A LINGUAGEM NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA: O VIRTUAL E A ARTE

 

Carolina Lusitano

 

 

     Dizer que estamos na era da computação, dos grandes avanços tecnológicos, tornou-se comum nos dias de hoje. Porém não há como discorrer sobre o panorama da sociedade atual sem falar dessa questão que se faz tão presente no cotidiano do homem pós-moderno.

     Cronologicamente, a pós-modernidade tem início na década de 50, em meio ao pós-guerra. Data justamente dessa década o surgimento e desenvolvimento dos computadores. Mas a pós-modernidade eclode não só por essa transformação. Surge também uma nova interpretação e realização das grandes questões da humanidade: a natureza, a linguagem, a memória, o tempo e a história.

     Com o já citado advento da informática e, ainda, dos recursos da internet, um novo panorama salta aos nossos olhos. É o início de uma nova realidade. É a chamada realidade virtual. Para a entendermos, será necessário uma reflexão acerca do que é virtual. Antes disso, porém, devemos nos questionar ainda: o que é real? Só assim conseguiremos saber em que medida algo é ou pode ser virtual.

      Num primeiro momento, tendemos a relacionar a realidade com algo evidente, que não precisa ser questionado. Real seria tudo aquilo que é verdadeiro. E tal conceito já nos remete aos ditames da ciência: trata-se daquilo que é passível de certeza, dada pela comprovação científica. Contudo, se observarmos o carinho de uma mãe no momento em que esta se doa à amamentação de seu filho, temos algo real e, nem por isso, científico. Carinho é algo que não se mede objetivamente. Devemos levar em conta também que aquilo que é verdadeiro para uma pessoa pode não o ser para outra. O que é verdadeiro para a ciência não o é para a teologia, porém ambas falam do real.

      Usualmente, temos ainda outra concepção de real. Um objeto vige no pensamento em sua forma. No momento em que este, sob as juzes da razão é nomeado, passa a existir (foi lançado para fora). Ao conjunto dessas “existência” é que podemos denominar como “real”.

Ou seja, este seria o produto do exercício da linguagem enquanto conhecimento racional. Temos os objetos como representações. E o homem encontra-se estritamente ligado a esse real racional. Mas o que ele não percebe é que  tal ligação impossibilita a abertura do homem em direção à própria complexidade do real.

      O uso da escrita na modernidade foi, e ainda hoje é, evidente. Contudo, nem sempre foi assim. A realidade experienciada pela primeira cultura grega, por exemplo, era a do mito e do rito. Manifestações estas essencialmente orais. Com o desencadeamento dop uso da escrita, muitos hábitos foram sendo modificados. Poderíamos cair no erro, porém, de pensar que foi a partir dessa inovação que se iniciou o que vimos buscando: o virtual. Cabe ressaltar então que a questão essencial que se coloca não é uma oposição escrita x oral. A grande questão do homem diz respeito àquilo que muda e permanece. Diz respeito à identidade e à diferença. Desse modo é que temos os dois sentidos para a palavra virtual.

      Primeiro, temos virtual como um mundo de representações. Predomina um real ideal que busca nutrir-se somente daquilo que permanece. Nesse virtual, o real aparece representado através dos diversos meios como um conceito. No segundo sentido, o real aparecerá como um real concreto porque caminha não pelo conceito, mas por aquilo que muda e permanece. Respeita-se não só a identidade mas também as diferenças. Neste virtual, o real apresenta-se melhor em sua ambigüidade e complexidade. Esse virtual é o próprio real enquanto se desvela e vela. 

      O problema da linguagem hoje está em sua abstração, tal qual o primeiro conceito de virtual. Ela é composta por códigos que são sempre abstratos. A conseqüência desse uso é a perda da ambigüidade da linguagem. Sem essa ambigüidade, a linguagem torna-se instrumental.

      A vigência dessa instrumentalidade tem sido responsável por todo o panorama que se apresenta diante de nós hoje como realidade de representações.

      Um indivíduo desprovido de contatos com a internet, a TV e os jornais, em suma, com os meios de transmissão de informações, é considerado pela sociedade como um “alienado”. Logo, é excluído. Se não teve acesso à escola e, por isso, não possui aqueles conhecimentos aprendidos no ensino médio e fundamental das escolas do Brasil, as chances de adquirir um bom emprego, de viver uma vida com condições dignas de um ser humano, são mínimas. É discriminado pelo sistema que se torna cada vez mais especializado e seletivo. E, ainda, quem não possui nem informações nem conhecimentos é tido como alguém sem sabedoria, sem cultura. Nesse âmbito, o homem é mais ou menos considerado de acordo com seu “nível cultural”, ou seja, do quanto ele foi capaz de acumular de tudo aquilo que lhe foi transmitido como informação, como conhecimento. Não nego que seja importante ler jornal. De forma alguma. Porém é preciso ter em mente que ter conhecimentos, ter informações, não é tudo.

