ATRAVÉS DO ESPELHO E O QUE ALICE ENCONTROU POR LÁ: NARRATIVA E NARRADOR EM REUNIÃO DE FAMÍLIA

 

                                                                                                         Cintia Cecilia Barreto

                                           (Aluna do Curso de Mestrado em Literatura Brasileira/UFRJ)

 

À Elódia Xavier

 

ali

ali

se

 

 

se alice

ali se visse

quanto alice viu

e não disse

 

 

se ali se dissesse

quanta palavra

veio e não desce

 

 

ali

bem ali

dentro da Alice

só Alice

com Alice

ali se parece

 

 

       PAULO LEMINSKI[1]

 

Esta sala não está tão bem arrumada como a outra.[2]

 

 

A NARRATIVA: A CASA DOS ESPELHOS

 

Assim a mocinha, em  Aventuras de Alice através do espelho — Through the loooking-glass and what Alice found there — ( 1872 ) constata que a realidade dentro do objeto é diferente da que vive. A história de Charles Lutwidge Dodgson, conhecido como Lewis Carroll, inicia-se em casa com uma cena trivial: uma menina ralha com sua gatinha "traquinas" e a intimida a entrar na "Casa do Espelho" caso ela não se emende: "Assim para castigá-la, suspendeu-a diante do espelho, para que a própria gatinha visse como era rabugenta. — E se você não se emendar já — acrescentou — , atiro-a para dentro da Casa do Espelho. Que é que você acha disso?" (CARROLL, 1983: 12).

Com isso, percebe-se que a inserção na "Casa do Espelho", pelo menos para a gatinha, era sinônimo de castigo. Por isso, pode-se, de alguma forma, estender essa função incipiente à narradora-protagonista da analisada obra de Lya Luft. Alice. Não é à toa que a personagem da autora brasileira, nessa narrativa, possui esse nome próprio. Ele carrega, em sua história literária, o peso de pertencer à personagem de Lewis Carroll. Essa história é hoje um ícone universal da litaratura infantil por sua originalidade fantástica e ilustrativa. Vale lembrar que na aproximação de Alice, de Lya Luft, à Alice, de Lewis Carroll, há outro ponto relevante a ser observado: a ausência da mãe. Nos dois textos, as mães não têm voz.

É preciso lembrar que Reunião de família (1982) é o terceiro romance da autora gaúcha e compõe, para muitos críticos, a “trilogia da família” junto aos dois primeiros livros As parceiras (1980) e A asa esquerda do anjo (1981), conforme adverte Nelly Novaes Coelho:

A matéria ficcional dessa trilogia se identifica com uma das tendências mais férteis da ficção moderna: a que registra as relações humanas, presas à aparência inofensiva e rotineira do cotidiano, para depois ir rompendo sua superfície tranqüila e, lá no fundo oculto, tocar as paixões ou pulsações secretas que revelam a duplicidade da vida vivida e/ou a mutilação interior dos seres que a vivem.  (NOVAES, 1993:231)

           

            Do início ao fim da narrativa, encontram-se referências, comparações e metáforas ligadas ao espelho. A própria autora é quem estabelece um primeiro contato utilizando, em sua epígrafe, a metáfora com o instrumento que reflete o outro lado de uma realidade: "Sinto medo do avesso" (RF, 1991:8). A partir do verso do poeta português Miguel Torga, há a sugestão do universo do espelho como um espaço amedrontador.

Essa é a atmosfera da trama de Reunião de Família. A história inicia com a narradora-protagonista perguntando ao marido: "— Você não acha que um dia a gente podia mandar colocar um espelho grande aqui na sala?" (RF, 1991:9). Desse ponto em diante, observa-se que há, naquela que narra, uma conjugação comparativa sobre o tamanho dos espelhos. Isso porque, em seguida, procura, em sua bolsa, "aquele espelhinho". Continua dizendo: "Paciência. Devo estar com a cara de sempre" (RF, 1991:10). Mais à frente conclui: "Olhando no espelho do meu quarto, esta manhã, pensei que era pequeno demais" (RF, 1991:10). 

