CANÇÃO É EXISTÊNCIA:
 
Uma interpretação de “Sorôco, sua mãe, sua filha”, de Guimarães Rosa

 

Maria Lucia Guimarães de Faria

        

A loucura pode ser um contato direto com as fontes primordiais da vida, sem os limites impostos pela razão e as interdições opostas pelo “princípio de realidade”. Em vez de empobrecimento, a loucura pode manifestar-se como um enriquecimento, mediante o qual a vida revela um sentido antes desconhecido. Neste caso, o louco não é penalizado por uma carência, mas, ao contrário, é brindado por um “excesso de espírito”. Este excesso se traduz num transporte, num delírio, em que a alma se deixa arrebatar pelo entusiasmo, concebido em sua acepção etimológica como um “estar em Deus”.

Em notável interpretação, Óscar Lopes diz, no ensaio “Guimarães Rosa, intenções de um estilo”:

“O eixo da estória está naquele canto à toa, primeiro da moça, depois da velha, depois de Sorôco, e por último entoado em coro. Na penúltima página (…) há um paragrafo que ajuda a compreender o ‘até aonde ia aquela cantiga’. Eis o paragrafo: ‘Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo, nem lugar, mas pelo antes, pelo depois” (LOPES, 1969: 27/8).

Para o estudioso, um canto profundamente sentido ultrapassa as suas circunstâncias. Cada emoção presente traz o desafogo de incontáveis emoções represas desde a infância. Graças a “uma metáfora total de radical transfiguração poética, o leitor assiste a algo que transcende esse mundo, algo cuja alma profunda está no cantar à toa das loucas, Sorôco e vizinhos” (LOPES, 1969: 31). Segundo o crítico, a intenção de Rosa é bem clara quando descreve Sorôco a “sofrer o assim das coisas” e logo a seguir caracteriza o seu sentimento como um “oco sem beiras”:

“Toda a estória tende a entalar-nos com o “assim das coisas” para melhor nos fazer sentir o nosso “oco sem beiras”, o oco donde nasce a única plenitude humana possível: uma irreprimível afirmação, às vezes ainda não se sabe mesmo de quê, mas feita do assim das coisas, feita no assim das coisas e feita contra o assim das coisas” (LOPES, 1969: 39).  

Concluindo o seu estudo, Óscar Lopes destaca que a idéia mais insistente nas obras de Guimarães Rosa é a de que a vida vale sobretudo como oportunidade de nos fazermos a nós próprios. Se há um Éden, cabe a nós mesmos edificá-lo, neste reino terrestre e sensível onde nos coube nascer. O Paraíso não está perdido numa idealidade pré-natal, nem postulado numa beatitude póstuma, mas “trazemo-lo nós potencialmente conosco” (LOPES, 1969: 35). A vida, afinal, poderia ser outra. Quando, num momento de revolta, o compreendemos, “a gente já está, como Rosa em tudo o que escreveu, a fazer a outra vida, ‘a gente vai até aonde que vai’ um canto que é sempre de esperança, mesmo quando, ou talvez sobretudo quando, o julgamos todo feito de desespero” (LOPES, 1969: 40).

