Poéticas
de Bandeira e Drummond*
Camillo
Cavalcanti (UFRJ/CAPES)
*
Este texto é um recorte da minha primeira monografia final de curso na UFRJ.
De todos os poetas do cânone, Manuel Bandeira é um dos que mais viveram o conflito entre as formas tradicionais e modernas. Mas não se trata de uma rejeição anti-clássica de fato, como às vezes se entende, pois o poeta não se libertou das questões do lirismo tradicional — a não ser o formalismo —, norteadoras de seu fazer poético quando de sua estréia na poesia, com A Cinza das Horas (1917). Neste livro, a poesia de Manuel Bandeira celebra um pacto com a antiga poesia metrificada e rimada; e é neste livro que o EU-lírico recebe seu primeiro estigma: o aspecto doentio e melancólico. O livro reza uma metapoética ligada às convenções líricas. Com uma sobriedade ímpar, Nestor Vítor já prenuncia grande parte dos aspectos assinalados pela crítica mais recente:
O
senhor [Manuel Bandeira] não procura os efeitos fáceis, nem pelo brilho
espetaculoso, nem pelo desordenado na expressão das paixões[...], com modo
de sentir que lhe seja próprio e em que haja verdadeira estesia. Sinal de que
é de uma intelectualidade aristocrática e discreta. [...]
Daí
que os versos d'A Cinza das Horas
oscilam entre a dolência enfermiça, desalentada, e uma ânsia de vida
comovedora, mas ao mesmo tempo de bom augúrio. Dir-se-ia que se estão lendo
as páginas de um convalescente em cujo restabelecimento vimos a ter mais fé
do que ele próprio revela ter por enquanto. (VÍTOR, 1969: 83-84, passim.)
Entretanto, esta face diz respeito mais à parte lírica da obra de Manuel Bandeira, em que se vê o EU-lírico desalentado pela melancolia, pois, na metapoesia, de outro modo, ele se mostrou um revoltado. Acreditava querer se desvencilhar da antiga poesia; por isso, alardeava sua adesão a novos credos, a novas formas de conceber a poesia, antes mesmo da Semana de Arte Moderna, com Carnaval (1919), cujo poema “Os Sapos” lá foi recitado. Duas estrofes ganham maior destaque:
O
sapo-tanoeiro,
Parnasiano
aguado,
Diz:
¾ "Meu cancioneiro
É
bem martelado.
[...]
Vai
por cinqüenta anos
Que
lhes dei a norma:
Reduzi
sem danos
A
formas a forma.
(BANDEIRA,
1973: p. 51)
Filiava-se, nessa época, ao movimento modernista. A participação de um poeta da envergadura de Bandeira foi essencial para a afirmação do Modernismo, e o poema Os Sapos, pelo que trazia de protesto e rejeição à concepção de poesia parnasiana, inflamava a sátira contra a poesia "caduca" e "velha", à beira do colapso nervoso que foi a rebeldia desmedida dos modernistas. Nesta fase, aparece um EU-lírico revoltado ¾ momento este que durou mais de vinte anos, de Carnaval (1919) a Lira dos Cinqüent'anos (1940) ¾ seguindo as mesmas trincheiras poéticas ao lado de Mário de Andrade. Mas seu desejo talvez estivesse sendo alimentado pela suscetibilidade daquele clima fervoroso e vanguardista de 22, porque, bem lá no fundo, Bandeira não entregou o cinzel do escultor, nem o monóculo do ourives para lapidação do verso. É o que conclui Sérgio Milliet, por exemplo:
E[m]
"Lira dos cinqüenta anos" [sic., e não Cinqüent'anos] Manuel
Bandeira deu-nos o espetáculo de uma inspiração livre, tão livre que
ousava voltar ao soneto e ao verso metrificado e rimado, sem preconceitos
modernistas mas tampouco sem abandono de suas conquistas anteriores. (MILLIET,
1952: 38)
Neste mesmo caminho, posiciona-se Wilson Martins:
Mas
contemporâneo das grandes e ruidosas revoluções de rua na República das
Letras, vindo da aristocracia do Simbolismo para as lutas de gladiadores e