E finaliza recorrendo a um jogo de sua infância:

 

O jogo: do tempo em que eu não era uma pacata dona-de-casa com filhos criados, mas uma menina sem mãe; que inventava o jogo do espelho para ser menos infeliz.

A gente sentava na frente da outra menina e encarava: tão intensamente, com tamanho fervor e tanta vontade de a ver mudar, que a imagem aos poucos perdia seus contornos; ficava um borrão.

Por detrás do reflexo familiar ia-se formando outro alguém. De início, sorrateiro; depois, dominando tudo com seu poderoso olhar.

            Seu nome também era: Alice. (RF, 1991:10). 

 

Ao relembrar o lúdico jogo, a narradora consagra  um dos elementos simbólicos da narrativa: o espelho. Este assume, muitas vezes, a idéia de "Verdade". Basta lembrar de uma célebre fala da madrasta de Branca de Neve em frente ao objeto: "Dize a pura verdade, dize, espelho meu: há no mundo mulher mais bela do que eu?" (GRIMM, 2000:358). Nesse sentido, também o espelho, em seus diferentes tamanhos, na trama luftiana, simboliza a verdade da alma e, ao mesmo tempo, mostra a inversão do espaço social estabelecido: "Ela era o contrário de mim, meu reverso. Sempre à espera por baixo da superfície. Livre para detestar tudo o que, aqui fora, eu era obrigada a aceitar" (RF, 1991:10).  Pode-se notar que a narradora indica, por intermédio da palavra "obrigada" o seu estado em relação às coisas que, do lado de fora do espelho, ela era submetida. Nesse momento, percebe-se a divisão da personagem que narra. Ela narra não só uma história, mas sua história. Ela é dupla. São duas Alices: a Alice do lar e a Alice do mundo. No primeiro instante, é apresentada a Alice do lar: "Sou apenas uma dona-de-casa, vida exclusivamente doméstica, marido e dois filhos que já são quase homens e nunca me deram preocupação"(RF, 1991:10). A Alice do lar representa "o dentro". Ela segue seu "destino de mulher". Essa expressão é explicada pela ensaísta e professora Elódia Xavier:           

O "destino de mulher", apesar de insatisfatório, é um referencial seguro; aqui, as relações de gênero estão bem esquematizadas, com todos os papéis distribuídos. Não há erro. A reunião de família, que paradoxal e ironicamente põe a nu os desejos reprimidos, desencadeia, ou melhor, torna visíveis os conflitos. Depois de um jantar tumultuado por violentas acusações contra Alice, a coitada, o dia seguinte representa o retorno à rotina. (XAVIER, 1998:70).           

Na verdade, "o dentro" aqui indica os espaços internos: "a concha", o lar, o estabelecido socialmente, o desejo reprimido, o ambiente patriarcal, enfim, a família e suas circunstâncias. Enquanto isso, a Alice do mundo representa "o fora". Este espaço é marcado pelo desvario, pelos desejos expostos, pelo lado externo, avesso, invertido.

Há, no romance, marcas dessa dualidade do discurso de Alice. Em registro comum, são encontrados os pensamentos, num primeiro plano, e, em itálico e parênteses, são encontradas as divagações, indagações mais recônditas da personagem. Por meio desses dois registros, a narradora dialoga consigo mesma. Medos, receios e anseios são expostos num fluxo narrativo que enfrenta o "espelho" como mediador. Há a ocorrência do monólogo interior. Esse recurso literário é esclarecido por Massaud Moisés: 

O monólogo interior caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem (mónos, único, sozinho, logos, palavra, discurso), como se o "eu" se dirigisse a si próprio. Na realidade, continua ser diálogo, uma vez que subentende a presença de um interlocutor, virtual ou real, incluindo a própria personagem, assim desdobra em duas entidades mentais (o "eu" e o "outro"), que trocam idéias ou impressões como pessoas diferentes (MOISÉS, 2004:308). 

