Estratégias narrativas no romance Gli Indifferenti de Alberto Moravia

 

A obra Gli Indifferenti (1929), do escritor italiano Alberto Moravia (1907-1990), possibilita-nos examinar várias questões inovadoras para a literatura italiana do início do século XX.

O romance, em estudo, apresenta um corte dois dias na vida de uma típica família burguesa na década de 1930, na qual se assistia a presença opressiva do regime fascista. Trata-se de uma história marcada por vários conflitos entre as personagens, na qual a matriarca da família, Mariagrazia, viúva e mãe de Michele e Carla, tem um amante, Leo Merumeci. Este tenta apropriar-se da mansão da família e seduz a filha de sua amante, história que é revelada a Michele por Lisa, amiga da família e antiga amante de Merumeci. O jovem tenta assassinar o amante de sua mãe e de sua irmã, mas se esquece de carregar a arma com balas, devendo, assim, adaptar a nova situação que se instaurará em sua família com o casamento de Leo com sua irmã.

O narrador de Gli Indifferenti não descreve as personagens fisicamente, mas as caracteriza no seu aspecto interior, negligenciando, assim, o aspecto corpóreo. O leitor de da obra em estudo não recebe muitas informações sobre o aspecto físico das personagens. O narrador fornece, por exemplo, de Leo e de Carla apenas os indícios relacionados à trama do romance: sobre Leo nos faz entender que é o amante de Mariagrazia, mãe da jovem, e de Carla, revela apenas que é bonita e jovem.

Privilegia-se, assim, na obra em estudo, o aspecto psicológico das personagens, uma vez que não há uma caracterização plástica que nos permita traçar o perfil físico das personagens. Desse modo, a construção da interioridade das personagens é reforçada pelo uso do monólogo interior que revela o processo de construção das mesmas.

Essa construção da interioridade da personagem é feita diretamente pela própria personagem, uma vez que o narrador lhe cede a palavra. Desse modo, vimos a conhecer o mundo com o campo de visão da personagem, pois os fatos tomam o sentido e a forma que têm para a personagem, revelando os seus pensamentos e emoções, sem a mediação do narrador.

Conforme nos indica Guido Guiglielmi (1998, p. 23), o narrador de Gli Indifferenti apresenta um comportamento de destaque em relação à personagem: “Non c’è nessuna cordialità tra narratore e personaggio”. Nesse caso, não é o narrador que não apresenta nenhum sinal de afetividade em relação à personagem, mas é a própria personagem que surge sem nenhuma tonalidade afetiva diante das circunstâncias ao seu redor.

A estratégia narrativa que possibilita esse jogo é o monólogo interior, o qual segundo Angelo Marchese, corresponde a uma forma de auto-análise que não implica o discurso da personagem e a presença de um ouvinte, pois o leitor é diretamente introduzido na vida da personagem sem nenhum comentário ou explicação. Ou seja, o narrador não nos informa sobre o que a personagem está pensando ou sentindo, pois as palavras são exatamente aquelas que passam na mente das personagens (Marchese, 1987, p. 177).

Segundo o crítico Oscar Tacca (1983, p. 92-94), existem duas maneiras de se chegar ao monólogo interior. No primeiro caso, o narrador, na terceira pessoa, aproxima-se da personagem de modo a substituir a sua própria narração pelo registro da consciência da personagem. Já no segundo caso, ocorre um relato em primeira pessoa, no qual, o narrador-personagem reproduz o seu eu-interior para uma exposição clara. Em ambos os casos, observa-se uma relação de igualdade entre narrador e personagem, ou seja, existe uma grande identificação entre o saber do primeiro e da segunda.

O narrador de Gli Indifferenti apresenta o processo de construção das personagens, o qual instrumentalizado pelo monólogo interior, nos permite evidenciar o estado de alienação das personagens moravianas. Conforme nos aponta Marinella Mascia Galateria (1975, p. 75), pode-se traçar uma visão crítica da sociedade burguesa nos anos do regime fascista pelo viés do estado de alienação dos indivíduos que a constituem. A personagem moraviana apresenta um sentimento de estranheza em relação ao mundo, o qual lhe parece obscuro e impenetrável. Nesse mundo representado seja através do seu ambiente ou do seu horizonte, encontramos uma personagem que não encontra expressão, experimentando somente a irrealidade. Por isso, o jovem se aliena como um meio de defesa diante da angústia que o domina.