para os entremezes cômicos do Modernismo, convivendo com o mais desorientado
hermetismo e com as mais desproporcionadas pretensões de reforma da linguagem
poética, inaugurando, em nosso país, o verso livre, mas conservando sempre,
na mais luzida forma, todos os seus virtuosismos parnasianos [...] ¾ ele se contentou com ser o que era,
evoluindo lentamente ao sabor das estações[.] (MARTINS, 1973: 211)
Manuel Bandeira era, como bem ressaltou Mário de Andrade, o poeta da ternura. Sua poesia nos cativa muito pela piedade que julgamos o EU-lírico nos solicitar, pela simplicidade e humildade, destacada por Assis Barbosa como "objetiva", "científica" e "não cristã", estado este propulsor da sujeição ao acaso (cf. MARTINS, opus cit., p. 213). Sob este aspecto, prefiro a visão de Milliet, que, contrariamente a Barbosa, o vê tomado pelo misticismo cristão:
Sente-se
no autor uma penetração muito segura e, principalmente, uma compreensão
fraternal do mundo, não isenta de melancólica ironia, mas já sem revolta e
em verdade de pura simpatia. De comunhão mesmo. [...] Talvez fosse mais certo
dizer misticismo. E misticismo cristão. (opus cit. 39-40)
Por isso, é justo dizer, como já se disse nesse estudo, que a poesia de Bandeira nos convida ora à comoção e à piedade (na parte lírica) ora o protesto e a revolta (na parte metapoética) desse EU-lírico (e não Bandeira) às vezes convalescente, às vezes revoltado. Trata-se de uma poesia que, como se vê, oscila por esses dois ânimos. Note-se que a influência de Mário de Andrade na poesia de Bandeira é facilmente perceptível, pois será em 1940 — com um Mário já menos convulso e mais calmo, menos rebelde e mais conciliador — que Bandeira transporá essa fase militante em prol do "lirismo-libertação", para reviver um pouco aquela melancolia de A Cinza das Horas. Mas enquanto não passam seus cinqüenta anos, Bandeira permanece, mesmo em 1930, politicamente envolvido com o programa desconstrutor do Modernismo. É o que se vê em “Poética”:
Estou
farto do lirismo comedido
Do
lirismo bem comportado
Do
lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
[manifestações
de apreço ao sr. diretor.
Estou
farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo
de um vocábulo
Abaixo
os puristas
Todas
as palavras sobretudo os barbarismo universais
Todas
as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos
os ritmos sobretudo os inumeráveis
[...]
Quero
antes o lirismo dos loucos
O
lirismo dos bêbados
O
lirismo difícil e pungente dos bêbados
O
lirismo dos clowns de Shakespeare
¾ Não quero mais saber do lirismo que não
é libertação.
(BANDEIRA,
1973: 108)
A figura do revoltado, que se apresenta no discurso metapoético, se confunde com a figura do gauche, i.e., dos loucos, bêbados e clowns. Com a morte de Mário de Andrade, em 1945, Bandeira recuperou mais daquela personalidade inconfundível, de que nos falou Martins, quando lançou Belo Belo e Mafuá do Malungo (1948), Opus 10 (1952) e Estrela da Tarde (1963). Findo o ciclo dos reclames libertinos, Bandeira volta a mostrar um EU-lírico melancólico, porém não mais comedido e sim, intenso e desembaraçado. Não é estranho, então, que o poeta lance sua “Nova Poética”:
Vou
lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta
sórdido:
Aquele
em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai
um sujeito,
Sai
um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e
[na
primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
[ou
a calça de uma nódoa de lama:
É
a vida.