Ao se buscar uma explicação para o uso dos parênteses, é interessante recorrer à Nelly Novaes Coelho num comentário a respeito do uso do mesmo sinal de pontuação em Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll: "analise-se a extraordinária logicidade que Carroll imprime à sua narrativa: uma prova disso é o contínuo uso de parênteses, o sinal gráfico mais característico da intenção explicativa por parte do narrador" (COELHO, 2000:127). Isso porque também Lya Luft utiliza o sinal como recurso para marcar as explicações do "fluxo de consciência" de Alice num dialogismo centrado no Eu.

Um outro ponto que chama a atenção da ação da narradora, e faz parte da narrativa, é a utilização do flashback. A partir de fatos ocorridos no passado, mais precisamente na infância da personagem-núcleo, posturas freqüentes são enfatizadas no tempo da história contada. O leitor é convidado a acompanhar os rastros deixados pela memória do sujeito enunciador a fim de observar, com ele, o que há por trás das poeiras do tempo. 

É importante ressaltar que Lya Luft dialoga consigo mesma também, uma vez que vários elementos narrativos são recorrentes em seus textos: a figura do mar, a loucura, a morte, a concha, o anjo, a rainha, a criança, a bruxa são alguns dos pontos que podem ser encontrados em vários textos da autora independentemente do gênero. Eles compõem o estilo luftiano.  A autora realiza, assim, uma "auto-referência-vocabular-temática".

            Não se pode esquecer que os textos de Lya Luft, romances, poemas, ensaios e artigos tratam de temas comuns que se centram na busca da identidade, geralmente, de personagens femininas ocupantes de um espaço repressor de caráter patriarcal. Seja na figura de um homem (o pai) ou de uma mulher (a mãe, a sogra, ou a avó), a figura do "patriarca" (posição social e não de gênero)  surge como causa de muitos conflitos internos, de posturas contidas, atos indevidos, perdas inestimáveis, e de uma eterna busca a uma infância nada feliz para tentar compreender o presente aniquilado. Nesse sentido, a narrativa da autora gaúcha está pautada em histórias que trazem figuras à margem da família convencional, idealizada.

Não é difícil constatar que há mais perdas que ganhos nos textos luftianos. Como que num movimento catártico, suas personagens sentam no divã e fazem a auto-análise. O presente serve de palco para as lembranças que teimam emergir sempre que se faz necessário refletir sobre a condição da personagem dentro e fora do ambiente familiar. Seu texto não chega a ser panfletário, mas, de alguma forma, denuncia a angústia de muitas personas em  busca de suas identidades que julgam perdidas em algum tempo e lugar.

            A partir ainda da temática da família e da busca pela identidade do sujeito feminino, pode-se travar um diálogo entre os contos "Amor" e "A imitação da rosa" do livro Laços de família (1960) de Clarice Lispector com o romance analisado. As personagens claricianas, Ana (em "Amor") e Laura (em "A imitação da rosa") tais qual a personagem luftiana, Alice, são mulheres "do lar" que, em contato com um elemento desestabilizador, descentralizam-se e questionam sua condição, aparentemente, estável. Não cabe aqui estender essa comparação, mas é, realmente, sedutor o dialogismo existente entre Clarice Lispector e Lya Luft no que diz respeito ao universo feminino.

            Nos dois contos de Clarice, a rotina doméstica surge como símbolo de um universo seguro, estável e organizado. Isso também ocorre no romance em questão de Lya Luft. No conto "Amor" tem-se: "No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado" (LF, 1978:18).

É curioso observar que, em "A imitação da rosa", Laura também recorre ao espelho para se indagar: "Interrompendo a arrumação da penteadeira, Laura olhou-se ao espelho: e ela mesma, há quanto tempo? Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas" (LF, 1978:36).

Sabe-se que a narrativa luftiana alude  a vários textos de autoria feminina no que diz respeito à temática e também  na postura indagadora. O questionamento é um ponto freqüente na literatura pós-Clarice. Essa literatura chamada de intimista participa do dia-a-dia literário de bastantes autoras. Há ainda, em sua obra, uma dialogismo interno entre seus textos. Lya Luft tem um universo reconhecível por seus leitores.