A canção, incorporada pela filha, compartilhada pela avó, assimilada por Sorôco e estendida a todos os que se disponibilizaram animicamente a segui-la, é fruto de uma intuição profunda da durée, tal como a concebe Bergson. O universo é perpassado pela criação contínua de imprevisível novidade. A realização traz consigo um inesperado nada que muda tudo (BERGSON, 1946: 99). O ser humano dura porque incessantemente elabora o novo, e não há elaboração sem busca, nem busca sem um certo tatear nas trevas (BERGSON, 1946: 101). Poeticamente apreendido, o tempo é o sentimento de sermos criadores de nossas intenções, de nossas decisões, de nossos atos, e, portanto, de nossos hábitos, de nosso caráter, de nós mesmos. Artistas de nossa própria vida, trabalhamos continuamente a modelar, com a matéria que nos é fornecida pelo passado e pelo presente, pela hereditariedade e pelas circunstâncias, uma figura única, nova, original, imprevisível, como a forma dada pelo escultor ao barro (BERGSON, 1946: 102). A intuição da duração como fenômeno da interioridade mais funda nos coloca em sintonia com a movente originalidade das coisas. Da grande obra de criação da vida que se desenrola sem cessar no universo nós nos sentimos participar, criadores de nós mesmos. (BERGSON, 1946: 116). A duração é como uma melodia infinitamente deveniente, na qual não há estados inertes nem coisas mortas, mas a pura mobilidade da qual é feita a estabilidade da vida. Tão logo nos habituamos a ver a vida sub specie durationis, tudo adquire profundidade. A continuidade e a variabilidade transparecem. O rígido se distende, o adormecido desperta, o morto ressuscita e o tempo, deixando de ser o inimigo contra o qual nos ressentimos, revela-se a matéria plástica da criação (BERGSON, 1946: 140/1/2). A percepção concreta da duração permite discernir, para além da aparência estática da realidade, o intenso dinamismo que a faz palpitar. Para quem está afinado com o irreprimível impulso vital, a realidade se mostra como puro movimento e metamorfose contínua. Um grande elã impele os seres e as coisas. Por ele, nós nos sentimos solevados, compelidos, arrebatados. Vivemos mais à larga, e este acréscimo de vida traz consigo a convicção de que podemos nos afirmar e criar em quaisquer condições e contra todas as circunstâncias (BERGSON, 1946: 175/6). A durée bergsoniana é o pano de fundo que ajuda a compreender e permite acompanhar a canção, que constitui a alma da estória de Sorôco.

A música transcende limites e suscita uma harmonização com a melodia que rege o universo. Poderoso agente integrador no movimento incessante que produz a continuidade cósmica, ela rapta, arrasta e conduz quem se dispõe a ouvir e a seguir algo que ultrapassa o senso comum e contraria a lógica das ações. O cantar que importa é aquele que brota de dentro e assoma como uma grande vaga, respondendo a um chamado que visa inserir o homem em alguma coisa muito maior do que ele. Quem canta está ouvindo:

“A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom, nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração” (ROSA, 1978a: 14).

“Pegar a cantar” é simultaneamente ativo e passivo. É ativo, porque exprime um ato espontâneo e voluntário de um sujeito que começa a ser, e é passivo porque esse ato reflete a inserção em algo que nem se compreende bem, mas que atua como um apelo imperioso ao qual o sujeito se rende e se entrega. Explica Manuel Antonio de Castro:

“O apelo vem de uma força que radica no que há de mais profundo e interior a nós, e que pede uma abertura: a Escuta. Ou seja, há uma disposição constitutiva do homem para ser, mas temos que realizar essa disponibilidade. Certamente cada um de nós deve (...) escutar a palavra cantada que encanta, brotando de nosso âmago. Em algum momento, sempre diferente para cada um de nós, haverá o apelo para que nos disponhamos para a Escuta da fala da palavra cantada” (CASTRO, 2003: 78).

O canto é a comunhão entre o homem e o mundo. Pegar a cantar é entrar em consonância orquestral com a canção que a si mesma se canta e se entoa para além do homem, transcendendo o espaço e o tempo habituais e criando uma nova dimensão espacio-temporal, na qual tudo é inaugural. “Quando a música se apresenta, ela exige que quem a está ouvindo seja todo ouvidos”, afirma o músico Antonio Jardim (JARDIM, 2003: 4). A moça “pega a cantar” porque “é pega” por um cantar que a encanta e arrebata, dando-a à luz. Quando ela levanta os braços e põe os olhos no alto, ela está exprimindo o caráter votivo desse canto de louvor que celebra a vida como força insofreável capaz de superar qualquer obstáculo. A sua postura, a sua atitude, o seu aspecto, tudo conspira para converter um momento de luto numa ocasião de festa, e driblar a passividade compungida de todos com a mais inesperada afirmação. A cantiga não vigora certa, porque não há mediação do intelecto: o canto é puro impulso criativo, extático, religioso, em estado bruto. A falta de nexo das palavras atesta a sua primordialidade e a proximidade com as forças elementares que engendram a vida. É do caos que sopra o alento, que insufla o canto, que acorçoa a moça. Do abismo se eleva a música que conduz aos cimos. “O nenhum” é o berço do ser. “O silêncio dá a maior possibilidade de música” (ROSA, 1979: 12).