O
poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer
o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei
que a poesia é também orvalho.
Mas
este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento
[e
as amadas que envelhecem sem maldade.
(opus
cit., p. 201)
Há, de fato, muito de Libertinagem aqui, principalmente quanto a essa marca suja da vida, a esse poeta sórdido, poeta dos ultrajes e dos tabus, que se confunde com os loucos, os bêbados, os clowns de “Poética”. Nesse sentido, ambos retomam o universo melancólico de A Cinza das Horas: em “Poética”, há uma tentativa de recusa pela alusão ao caráter raquítico e sifilítico, mas que permanece na empatia com os loucos, bêbados e clowns; em “Nova Poética”, dá-se ênfase a essa melancolia, pela figura do poeta sórdido. Por outro lado, nota-se a mesma rejeição ao "lirismo bem comportado" do seu primeiro livro, que agora é o das meninas, das virgens e das velhas castas. Nesse momento, o EU-lírico rompe com "a castidade" de seu livro de estréia: ¾ somente neste aspecto metapoético, que se frise bem, porque o EU-lírico, como se vê, não se livrou da melancolia.
Por fim, remiu sua revolta para não defender causa alguma, nem modernista, nem tradicionalista, que não fosse a sua própria causa poética. Nem mesmo a libertação era mais de seu interesse. Essa sua escolha o fará "uomo qualunque" do Modernismo, i.e., "o poeta que se contentou em escrever a sua obra[...], mas resguardando com visível obstinação a sua personalidade inconfundível." (MARTINS, opus cit., p. 212).
Posto que o EU-lírico não deixou de ser aquele "enfermo", que só não havia sido mencionado para não incentivar a perspectiva biográfica que acaba por prejudicar a análise da obra, esse termo "enfermo" se direciona, neste estudo, não a um autor tuberculoso, mas a um EU-lírico melancólico (que já apareceu doente antes do autor adoecer; cf. VÍTOR, supra, p. 22-23), de uma abnegação neurótica bem acentuada e de um amor incondicional por tudo, transitando pelo parnasiano e pelo modernista, méritos que dão à obra de Manuel Bandeira o merecido destaque no cânone literário brasileiro.
As duas principais exposições da metapoesia de Carlos Drummond de Andrade encontram-se, surpreendentemente, em Rosa do Povo (1945), justo no livro que, ao lado de José (1942), logra maior cunho social. A primeira, “Consideração do Poema”, abre o livro; “Procura da Poesia” aparece logo em seguida. São composições que trazem características marcantes do EU-lírico. No primeiro poema em questão, há, por exemplo, a possessividade (o ciúme), a preocupação com o "entorno", a liberdade formal em benefício de si próprio, e não da causa modernista, etc. Observe as duas primeiras estrofes do poema:
Não
rimarei a palavra sono
com
a incorrespondente palavra outono.
Rimarei
com a palavra carne
ou
qualquer outra, que tôdas me convêm.
As
palavras não nascem amarradas,
elas
saltam, se beijam, se dissolvem,
no
céu livre por vêzes um desenho,
são
puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Uma
pedra no meio do caminho
ou
apenas um rastro, não importa.
Êstes
poetas são meus. De todo o orgulho,
de
tôda a precisão se incorporaram
ao
fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua
mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que
Neruda me dê sua gravata
chamejante.
Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São
todos meus irmãos, não são jornais
nem
deslizar de lancha entre camélias:
é
tôda a minha vida que joguei.