Por fim, o novelo-texto da autora desenrola-se aqui num jogo de espelhos capaz de reproduzir diálogos que vão de Clarice a Lewis Carroll, descrevendo, como pano de fundo, uma família patriarcal, castradora, em declínio. Além disso, o duplo feminino, a partir da figura da narradora-protagonista subsiste revelando "o dentro" e "o fora", o mundo utópico e o mundo distópico, o ser e o estar da Alice pós-moderna.

 

AS SOMBRAS DE ALICE: O SER E O ESTAR           

Enquanto a narradora tece sua trama, a desconstrução se dá. A família representada pelo pai, a irmã, o irmão, a cunhada, o cunhado e a empregada — de muitos anos de serviços prestados —  são desconstruídos, tendo seu outro lado exposto a partir da linguagem cortante  e desbravadora da autora. É o espelho a refletir o avesso de todos os seres de papel. Entende-se aqui por desconstrução o desnudamento do que está em outro plano da narrativa. Toda desconstrução sugere, assim, uma reconstrução. Desconstrói o que está preestabelecido, emergente, e estabelece outro paradigma que estava imerso textualmente.

Como mostra Donaldo Schüller, "o narrador tornou-se escritor. Como escritor, escreve no abandono de opções previamente tomadas. Ao narrar, compete-lhe inventar a linguagem" (SCHÜLLER, 1989:38). Ao organizar a narrativa, Alice aponta elementos extratextuais, na medida em que dialoga com a história de Lewis Carroll e que, mesmo ao descortinar a trama, mostra sob seu ponto de vista a situação da mulher na família repressora de modelo patriarcal em declínio. Dessa forma, a narradora assume sua condição de mulher e questiona uma sociedade que se apresenta para ela deformada através do espelho. 

Alice procura a si mesma no espelho da vida. Acostumada a não se ver, a fazer, mecanicamente, as tarefas do dia-a-dia, a mulher não se questiona. Aliás, a rotina retira dela  a possibilidade de. No entanto, o convite para ir à casa do pai  a fim de ver o estado de saúde da irmã, Evelyn, que perdera o filho há poucos meses, extrai a personagem-núcleo de seu ostracismo, de sua vida pacífica, ordenada, cotidiana, simples e, com isso, possibilita o encontro com seu reverso.

Apesar de a narradora ser apenas uma, sua voz multiplica-se a partir de seus questionamentos. Fica difícil compreendê-la como um ser único quando o que surge no espaço discursivo é uma Alice fragmentada, divida em dois mundos: o do ser e o do estar.

            Para a construção do tempo psicológico, ocorre o monólogo interior. Nele a narradora apresenta o que há de mais íntimo em seu pensamento. Como esse diálogo aproxima-se do inconsciente, o texto se dá sem organização lógica. Tem-se, assim, uma personagem que dialoga consigo mesma:

 

Eu brincava assim na meninice: de não ser eu. Não a coitada, filha daquele Professor a quem ninguém apreciava; mas outra Alice — poderosa, inconquistável.

*

(Tudo fantasia. Mais tarde habituei-me à minha vida doméstica e segura; fora dela. Como um bicho que, despido da casca, expõe um corpo viscoso e mole, onde qualquer caco de vidro no chão pode penetrar, liquidando essa vida rastejante.) (RF,1991:15)

 

No jogo de espelhos, "a outra", a do objeto "reprodutor de Alices" brinca em ser "poderosa", "inconquistável". O ser e o estar, mais uma vez, encontram-se em conflito nessa mulher que teme o seu avesso, ao mesmo tempo, sedutor e enigmático: "O que aconteceria se eu aceitasse incondicionalmente os convites de Alice e me enfiasse com ela por seu caminho de lampejos? (sic) " (RF,1991:11).

 

Como ocorre na história do escritor inglês, a personagem-narradora, vê no espelho, a possibilidade de um outro lugar, mas qual? O de uma realidade bizarra, assustadora: "Falo e me arrependo. Espio rapidamente meu reflexo no espelho, aquela não é a pacata dona-de-casa, é uma mulher má, cara cortada ao meio pela rachadura do vidro" (RF, 1991:104). Ou ainda: "... olho para o espelho. Vejo Alice feia, desgrenhada, cruel, e por trás dela outro rosto, borrado, mas está lá, no nevoeiro, um rosto que ri ironicamente" (RF, 1991:108).