      Se repararmos, a linguagem instrumental possui sempre uma finalidade. Há o desejo de persuadir em algo objetivo e ideológico. É a busca de convencer que o Omo é o melhor sabão, que tal político é bom, humilde e honesto, que com uma saia de R$320,00 da Cantão você estará na moda, ficará bela e terá a felicidade. O ter é o mais importante. Ora, se repararmos nos comerciais de TV, não são mais felizes os que têm uma coca-cola para tomar, um sorvete da Kibon para saborear, um carro do ano para passear e um cartão de crédito para comprar tudo isso? Mas, em meio a essa sociedade de consumo, será que há espaço para o simples ser e não apenas para o ter?

      Com esse uso alienante da linguagem instrumental, o homem passa, como vítima, a tomar o outro como medida para si. Aqui temos um grande perigo. Com esse proceder, afastamo-nos de ser o que somos de fato. Pensamos estar agindo livremente, mas na verdade optamos por nos guiar e viver segundo um apelo da linguagem instrumental. Não há liberdade nisso. Há opressão. Tornamo-nos escravos do consumismo, da aparente satisfação, das opiniões tão divididas em inúmeras ideologias que nos dão idéias prontas, onde não há dúvida sobre o real, sobre a linguagem.

      A linguagem instrumental não faz do ser sua morada. Ela se dissocia do ser porque é abstrata. A linguagem própria do ser é a linguagem poética. É ela que habita no ser. É ela que possui a força de mostrar o sentido, o caminho pessoal, porque ela faz do leitor não um simples consumidor, mas um intérprete. Ela é virtual no melhor sentido que essa palavra pode assumir, onde são respeitadas as identidades e as diferenças de cada ente. Esse sentido e caminho pessoal oferecido pela linguagem poética são encontrados em determinados feitos humanos que não se esgotam. Eles são motivos de estudo, que geram teses.  São debatidos em sala de aula, gerando controvérsias. Conduzem a cada um por um caminho diferente. Não falo aqui de algo distante de nós. Falo do vigor de todas as obras de arte, poiesis. Falo de Dom Quixote e suas andanças rumo ao “caminho real”. E essas obras não são registro de um passado que passou, mas de um passado que demonstra toda a memória de um povo, o qual se manifesta no presente criando as possibilidades para o futuro.    

      Um outro exemplo ainda, cuja essência constitui-se da linguagem poética, é o poema do nosso conhecido Manoel de Barros:

 

A maior riqueza do homem é a sua incompletude

Nesse ponto sou abastado.

Palavras que me acertam como sou – eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva, etc, etc.

Perdoai.

Mas eu preciso ser Outros

Eu penso renovar o mundo usando borboletas.

 

Manoel de Barros

 

      Esse poema enriquece aquilo que foi dito até o momento neste trabalho. O poeta começa dizendo-nos “A maior riqueza do homem é sua incompletude.” O homem possui em si um vazio impossível de ser preenchido pela linguagem cotidiana. Esta compõe-se de palavras que simplesmente nos aceitam como somos. Não é suficiente, diz-nos o poema, ser alguém que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6h da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva...

                     “Perdoai.

            Mas eu preciso ser Outros.”

      E outros, aqui, é representado com letra maiúscula manifestando a necessidade da diferença em sua identidade. É a busca de ser Outro a partir do Mesmo.

      Mas, se a linguagem cotidiana é gasta e insatisfatória, se o agir humano, apesar de importante, não é capaz de preencher o vazio de que pode o Ser enquanto ente pode se encontrar?

      “Eu penso renovar o homem usando borboletas”. Com este verso o poema nos mostra o caminho possível de renovação do ser humano: trata-se da arte, da linguagem poética, metaforizada na belíssima imagem das “borboletas”. É a arte que é o entre-lugar, refúgio dócil do ser. O agir que a perfaz  não é como aquele agir diário. É o agir em sua essência ou poesis, como diziam os gregos.

      Enfim, a linguagem poética não vive longe de nós. Nós é que a afastamos na medida em que não a escutamos. Alinguagem poética vige em nós, mas é necessário que a deixemos atuar, que a auscultemos para que haja uma correspondência ao seu apelo na leitura das obras de arte. Através desse exercício de escuta e ausculta da linguagem poética, certamente não chegaremos a posições ideológicas ou opiniões. Mas chegaremos a experienciar a vida em seu processo constante de busca por ultrapassar nossos limites. Chegaremos, então, a ser o que somos.

  

 

                                                        Carolina Lusitano Mósso dos Santos.

     

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