(ANDRADE,
1967: 137)
Confirmando o credo modernista, o EU-lírico defende uma poesia livre da rima, como se vê logo nos quatro primeiros versos. Ele entende também que as palavras denotam um sentido muito preciso ¾ que é uma característica imanente delas; por isso, são indevassáveis. Indevassáveis também por não poderem ser manipuladas, desfeitas: ninguém pode mudar o que uma palavra é, o que ela significa em determinado texto. Na segunda estrofe, o EU-lírico relembra “No meio do caminho”, poema altamente valorado de seu livro de estréia, Alguma Poesia (1930). Logo em seguida, informa sua leitura de Vinícius de Morais e Murilo Mendes, dentre os brasileiros, além de Pablo Neruda, Guillaume Apollinaire e Maiakovski (do qual o EU-lírico se despede). Num imenso devaneio, o EU-lírico acredita que esses autores são seus irmãos, como se eles não estivessem só no papel (no poema, "jornais"), nem em expressões imateriais ou percepções intuídas tais qual "o deslizar de lancha entre camélias". Diz ainda que jogou a vida, i.e., manipulou: não confundir com "jogar fora", que precisa dessa preposição para ter o sentido de renegar. Ainda que discordante da constatação de um EU-lírico criança nesse poema, posso aproveitar outras conclusões de Silviano Santiago, como estas:
Tanto
a ilha-da-leitura, onde se refugia a criança, quanto a ilha-da-escritura, que
o poeta habita e oferece, são pois marcadas como o lugar por excelência do discurso literário drummoniano, ou seja,
onde pode o indivíduo exercer o poder total sobre o conhecimento de si mesmo,
explorando seus próprios caminhos longe dos outros [sic], e, no caso da infância,
explorando a si ao ler o texto alheio. [...] Mais tarde, no poema de abertura
de A Rosa do Povo, confessará em
complemento. (SANTIAGO, 1976: 49)
O universo do EU-lírico é irrestrito, sem fronteiras. Numa atitude romântica de expandir seu íntimo, encara todo o "entorno" como sendo dele mesmo, de seu interior, como se vê, logo em seguida, nesta estrofe, cujo desfecho nos sensibiliza:
Esses
poemas são meus. É minha terra
e
é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao
meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em
qualquer estalagem, se ainda as há.
¾ Há mortos? há mercados? há doenças?
É
tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por
qu[e] falsa mesquinhez me rasgaria?
Que
se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O
beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da
ausência de comércio,
boiando
em tempos sujos.
Note-se que, a todo instante, o EU-lírico exorta sobre a poesia, i.e., dá lições sobre como fazer um poema, ensina ao leitor a arte do verso, porque o EU-lírico, como bem disse Santiago, vive numa ilha cambiante (leitura e escritura) e a partir do autoconhecimento que adquire, sente-se apto a transmitir seus ensinamentos, suas experiências para o leitor. Esse caráter pedagógico se evidencia mais nesta estrofe:
Poeta
do finito e da matéria,
cantor
sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
bôca
tão seca, mas ardor tão casto.
Dar
tudo pela presença dos longínquos,
sentir
que há ecos, poucos, mas cristal,
não
rocha apenas, peixes circulando
sob
o navio que leva esta mensagem,
e
aves de bico longo conferindo
sua
derrota, e dois ou três faróis,
últimos!
esperança do mar negro.
“Consideração do Poema” ainda prossegue na mesma explicação sobre a poética ¾ o EU-lírico se coloca como um professor. As definições e conceituações são próprias da atividade educativa:
Êle
é tão baixo que sequer o escuta
ouvido
rente ao chão. Mas é tão alto
que
as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta
em livros, cartas e remédios.
Na
parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o
uniforme do colégio se transformam,
são
ondas de carinho te envolvendo.
Problematizando o objeto de estudo (a poesia), ensina a relação entre
arte e vida. A função fática/apelativa ganha destaque, justamente para
prender a atenção do leitor-aluno:
Como
fugir ao mínimo objeto
ou
recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu
sei que passarão, mas tu resistes,
e
cresces como fogo, como casa,
como
orvalho entre dedos,
na
grama, que repousam.
A lição se estende em “Procura da Poesia”. O tom professoral aumenta, chegando mesmo a palavras de ordens ao longo do poema, grifadas a seguir:
Não
faças versos sobre acontecimentos.