A primeira a se aperceber da grandeza daquele canto é a outra louca, a avó. Entre as duas, a sintonia é imediata. Aproxima-as, não apenas o parentesco de sangue e a loucura que compartilham, mas o fato de representarem os dois extremos da vida, reunidos e aparentados por um cantar que antecede a juventude e excede a velhice: “Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam” (p. 14). O canto é um sopro de origem, da origem que se situa muito antes do tempo e muito aquém do espaço, e que, por não ser comprometida com o tempo nem encarcerada no espaço, pode sempre continuar originando. Com o poeta Manuel de Barros, a moça poderia dizer: “Minha voz tem um vício de fontes”. A canção é o pressentimento da propulsão transcendente da alma:

“A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar” (p. 15).

 

Ao intuir a magnitude daquele canto, que religa a vida individual a realidades suprapessoais antiqüíssimas, incluindo-a na própria amplitude do cosmos, a velha também “pega a cantar”, imbuindo-se do arrebatamento de ser. Quando cantam juntas, o canto adquire vigor e se impõe como um “acorçôo”, uma “chirimia, que avocava” (p. 15). Acorçoar significa trazer ao coração, em outroras épocas concebido como o centro vital, matriz do pensamento e da emoção, sede da criação. A palavra tão musical “chirimia”, de antigos sopros, cujo significado é “banda de música composta de instrumentos de sopro” (FREIRE, 1954), talvez tome rosiano alento a partir do vocábulo inglês chirm, que exprime o som de um chilreio, de um gorjeio, de um cantarolar melodioso de maneira trêmula e vibrante, como o trinado modulado dos pássaros (WEBSTER, 1983, verbetes chirm, twitter, warble e trill). A canção “avocava” por ser um canto da transcendência, provocando e convocando como uma vocação para existir e um mandado para superarem-se os limites do humano.

O próximo a escutar o chamado dispensado pelo canto é Sorôco. A característica mais aguda deste homem singular é a solidão, impressa na primeira sílaba de seu nome. O seu absoluto isolamento transparece de forma pungente, quando, após o canto conjunto da mãe e da filha, ele aparece solitário num parágrafo (p. 15), que nada comunica além de seu nome. Situado entre as duas, próximo de ambas pelo afeto, mas de ambas apartado pela loucura, ele habita o “oco sem beiras” (p. 16), que o constitui intrinsecamente como divulga o seu nome. Hóspede do nada, ele se porta, contudo, “sem queixa, exemploso” (p. 16), como se viver fosse carregar um peso “decretado” que nem se pudesse compreender. A partida das duas é a orfandade. Sem laços, sem lar, sem ser, “desacontecido”, ele retornava para lugar algum: “Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta” (p. 16). Mas, inesperadamente, ele “acontece”. Quando o nada o engolfa a tal ponto que ele ia “parar de ser”, a canção ressoa em sua intimidade, outorgando-lhe um “excesso de espírito”, que transforma o nada em tudo:

“Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando” (p. 16)

Com a partida da mãe e da filha, Sorôco se fizera surdo: “Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava” (p. 16). Explica o músico Antonio Jardim que “a surdez é ao mesmo tempo componente da música e condição de possibilidade para que ela se apresente. Você está surdo para o resto e você abre os seus canais para a música” (JARDIM, 2003: 4). Num “rompido”, Sorôco escuta o que viera surdamente ouvindo. O rompido é fruto de uma ruptura com o siso, da irrupção de algo represado que jorra como uma fonte e de uma erupção semelhante a de um vulcão inativo que subitamente entra em atividade. A aquisição de um rumo pode provir de um “desarrumo”, pois entre o destino e o desatino medeia apenas um singelo “a”. Desautorizando o velho e desgastado tino, o desatino abre o horizonte para um tino diverso diferente. Somente numa ruptura com o comum, lugar de todos e de nenhum, irrompe a intuição promissora que traz em seu bojo o tino do autêntico destino.