A presença da alienação indica a condição de solidão e de incomunicabilidade da personagem, a qual se perde em um mundo de fantasia e separação do mundo circundante. A temática da incomunicabilidade das personagens nos remete a Lucia Strappini (1978, p. 65), que aponta a incapacidade das personagens moravianas de Gli Indifferenti de pensar sem que não sejam guiadas no campo improdutivo da fantasia. Esse comportamento é mais evidente em Michele e Carla, os quais vivem muito mais no terreno da imaginação do que na realidade. O jovem queria ser como as outras pessoas, as quais não analisavam tanto suas vidas e os fatos nessa envolvidos e se deixavam conduzir pelo concreto da existência. No entanto, Michele não consegue se desvencilhar dos seus pensamentos e projeta um mundo fictício para a sua vida, idealizando a mulher perfeita, com uma descrição que estende não somente aos detalhes físicos, mas também ao seu caráter, pois essa mulher imaginada não é “falsa, né stupida, né corrotta...”.

E, assim, também podemos observar como as personagens moravianas se colocam diante da experiência do amor, em particular, ressaltamos a diferença entre Michele e Leo. Em um trecho da narrativa temos uma imagem bastante peculiar, enquanto Carla toca o piano na sala de estar, duas personagens masculinas, Michele e Leo, idealizam o amor, de um lado, Michele, com as suas fantasias sobre a mulher ideal, pura e adolescente e, por outro lado, Leo que, devido ao seu caráter prático de figura pertencente à classe burguesa, apresenta uma visão mais concreta sobre o amor erótico. À medida que Carla toca o instrumento, Leo a visualiza despida, preanunciando já o seu objetivo que é a sedução da jovem. O caráter prático de Leo fica mais visível nos conselhos dados a Michele, no que se refere ao amor de Lisa, a qual está interessada no jovem. Para Merumeci, é incompreensível que Michele não aceite essa proposta de amor, uma vez que só existem vantagens, as quais são elencadas por Leo, tanto financeiras quanto sexuais para Michele.

Uma outra personagem, Lisa, também se entrega aos sonhos, mas, nesse caso, tais sonhos remetem a um amor romântico da burguesia em oposição ao amor erótico de Leo. Conforme nos indica Galateria (1975, p. 44), ambas as personagens masculinas encarnam perfeitamente os modelos de amor da burguesia italiana daqueles anos: Leo vê o amor de modo concreto e Lisa o idealiza romanticamente através de Michele. A personagem está interessada no jovem e projeta todos os seus sonhos nesse amor puro. No entanto, Michele não quer aceitar o amor de Lisa, que para o jovem tem um caráter patético e ridículo. Mas o jovem sabe que outra pessoa em seu lugar, aceitaria Lisa e, por isso, tenta ter o comportamento esperado pela sociedade, sendo para ele, tudo um absurdo e um fingimento.

No entanto, a ebulição emocional de Michele o faz perceber que existem duas alternativas possíveis para sua vida, uma é o caminho da dúvida e outra o da sinceridade. Ocorre, assim, uma contenda mental, pois o jovem começa a suspeitar de suas escolhas, duvidando inclusive do seu próprio comportamento.

Dentro desse quadro de alienação, as personagens não fazem escolhas próprias. As determinações internas, como o sexo ou, externas, como o dinheiro, agem sobre as personagens, excluindo qualquer traço de autonomia e, conseqüentemente, qualquer possibilidade de drama. O fato inevitável, como a sedução de Carla, acontece sem nenhuma transformação da personagem. Esta aceita passivamente a sedução como se fosse o único caminho a ser seguido, uma vez que não existe nenhuma outra alternativa para que ocorra uma mudança em sua vida. Michele também é tomado por essa passividade diante dos fatos, mas o jovem se deixa seduzir por questões que ao mesmo tempo em que lhe são estranhas, pois atraem-no. A relação entre o rapaz e Leo é cunhada pela rivalidade, uma vez que esta figura masculina que domina a sua família, como também pela imitação, pois o jovem se sente atraído pelo sucesso de Merumeci.