Não
há criação nem morte perante a poesia.
[...]
Não
faças poesia com o corpo,
êsse
excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua
gôta de bile, tua careta de gôzo ou de dor no escuro
são
indiferentes.
Nem
me reveles teus sentimentos,
que
se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O
que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não
cantes tua cidade, deixa-a em paz.
[...]
O
canto não é a natureza
nem
os homens em sociedade.
Para
êle, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A
poesia (não tires poesia das coisas)
elide
sujeito e objeto.
(ANDRADE,
opus cit.: 138-139)
O poema pode ser dividido em duas partes: na primeira, o EU-lírico exorta o que não fazer; na segunda, ele recomenda todas as regras em que acredita. Ainda analisando a primeira parte, é vedado o aproveitamento biográfico para a composição poética: os acontecimentos, a infância, o dia, encontros, desencontros, lugares, rotinas, nada disso é material para versos. Até os estados d'alma como "a gôta de bile" (a resignação), a "careta de gôzo ou de dor no escuro" tão habituais como inspiração poética, é dispensada. O EU-lírico, então, após desarmar o aspirante a poeta (o próprio leitor) de todo esse material biográfico, prescreve decididamente como se faz poesia. Eis a segunda parte do poema:
Penetra
surdamente no reino das palavras.
Lá
estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão
paralisados, mas não há desespêro,
há
calma e frescura na superfície inata.
Ei-los
sós e mudos, em estado de dicionário.
[...]
Não
forces o poema a desprender-se do limbo.
Não
colhas no chão o poema que se perdeu.
Não
adules o poema. Aceita-o
como
êle aceitará sua forma definitiva e concentrada
no
espaço.
Chega
mais perto e contempla as palavras.
Cada
uma
tem
mil faces secretas sob a face neutra
e
te pergunta, sem interêsse pela resposta,
pobre
ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste
a chave?
Sob esta perspectiva, o poema só pode ser construído a partir de materiais lingüísticos, isto é, trata-se de um fenômeno totalmente independente da realidade física. Além disso, o fazer poesia ganha um caráter mediúnico, pois o poeta está apenas a mercê da epifania das palavras, dos significados, dos “não-ditos” do poema: a poesia é o próprio fazer poético que goza de uma autonomia não manipulável pelo escritor. Nesse sentido, o poeta apenas capta, do reino das palavras, aquilo que quer, a seu tempo, "desprender-se do limbo", o que faz lembrar a concepção de poesia da Antiguidade, onde o poeta era o místico sacerdote que apenas transcrevia o poder ritualístico que lhe tomava. Inclusive já é largamente aceita essa mística drummondiana, e diversos estudos vêm tentando explicar como ela se dá. Essa característica marcante, aliada ao impulso pedagógico, define com muita nitidez a concepção de poesia de Carlos Drummond de Andrade.
Direção oposta parece tomar a poética de João Cabral de Melo Neto. Tem-se falado muito no apuro formal a que chegam seus poemas, mas é hábito entendê-lo como uma preocupação de engenheiro, isto é, um EU-lírico que esmerilha sua composição, com todo o perfil calculista do engenheiro.
De minha parte, acredito mais num EU-lírico pedereiro de palavras, isto é, aquele que realmente trabalha com a parte material da poesia como se fosse pedra a ser desbastada. As metáforas cabralinas, que aludem ao fazer poético, trazem sempre uma imagem de trabalhos braçais simples, das gentes mais humildes, pobres e incultas: ¾ não o engenheiro.
A confusão entre o pedreiro e o engenheiro talvez tenha sido estimulada pelo costume de a crítica se apegar ao que o poeta diz sobre sua poesia, sem observar com a devida atenção o EU-lírico. Nesses termos, João Cabral diz:
Então
eu procuro justificar esse meu, vamos dizer, cerebralismo, intelectualismo, o
máximo que um artista deve aspirar... Porque todo mundo é contra o cerebral.