            Alice foi educada sob rígidos padrões moralistas. Sua narrativa deixa transpassar esse ambiente castrador de aniquilamento notório. Nesse sentido, seus desejos são extirpados em prol de uma ordem estipulada pela sociedade machista e perturbada do século XX ainda sob o chicote da ditadura e da ameaça constante a qualquer ato que fuja aos padrões preestabelecidos. Desse modo, a narrativa acontece do ponto de vista feminino.

            Essa narradora encontra-se como muitas personagens luftianas: dividida entre a liberdade sonhada e a rotina estipulada num espaço, em princípio, calmo e acolhedor. A cada novo desafio traçado, Alice se reporta a casa onde deixou comida pronta para o final-de-semana para os filhos "que não dão trabalho" e para o marido "prático":

 

... se estivesse num mundo real, organizado, na minha própria casa, eu soubesse algo melhor para lhe dizer; meu marido certamente saberia dar uma sugestão, um homem tão prático. Mas aqui, nessa atmosfera, não consigo raciocinar direito (RF, 1991:51).

 

 

            Para a narradora o espelho parece assumir, então, o papel de co-narrador, revelando a ela o avesso dela mesma e de todos. Paralelo a seu texto, esse espelho é capaz de narrar outra história:  a que está por trás de tudo. Sobre a simbologia do espelho na narrativa Maria Osana declara:

 

O espelho, lugar da ficção, vai como que refletindo a história de Alice, história do corpo às avessas, invertido na superfície refletora que é lugar de contemplação da própria imagem. Nesse jogo entre a realidade e a fantasia as palavras fundam um novo texto. O espelho é a grande metáfora da criação, da linguagem literária, por isso só Alice tem acesso a ele. (COSTA, 1996:73).

 

            Como ocorre em Don Quixote e Madame Bovary, a narradora reforça a característica da literatura como transporte para outros mundos, universos nos quais se sente liberta do ambiente repressor:

 

Nossos castigos eram freqüentes e cruéis: tapas, surras, horas sentados quietos sem licença de levantar nem para beber água. Podíamos ler, mas Renato e Evelyn não gostavam de livros; eu me refugiava na leitura, escapava para um tipo de liberdade que certamente meu pai nem adivinhava, ou me teria privado disso também (RF, 1991:35).

 

            Ao desenvolver-se da história, pode-se ver a narrador-protagonista em seu lúdico jogo de mundos utópicos e distópicos. Neles realidade e fantasia se mesclam e, às vezes, não se sabe mais o que de ocorreu. Nessa emergência de sentimentos e indagações, vêm à superfície dessa vida-mar, tanto pessoas como o anão quanto ruídos como os passos de criança ouvidos no quarto de Evelyn.

Imersa em suas lembranças e indagações, Alice se depara com a figura estranha:

"Aperto os olhos com as mãos, no meio dos círculos coloridos salta um minúsculo homenzinho, salta e ri; sacode-se de tanto rir; zomba de mim, esse anão debochado?" (RF, 1991:77). Ele aparece em outros textos da autora e aqui parece personificar a manifestação do inconsciente. Desse espaço de mistérios, surgem também os passos de uma criança: "— Que passos? Foi sua irmã? O resto da família estava embaixo ... Quero dizer que não era Evelyn, eram passinhos de criança. Depois finjo que é isso mesmo, claro" (RF, 1991:102).

            Por intermédio de Aretusa, esposa de seu irmão Renato, a narradora tem sua máscara retira à força e jogada assim no chão aos pés da família "decadente". Aretusa expele: 

— Esqueceu o que você fazia comigo no quarto antigamente, esqueceu? Quando a gente ficava sozinha? A santinha esqueceu, mas bem que gostava . . . Ah, como gostava! — Sua voz agora é um guincho, uma voz obscena; que animal guincha na minha memória? Ela continua: — O que a gente fazia? Não vá me dizer agora que era brincadeirinha de criança, porque não éramos mais crianças! (RF, 1991:109). 

