltassem diversões. Havia jograis, improvisadores, bailarinos, músicos. Havia Beleza e havia vinho. Lá dentro, tudo isso e segurança. Lá fora, a “Morte Rubra”. (POE,2001:282)

Nessa atmosfera idílica, o ambiente carnavalizado surge como um espaço de fuga da realidade e também como local de transgressão. Um grupo de eleitos vive em um tempo suspenso, ignorando a dura realidade fora dos muros do castelo. Mais do que válvula de escape, o que temos aqui é tentativa de criar uma nova realidade, a ânsia de viver suplantando a ameaça inexorável da Morte Rubra. Os carnavalescos ousam desafiar a morte, celebrando a vida de forma incontida.

Este momento de suspensão festiva, de vida desafiando a morte (nesse caso, a morte social), também é vivido por Cló, a personagem-título do conto de Lima Barreto. Cló pertence à pequena burguesia carioca da virada do século, é filha de um professor que vive sempre às voltas com dificuldades financeiras, em especial naquele momento de Carnaval, em que era preciso pagar a fantasia de Cló,para que ela enfim brilhasse na sociedade:

Como havia de comprar bisnagas, confetes, serpentinas, alugar automóvel?E – o mais grave – como havia de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado próximo, na Rua do Ouvidor, em toda plenitude de sua beleza, feita ( e ele não sabia como) da rija camadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual... Como havia de dar-lhe o vestido?”(LIMA BARRETO,1990)

Para Cló, o Carnaval é o grande momento de brilho e libertação pessoal.Através da fantasia de preta-mina, Cló deseja afirmar-se como mulher. É o seu momento de desafiar a morte social a que está condenada como moça de família pequeno burguesa,a quem as transgressões são negadas durante o resto do ano.:

Cló, por instantes, mordeu os lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu‑se também, no alto de um daqueles carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade. Era o seu triunfo a meta de sua vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios, em idéias, em violentos desejos naquelas almas pequenas, sujeitas ao império da convenção, da regra e da moral. (LIMA BARRETO, 1990)

Ao invejar as cortesãs que desfilam no alto dos carros alegóricos, Cló projeta-sua fantasia de ser uma mulher completa. Para ela, aquelas são as mulheres vitoriosas, cobiçadas,e acima de tudo, livres. Cló aguarda o momento de ir para o baile – o grande momento de seu Carnaval – estabelecendo um jogo de sedução impossível com o Doutor André , um homem casado a quem jamais terá.

Também o baile – the masquerade – é o ápice no conto de Poe. Para este baile, o Príncipe abre seus salões, iluminados apenas por tochas, e curiosamente decorados num espectro de sete cores, da qual a sétima é justamente o negro, cuja coloração sob as tochas, dá um aspecto fantasmagórico a quem penetra no aposento, sendo por isso um local evitado pelos alegres carnavalescos. O clima orgíaco do baile, porém, é interrompido de hora em hora pelo carrilhão negro, que avança inexoravelmente rumo às doze badaladas.

É interessante notar como nesta descrição do baile, Poe consegue unir o gótico e o carnavalesco. As cores feéricas, o desejo intenso de viver aparecem  todo tempo permeados por um terror invisível, que ameaça materializar-se a cada vez que o carrilhão soa. É o tempo do Carnaval que é interpenetrado pelo tempo real, e faz com que todos se lembrem da ameaça que ficou lá fora.:

Era também nesse salão que se erguia, encostado à parede que dava para oeste, um gigantesco relógio de ébano. O pêndulo oscilava para lá e para cá, com um tique-taque vagaroso, pesado, monótono. E quando o ponteiro dos minutos concluía o circuito do mostrador e a hora ia soar, emanava dos pulmões de bronze do relógio um som claro, elevado, agudo e excessivamente musical, enfático e característico que, de hora em hora, os músicos da orquestra viam-se forçados a parar por instantes a execução da musica para ouvir-lhe o som: e dessa forma, obrigatoriamente, cessavam os dançarinos suas evoluções e toda a alegre companhia sentia-se por instantes, perturbada. E enquanto os carrilhões do relógio ainda soavam, observava-se que os mais alegres tornavam-se pálidos e os mais idosos e serenos passavam as mãos pela fronte, como se em confuso devaneio ou meditação. Mas quando os ecos cessavam por completo, leves risadas imediatamente contagiavam a reunião; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam de seu próprio nervoso e loucura, fazendo votos sussurrados, uns aos outros para que o próximo carrilhonar do relógio não produzisse idêntica emoção. E, no entanto, passados os sessenta minutos ( que abarcam três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), ou de novo outro carrilhonar do relógio, e de novo se viam a mesma perturbação, o mesmo tremor, as mesmas atitudes meditativas a despeito, porém, de tudo isso, que esplêndida e magnífica folia!(POE, 2001:284)

Essa convivência entre gótico e carnavalesco é perfeitamente compreensível se tivermos em mente que o gótico é antes de tudo, a escrita do excesso, onde predominam o irracional e o imaginativo. Historicamente, o romance gótico surge na Inglaterra como uma reação ao Iluminismo, uma posição crítica contra a nova sociedade industrial – numa palavra, uma resposta imaginativa às tendências que visavam solapar o imprevisível e desconhecido das sensações humanas – sendo portanto, em tudo semelhante a uma leitura  carnavalizante do mundo. Podemos perceber esta atmosfera no seguinte trecho:    

Havia formas arabescas, com membros e adornos desproporcionados. Havia concepções delirantes, como criações de louco; havia muito de belo e muito de atrevido, de esquisito, algo de terrível e pouco do que poderia causar aversão. Na realidade, uma multidão de sonhos deslizava para lá e para cá nas sete salas. E estes sonhos giravam de um canto para outro, tomando a cor das salas, e fazendo a música extravagante da orquestra parecer o eco de seus passos.(POE,2001:284)