Eu acho que não: eu gostaria de fazer uma poesia ainda mais cerebral do que eu faço. (apud SOUZA, 1999: 38)
Esse cerebralismo é próprio do poeta, quer dizer, do homem que senta para escrever um poema. Ainda que possa haver um perfil de engenheiro para o EU-lírico cabralino em algum lugar de sua obra, quero voltar minha atenção para esse outro perfil mais modesto e mais "inculto" ( em termos de refinamento acadêmico).
Em algum poema, o EU-lírico, e não João Cabral, disse: "poesia é catar feijão". A tarefa do poeta é sempre comparada com atividades de árdua labuta, que fazem escorrer o suor pelas faces. Trabalho simples e bruto, mas não violento como uma pedra arremeçada, e sim, pesado como uma pedra parada. O engenheiro está tranqüilamente no escritório calculando; os operários é que estão despendendo todo o esforço físico, aquele esforço orgânico necessário para realizar os cálculos do engenheiro.
Mesmo que a obra de Cabral tenha começado com o esboço de uma engenharia poética ¾ lembrando mais uma vez que se trata de uma análise exclusivamente do texto, e não da concepção e opinião de Cabral ¾, ela abandona esse caminho para buscar um contato mais orgânico com o material poético:
A
psicologia da composição [falta o grifo] supera a perplexidade com que ainda
se encarava, em O Engenheiro, a transformação dos estados interiores na matéria morta incorporada
ao organismo do verso, nascido sôbre a superfície mineral da fôlha em
branco. Ao contrário do que então sucedia, quando se tentava abranger e
fundir os dois planos, o da linguagem e o da experiência psicológica, a
intencionalidade poética, dirigida pela atenção, visa agora diretamente ao
primeiro, enquanto o outro, reduzido pela depuração que o impessoalizou,
torna-se realidade dissipada e ausente, da qual o poema surge. Daí a elaboração
poética realizar-se à contra-corrente da experiência psicológica, agindo
em sentido inverso ao dela, como um processo negativo que desfaz o que ela
faz, e cujas operações, diminutivas e redutoras, lavam-na de suas impurezas
e despem-na de suas excrescências. Assim, o poeta compõe ao se
decompor[...]: "Saio do poema/ como quem lava as mãos.". (NUNES,
1974: 54)
E, principalmente em Psicologia da composição [o poema] (MELO NETO, 1995: 93-97), a poesia de João Cabral se revela um trabalho com a pedra:
VII
É
mineral o papel
onde
escrever
o
verso; o verso
que
é possível não fazer.
São
minerais
as
flores e as plantas,
as
frutas, os bichos
quando
em estado de palavra.
É
mineral
a
linha do horizonte,
nossos
nomes, essas coisas
feitas
de palavras.
É
mineral, por fim,
qualquer
livro:
que
é mineral a palavra
escrita,
a fria natureza
da
palavra escrita.
Esse interesse pelo "mineral", pela "pedra", pela "matéria" traduz o esforço em perscrutar as coisas como elas são, abnegando-se de um ponto-de-vista, i.e., de qualquer posicionamento de um sujeito sensível:
Mas
a direção que assume[m] essas cadeias de imagens já é bastante sintomática.
Em vez de elas cada vez mais se afastarem do real nomeado ¾
à semelhança do que sucede em Mallarmé ¾ ao contrário, como se desconfiassem de
sua força nomeante, são elas trocadas por outras, e por outras mais, até
que desta derivação resulte aquela que atinge visivel e concretamente o
objeto visível e concreto que se procurou dizer. (LIMA, 1995: 236)
Em Fábula de Anfion (MELO NETO, 1995: 87-92), como segundo exemplo, pode-se perceber um EU-lírico desprovido das ferramentas convencionais do lirismo: não há metáforas, sentimentalismo, imagens de beleza ¾ na verdade, não há nada: é a poesia da ausência, do vazio, do oco.