Essa alienação impossibilita a Michele e a Carla de conhecerem o limite entre a fantasia e o pensamento, de maneira que os seus pensamentos tomam sempre o caminho das variações emotivas. Assim, como as reflexões ou análises que as personagens fazem sobre os fatos não são materializadas, as personagens fantasiam ou, como prefere Guido Guglielmi (1998, p. 26-27), sonham de olhos abertos. Michele, por exemplo, sofre de uma grande angústia por não conseguir materializar os seus pensamentos, pois sabe que deveria mudar o seu comportamento para fazer algo a fim de romper o quadro de tédio que assola a sua vida. A personagem, apesar de tentar agir, se vê sempre dominada por um sentimento de indiferença que não significa uma ausência total de sentimento, pois o jovem sente e pensa mais do que as outras personagens, entretanto não consegue experimentar sentimentos de ódio nem de amor. Michele analisa o seu comportamento e cobra de si mesmo uma atitude que é esperada pela sociedade da qual faz parte, como ceder ao envolvimento sentimental com uma mulher mais velha, Lisa, e também, romper definitivamente com o dominador econômico e moral de sua família, Leo.

Desse modo, Michele, por não conseguir agir, tende mais à análise do que a ação e se deixa conduzir pelas fantasias, deixando em aberto um problema ao introduzir a história de desagregação e de decadência de uma família burguesa italiana na década de 1930. O jovem está ciente da ruína que cerca a sua família, porém também se sente fascinado pela realidade representada pela praticidade de Leo, sentindo-se atraído pela possibilidade de obter algum benefício dessa situação. Essa possibilidade o seduz a tal ponto que a personagem se esquece, não do ódio que experimenta por Leo, uma vez que não é propriamente esse sentimento que o domina, mas da figura usurpadora do amante de sua mãe.

A análise feita dos fatos ao seu redor impede a Michele de se adequar à sociedade burguesa e ser igual aos outros que não pensam, mas se deixam guiar pelas circunstâncias. Dentro desse quadro instaurado, a personagem se move entre duas alternativas, a primeira é representada por um mundo tradicionalista, isto é, que repete sempre os mesmos modelos, e a segunda é representada pela experiência do novo. Entretanto, Michele não se reconhece em nenhuma dessas possibilidades, uma vez que não quer repetir esses modelos burgueses representados pela sua mãe, Leo e Lisa, mas, também, não consegue reagir a esses mesmos modelos, apresentando várias tentativas de reação que não se efetivam. As suas tentativas de reação vão desde a agressão verbal a Leo até a compra de uma arma sem balas para eliminar o seu agressor moral, passando pelo arremesso de um cinzeiro que, a exemplo da arma sem munição, não atinge o seu alvo. No entanto, Michele não apresenta a convicção que sustente essas alternativas de insurreição, pois a personagem sabe que lhe falta o caráter prático das ações.

Uma outra personagem que nos possibilita o entendimento dessa indiferença diante dos valores familiares e morais é Carla, que nos faz entender, através do seu olhar, a sociedade italiana burguesa dos anos do regime fascista, representada pela sua família.

A jovem, logo nas primeiras páginas do romance, apresenta-se cansada da situação em que vive e, experimenta um sentimento de tédio devido às mesmas cenas que se repetem, em seqüência, na sua vida, como aquelas referentes ao ciúme de Mariagrazia em relação ao amante. A personagem quer romper com esse quadro através da união com o amante de sua mãe, buscando uma alternativa para mudar o status quo através da experiência da relação sexual proibida com o amante da própria mãe e, depois, com o enlace matrimonial.

Esse comportamento inusitado e transgressivo de Carla está em conformidade com as regras da sociedade representada no romance, pois mesmo a transgressão tende a ser absorvida como algo natural e comum para aqueles que dela participam. No entanto, o jovem Michele é aquele que reage abruptamente diante da revelação quase incestuosa do envolvimento sexual da irmã com o amante da mãe, mas sua reação não vai além de seus pensamentos assassínios até a conformação.

Esse é o ponto chave que atravessa a leitura de Gli Indifferenti, pois Michele, como não consegue expressar em ações as suas reflexões, representando, ao fim, o papel esperado pelos outros e fingindo indignações e ofensas que não sente em relação à sua família e à sociedade.