O auge do baile é a aparição do mascarado misterioso, que se revela, na verdade, como sendo a própria morte rubra. A máscara é um instrumento de metamorfose, e a morte pode ser entendida como a metamorfose mais radical da natureza, incluído aí o homem. Conforme vemos em Buraud:

Si notre étude nous a fait atteindre de justes analogies, si la masque en sa fonction la plus élevée est bien um instrument de métamporphose, et si la mort est la métamorphose essentielle, elle doit se servir du masque comme d’un moyen, d’un témoignage . Cet instrument, ce témoin, c’est le masque du mort. (BURAUD,1948:199)

A máscara da morte é máscara definitiva do homem, que não mais necessita disfarçar ou esconder seus sentimentos, como faz o pai de Cló ao afirmar: “Ora, doutor! Eu ando sempre com a máscara no rosto.”Após esta afirmativa o homem exibe um leve sorriso amargo, como a admitir a farsa que vem sendo sua vida.

No baile do Príncipe Próspero é chegada a hora em que a máscara definitiva, a fantasia final, vem substituir todas as outras. A transgressão carnavalesca se transmuta enfim em horror: é o destino que vem cumprir o seu papel e resgatar a ordem estabelecida, da qual Próspero e seus convidados tentaram fugir a todo custo. Vejamos este trecho:

Numa assembléia de fantasmas, tal como a descrevi, bem se pode supor que tal agitação não podia ter sido causada por aparência vulgar. Na verdade, a licença carnavalesca da noite quase ilimitada; mas o vulto em questão excedia o próprio Herodes em extravagância e ia além dos limites indecisos de decência exigidos pelo próprio príncipe. Há no coração dos mais levianos fibras que não podem ser tocadas sem emoção. Mesmo para os mais divertidos, para quem a vida e a morte são idênticos brinquedos há  assuntos com os quais não se pode brincar. Todos os presentes de fato, pareciam agora sentir profundamente que nos trajes e atitudes do estranho não havia finura nem conveniência. Era alto e lívido, e envolvia-se, da cabeça aos pés, em mortalhas tumular. A máscara que ocultava o rosto era tão de modo a quase representar a fisionomia de um cadáver enrijecido que a observação acurada teria dificuldade em perceber o engano. E, contudo, tudo isso poderia tolerar-se, se não mesmo aprovar-se, pelos loucos foliões, não tivesse o mascarado ido ao de figurar o tipo da "Morte Rubra". Seu traje estava salpicado de sangue, e a ampla testa, assim como toda a face, borrifada de rendas placas escarlates. (POE,2001:286)

Esta não era portanto, uma fantasia de morte. Era a própria morte, que surgiu na festa para cobrar aquilo que lhe era devido: a vida daqueles seres que a tentaram enganar. A morte entra mascarada de morte no baile de máscaras, e um a um ceifa todos os presentes.É a inversão da inversão, numa carnavalização literária realmente notável. Bakthianamente, podemos dizer que aqui, “o riso escarneceu os próprios burladores”. Aqueles que flertaram com a morte foram por ela levados. Nas palavras de Poe, “o ilimitado poder da treva, da ruína e da “morte rubra”dominou tudo”.

Há nesse desfecho do conto, a meu juízo, um forte componente de crítica social, que já se desenhava no início da narrativa. É importante notar que a ironia é uma característica bastante presente nos escritos de Poe. Ao mostrar que Próspero se julgava invulnerável à praga que assolava, Poe escolhe uma situação carnavalizada exatamente para situar o desregramento do nobre e sua corte, mas também para mostrar a nós, leitores, que aquele desregramento não seria perpétuo, seria efêmero como é um Carnaval. Não seria possível para ele, como nobre, abstrair-se completamente da realidade social que invadia o seu país, assolado pela peste mortal. Dessa forma, Próspero e sua corte tornam-se simples mortais, ceifados pela morte rubra.

Também em “Cló” a crítica social está presente. Somente no Carnaval, Cló consegue escapar dos ditames sociais e sentir-se uma mulher livre para viver plenamente (ou apenas fantasiar) a sua sexualidade.A máscara de mulher sensual é na verdade, a sua face verdadeira, que só no Carnaval pode ser desvelada. 

Assim o Carnaval apresenta-se nestes dois momentos literários. Mais do que simplesmente fantasia ou desregramento, Edgar Allan Poe e Lima Barreto utilizam-se da estética carnavalesca para revelar desejos escondidos da alma.A aproximação do gótico, estética do excesso, com o Carnaval, momento de transgressão, mostra-se literariamente harmônica e possível nessa comparação. Em ambos os contos, o que temos é o primado do imaginativo sobre o racional, característica que une o gótico e o carnavalesco.

Dessa forma, as máscaras carnavalizantes, longe de ocultar, servem para revelar os segredos escondidos atrás destes textos literários e de seus foliões-personagens. 

Referências Bibliográficas 

BAKTHIN, Mikhail. A cultura Popular na Idade Média e no Renascimento(O Contexto de François Rabelais).São Paulo-Brasília, Hucitech – Ed. UNB, 1993

BURAUD, Georges. ”Les Masques et la mort” In ______________Les Masques. Paris: Editions du Seuil, 1948.pp.199-227

LIMA BARRETO, Afonso Henriques . “Cló”. In _____________Histórias e Sonhos.Rio de Janeiro: Garnier, 1990

MEDEIROS, Rosana Borges de. Carnaval: Luta de Classes ou espetáculo? Revista Continente Documento,nº 30. Recife,fevereiro/2005

POE, Edgar Allan.Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,2001. pp.282-287 

 

 

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