            Ao reproduzir a voz de Aretusa, a narradora "perde" o controle: "Quero me jogar aos pés de Aretusa, quero implorar, se for preciso beijo os pés dela, beijo e imploro, pelo amor de Deus, não diga isso não, não fale ..." (RF, 1991:109). A narradora-protagonista não pode dar voz e vez, assim, a essa que conhece seus segredos mais escondidos. Nesse momento, Alice não encontra apoio nos membros da família: "Olho para Evelyn: irmãzinha, você não tem piedade de mim, não tem compaixão por sua velha irmã? Contemplo-a através das lágrimas, humilhada. Será que também ela me examina por entre as pálpebras, vê o outro lado de mim?" (RF, 1991:111).

Finalmente, na construção de sua história a narradora não consegue mais distinguir tampouco domesticar os elementos que ocorrem num crescente, numa erupção de sentimentos, personas, indagações e constatações. Durante a narrativa, Alice relembra a tirania do pai, a ausência da mãe, o mutismo do irmão, o charme e o veneno de Aretusa-Medusa, a presença de Berta, a carência da irmã mais nova e a menina que fora e que agora sem pedir licença insurge multiplicada pelo espelho.

 

O AVESSO DA FAMÍLIA OU A FAMÍLIA PELO AVESSO? 

À medida que a narrativa avança, não apenas a figura de Alice é desconstruída como também as máscaras dos demais vão sendo, pouco a pouco, retiradas. Essas personagens são, igualmente, revistas pelo avesso. Aretusa, Berta, Renato e Evelyn, assim como Alice, também possuem seu lado reverso. "Que grande farsa representamos diante do espelho" (RF, 1991:56).

Alice tem a família revelada com a ajuda do espelho que insiste em refletir o lado oculto deles. Levando-se em consideração que todos possuem o bem e o mal em si, a narradora sai em busca do lado escondido de todos os membros de sua família. Em alguns, as imagens são ampliadas; em outros, as sombras são quase imperceptíveis. O Professor, como é evocado o pai de Alice, surge na narrativa como um sujeito "cada vez menos lúcido" (RF:15). "O duro e frio professor agora é um velhote senil" (RF:15). Sua inserção se dá a partir do sintagma "menos lúcido" e dos vocábulos qualificadores, tais como: "duro", "frio" e "senil". Essa escolha vocabular, da narradora, deixa nítida uma impressão de deterioração que, num plano simbólico, pode ser entendida como a derrocada do patriarcado. "Estamos decadentes; estamos podres. Novamente tenho vontade de chorar". (RF, 1991:56).

O Professor, Rasputin, tal qual o monge russo, do fim do século XIX,  de grande prestígio junto à família real, mas sofredor de um destino trágico, padece com os "insetos" que habitam seus ouvidos. Esses podem representar a impossibilidade de saber ouvir o outro, de receber, conseqüentemente, nesse caso, de dar. O pai de Alice traduz o declínio do modelo patriarcal, que agora se encontra "caduco", impotente e "ausente". Seu pai também tem um outro lado revelado por sua irmã Luci: "O Professor: não era mau, apenas infeliz".  Vindo de uma família numerosa, pobre, pai alcoólatra que batia na esposa. Numa briga, "foi expulso de casa e  nunca mais procurou a família, que quase não tinha notícias dele" (RF, 1991:59). Assim, o professor tem seu outro lado à mostra, quase que para justiçar as atrocidades cometidas em casa. Nesse gesto último com sua família-base, o Professor "foi embora para nunca mais voltar".

Todos têm seu outro lado exposto, ferida aberta, observada com constrangimento, vez ou outra, pela perplexa narradora. Assim, Aretusa que, aparentemente, é uma mulher segura, decidida revela-se habitada por um fantasma do passado: uma ex-aluna, Corália, que, por não ver sua paixão pela professora correspondida, tenta suicidar-se e recebe, não a morte fim de todas as dores, mas a vida estática, recebendo a passagem do tempo em seus cabelos cor de neve. Aretusa também tem seu lado reverso.