Embora o EU-lírico não apareça como um proletário, ainda se define, todavia, longe do paradigma do engenheiro, pois aqui, o EU-lírico é um flautista, isto é, alguém, meio fantástico, meio ruína, que supostamente poderia "encantar", inebriar com a música, com a arte, mas que, ao mesmo tempo, não encontra motivos (nem causa) ou vantagens (nem efeitos) para tocá-la:
"Uma
flauta: como
dominá-la,
cavalo
solto,
que é louco?
Como
antecipar
a
árvore de som
de
tal semente?
daquele
grão de vento
recebido
no açude
a
flauta cana ainda?
Uma
flauta: como prever
suas
modulações,
cavalo
solto e louco?
Como
traçar suas ondas
antecipadamente,
como faz,
no
tempo, o mar?
A
flauta, eu a joguei
aos
peixes surdos-
mudos
do mar."
Como se vê, ainda que o poema traga um EU-lírico "anti-sentimental", trata-se ainda de uma representação da subjetividade humana, que não pode permanecer incólume a todos os eventos, ainda mais na ausência e carência de tudo.
Por isso, ainda que tacitamente contida, a melancolia dá algum sinal, do qual o EU-lírico pretende suplantar ou ignorar: este é o grande diferencial da poesia de João Cabral, no meu modo de ver. Não há sofrimento nem desespero, ainda que se viva num mundo-deserto:
No
deserto, entre os
esqueletos
do antigo
vocabulário,
Anfion,
no
deserto, cinza
e
areia como um
lençol,
há dez dias
da
última erva
que
ainda o tentou
acompanhar,
Anfion,
no
deserto, mais,.no
castiço
linho do
meio-dia,
Anfion,
agora
que lavado
de
todo canto,
em,
silêncio, silêncio
desperto
e ativo como
uma
lâmina, depara
o
acaso, Anfion.
Na busca obstinada em realizar uma poesia antilírica, João Cabral tenta desconstruir as imagens álacres que traduzem a relação de admiração do poeta frente à poesia, comumente tratada como musa, através de metáforas frias, sem nenhuma carga afetiva, nem de exaltação, nem de depreciação. É o que se vê em Antiode (MELO NETO, 1995: 99-102), da qual se retirou este fragmento a título de ilustração dessa desconstrução da lírica em Cabral:
Poesia,
te escrevia:
flor!
conhecendo
que
és fezes. Fezes
como
qualquer,
gerando
cogumelos
(raros,
frágeis cogu-
melos)
no úmido
calor
de nossa boca.
Delicado,
escrevia:
flor!
(Cogumelos
serão
flor? Espécie
estranha,
espécie
extinta
de flor, flor
não
de todo flor,
mas
flor, bolha
aberta
no maduro.)
Delicado,
evitava
o
estrume do poema,
seu
caule, seu ovário,
suas
intestinações.
Esperava
as puras,
transparentes
florações,
nascidas
do ar, no ar,
como
as brisas.
A palavra "fezes" poderia ser tomada no intuito de depreciar a poesia; porém a obstinação em se manter afastado dela, sem afetividade para com o objeto que se põe diante do sujeito, compele o EU-lírico para uma descrição fria e para uma impassibilidade talvez embalde procurada dentre os parnasianos. Nem ódio, nem compaixão: à poesia, as batatas!
BIBLIOGRAFIA
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de Janeiro: Aguilar, 1967. (Bibl. luso-brasileira)
BANDEIRA,
Manuel. Estrela da vida inteira. Rio
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Andrade; Capítulo III: a traição
conseqüente
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Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1974. (poetas
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Helton Gonçalves de. A poesia crítica de
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VÍTOR, Nestor. Cartas à gente nova: A Cinza das horas.
in: ---. Obra crítica. Rio de
Janeiro: MEC/Casa de Rui Barbosa, 1973.