“Sorôco, sua mãe, sua filha” é a estória de uma continuidade que prossegue. Desde o título, “em procissão”, por assim dizer, Sorôco segue a mãe, que segue a filha, que segue uma canção, que de antiqüíssmos outroras se compõe e se persegue, e é seguido por a toda multidão que com ele se solidariza e o acompanha “até aonde que ia aquela cantiga” (p 16), que não tem fim. Em nenhuma outra passagem essa continuidade é tão concretamente sensível quanto em “tanto tinham cantado. Cantava continuando”. Além de literalmente expressa na palavra “continuando”, a continuidade ressalta nas consonâncias nasais “tanto tinham cantado, cantava continuando”, na aliteração do “t” e na locução verbal composta por duas formas durativas, o pretérito imperfeito (cantava) e o particípio presente (continuando). A opressão do nome Sorôco, que encurrala o personagem na penúria sombria dos três “o”, afunilando-se no centro no som cavo do circunflexo, encontra libertação nessa aliteração do “t” de um canto que “tatala como uma bandeira branca” (ROSA, 1979: 84), semelhante ao ruído do ar vibrado pelo bater de asas, confirmando o impulso de transcendência propiciado pelo cantar. A ondulação reiterada das nasais, por sua vez, intensifica o sentido do “tanto”, de um canto demasiado, e comunica a sensação de uma vaga avassaladora que assoma muito de dentro, de uma longínqua intimidade esconsa que se abre, se oferece, se esbanja e se prolonga em continuação infinita, como o incessar das ondas do mar. O efeito se repete na expressão “canta que cantando” (p. 16), que exprime a adesão existencial da pequena multidão que se deixa entusiasmar e conduzir pelo elã vital, que canta por intermédio da canção, e a todos arrebata em sua passagem: “ninguém deixasse de cantar” (p. 16). O cantar que a todos soleva é a duração indestrutível da vida, que se continua entusiasticamente para além de quaisquer circunstâncias. O próprio narrador participa desse arrebatamento. Na estória de Sorôco, o narrador se confunde com o “ajuntamento” que se agrupa na estação, e assume a perspectiva e os sentimentos que todos compartilham, narrando coletivamente. Não se trata, contudo, de uma 1ª pessoa que se pluraliza em “nós”, mas de uma “nenhuma pessoa” – “a gente” – que anonimamente representa todos de uma vez, já que se narra, precisamente, o inexplicável congraçamento proporcionado por uma emoção “que não se podia prevenir”, mas que a todos envolve e contagia. Inserido nesse mágico momento, empolgado, embora, pelo “canto sem razão”, o narrador é, contudo, o único capaz de dar voz àquele turbilhão e exprimi-lo em palavras, tendo, como no verso de Fernando Pessoa, “a alegre inconsciência e a consciência disso” (PESSOA, 1974: 144). Emotivamente envolvido, mas racionalmente atento, ele é o único que atina com o desatino e percebe o novo tino que se descortina.

O canto edifica a morada do ser. Através do canto que brota como flor pelágica, a existência assume a tarefa órfica da suscitação do real e da criação do seu próprio sentido. O abandono, a carência e a errância se corrigem mediante o cantar que harmoniza o homem com as forças criativas da vida. Quando o homem se encontra em sintonia com o cosmos, ele deixa de sentir-se sem teto, pois percebe que ter uma casa é habitar a própria duração: “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade” (p. 16). Num dos mais belos poemas já escritos, Rilke revela o sentido mais profundo desse canto que emana da solidão do ser que converge em si mesmo como único caminho para se efetuar a comunhão com o divino transcendente: “Canção é existência” (Gesang ist Dasein) (RILKE, 1943: 146). Quem integralmente se concentra se expande. Ex-istir é sair de si no êxtase do encontro com o sagrado. Existir é matéria de excesso, o “excesso de espírito” que advém da alegria da edificação de um si próprio, que festeja a abertura de um canal direto de comunicação com o divino. Cantar, afinal, em sua motivação mais essencial, é ouvir a voz silente de Deus e plasmar a si mesmo no rastro de um canto sem fim:

“In Wahrheit singen, ist ein andrer Hauch.
Ein Hauch um nichts. Ein Wehn im Gott. Ein wind” (RILKE, 1943: 146).
 

“Na verdade, cantar é um sopro de foz em fora.
Um sopro em torno de nada. Um voltejo em Deus. Um vento” (t. de Ronaldes de Melo e Souza).


O cantar que garante a continuidade de um alento que a todos prodigaliza um acréscimo de ser é um sopro em torno de nada. Do próprio “oco sem beiras” emerge a força que afirma e constrói. No nada, mediante a canção, plasma-se o mundo, em que o humano e o divino coexistem e dialogam. O cantar é metamorfose contínua, e, por isso, a estória, que se inicia com “aquele carro”, índice de prisão – “Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos” (p. 13) – signo da inexorabilidade de um destino lutuoso, termina com “aquela cantiga”, símbolo da libertação, da superação de entraves e limites, promessa do acorçôo de um destino no desatino de uma canção excessiva, cujo chamamento avocava e convocava a existir.



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