No lado oposto a esse aspecto está Mariagrazia, a qual se fecha ao mundo, vivendo, constantemente, uma fantasia. A personagem, segundo Guido Guglielmi (1998, p. 24-25), apresenta raros e poucos momentos de lucidez, ao contrário do que ocorre com Michele, uma vez que nega qualquer possibilidade de percepção dos fatos em relação à sua família, a sua amiga Lisa e a seu amante Leo. A matriarca vive em mundo falso como se as suas fantasias de sucesso social realmente se realizassem.

Um dos raros momentos de lucidez da personagem, no qual existe a separação entre a fantasia e a realidade, ocorre quando, depois de observar um carro guiado por um motorista particular, a personagem reconhece que esse luxo lhe está inacessível devido as dificuldades financeiras de sua família.

A matriarca representa um grupo da sociedade daqueles anos fascistas que se encontrava diante de uma derrocada, perdendo progressivamente qualquer tipo de ação representativa na sociedade, restringindo-se apenas a um gestual aparente, composto por palavras e comportamentos preconcebidos e repetitivos vinculados a ruína financeira e moral. A personagem está ciente dessa ruína, mas não apresenta nenhuma reação para impedir o desmoronamento de sua família. Para a personagem, é assustadora a idéia de perder a mansão e vir a morar em um apartamento simples. A matriarca quer sempre prorrogar a entrega da mansão a Leo como se algum dia fosse obter o dinheiro para liquidar a sua dívida.

Mariagrazia vive a fantasia de que a sua família ainda mantém o padrão social, apesar da ruína anunciada pela perda da sua mansão. Dessa forma, continua a freqüentar bailes e festas de um mundo social do qual não é mais membro, não percebendo a queda moral de seus filhos, do fim de sua amizade com Lisa e do romance com Leo. Este último é o sedutor, que traz a chave de acesso ao mundo burguês e do consumo, e da permanência no mundo social, representado pelos bailes e festas nos salões.

Leo, diferentemente das outras personagens de Gli Indifferenti, se deixa guiar raramente pelas fantasias, pois representa o caráter prático do grupo social do qual faz parte. Segundo Lucia Strappini (1978, p. 86-87), as suas alegorias são um reflexo do seu caráter de homem burguês bem sucedido, revelando o seu aspecto de posse e de potência.

Esse trecho da obra moraviana evidencia o modo como Merumeci se insere na narrativa, ele apesar de ter acompanhado o crescimento de Carla, se sente atraído fisicamente pela garota, filha de sua amante, enquanto a moça toca o piano, não se furta em traçar os planos para efetivar o envolvimento de ambos.

Essa personagem masculina é o ponto focal dentro dessa narrativa, uma vez que apresenta uma relação muito estreita com as demais personagens, controlando a vida da família Ardengo, o destino dos seus membros. Em resumo, Leo é aquele que os faz se mover e agir de acordo com um esquema premeditado, evidenciado inclusive pelo domínio que exerce sobre Michele, Carla e Mariagrazia

Todas essas questões tratadas em Gli Indifferenti são apontadas como inovadoras para a narrativa italiana do início do século XX. As personagens são construídas mediante o uso do monólogo interior, revelando as suas fantasias através das suas reflexões. Desse modo, o leitor constrói a personagem à medida que a leitura avança, apontando o seu perfil psicológico em detrimento do aspecto externo.

 

 

  

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

 

GALATERIA, Marinella Mascia. Come leggere ‘Gli Indifferenti’ di Alberto Moravia. Milano: Mursia, 1975.

 

GUGLIELMI, Guido. La prosa del Novecento II. Tra romanzo e racconto. Torino: Einaudi, 1998.

 

MARCHESE, Angelo. L’officina del racconto. Milano: Mondadori, 1987.

 

MORAVIA, Alberto. Gli Indifferenti. Milano: Bompiani, 2001.

 

OSCAR, Tacca. As vozes do romance. Coimbra: Almedina, 1983.

 

STRAPPINI, Lucia. Le cose e le figure negli ‘Indifferenti’ di Alberto Moravia. Roma: Bulzoni, 1978.

 

 



voltar