A cunhada, num primeiro momento, representa o contrário de Alice: "Eu cheiro a cozinha (sic); ela, a cigarro e jasmim" (RF, 1991:17). Aretusa-Medusa, cabelos cacheados lembram serpentes em sua cabeça. Aretusa "a boca sensual sempre ri mais que os olhos" (RF, 1991:25). Numa discussão com Aretusa diante dos demais membros da família-espelho, Alice, a narradora, entre seus desabafos e revelações desconcertantes, uma voz surge: "(Será que ele (Renato) nunca viu, nos espelhos de Aretusa, aquele outro rosto, pele alvaiade, cabelo de neve, baba escorrendo, será que nunca adivinhou?). (RF, 1991:111).

Berta, a empregada, encarregada de cuidar da casa e dos filhos do professor, tem seu outro Eu também revelado pela narrativa-relfexo de Alice. Seu duplo é obsceno. Ao narrar o momento em que o reverso de Berta emerge, a narradora, sinaliza que "há algo de podre no reino da Dinamarca": "Sigo pelo corredor escuro que leva ao quarto dela, tudo úmido e cheirando a mofo" (RF, 1991:90). A partir dessa descrição do hábitat de Berta, dá-se o momento-revelação: 

Mulheres nuas: algumas em poses vergonhosas. Seios agressivos, grandes nádegas, sexos peludos. Tenho o rosto quente. É doentio: a velhinha, que parece tão inofensiva, colecionando mulheres nuas?

            (...)

a camponesa de pés grandes que trabalhou como um animal de carga e procurou, embora tão desajeitadamente, nos dar uma vida um pouco organizada e agradável; essa que fazia Cristiano chamá-la de avó ... tem também seu lado reverso? (RF, 1991:91). 

A construção social dos conceitos de masculino e feminino ocorre no texto como pode ser observado na figura de Renato. Ele  é narrado como um ser frágil. Sobre esse aspecto da literatura de autoria feminina Helena Parente Cunha esclarece:  "... as personagens masculinas, mesmo que autoritárias, se mostram fracas. A literatura feminina dá preferência também a mostrar personagens masculinas marcadas pela característica da opressão. (CUNHA,  1990:122). Nesse sentido, Lya Luft pode ilustrar essa tendência da literatura feminina, pois, nesse romance, as personagens masculinas são envolvidas por essa atmosfera.

Isso pode ser visto tanto em Renato quanto em o Professor como em Bruno — marido de Evelyn que se mantém inerte diante das loucuras da mulher — e em Cristiano, "com seu pequeno corpo mutilado", o sobrinho morto, há poucos meses, sobre o qual a narrativa se instala. Afinal, sua morte, de alguma forma, reúne a família. Uma família reunida pelo grotesco e pelo trágico.

Renato — "que só levava surra de nosso pai" (RF, 1991:20) —, aparentemente, calmo, revela seu outro lado ao jorrar suas angústias, há muito reprimidas, sufocadas pela tirania do pai. Aliás, Renato —  "sai" do "olhar de velha águia" do pai e transfere esse aspecto para Aretusa — sua esposa. Com ela, ele possui a mesma postura subserviente.

Ele numa discussão com o pai cospe as palavras engasgadas: "O senhor nunca foi pai: foi carrasco" (RF, 1991:82). Em meio a outras acusações, a narradora reflete: 

Levanta-se da cadeira, vejo dois Renatos crescendo — o do espelho e o de fora; ambos assumem um espaço inusitado. Como um ator que entra em cena, tímido e inseguro, mas aos poucos recorda o texto, emposta a voz, abraça o público num grande gesto (RF, 1991:83). 

Evelyn,também, mostra sua outra face, distinta daquela, aparentemente frágil, dócil e apática. "Descobri que Evelyn anda com uma gilete debaixo do travesseiro". (RF, 1991:51)  Diz Bruno, marido dela. "Evelyn à minha frente, ao lado do marido. Não preciso do espelho para vê-la bem. Trouxe o boneco; sentou-o no colo. Uma menina com o brinquedo favorito". (RF, 1991:55) 

Até Cristiano tem seu duplo na figura do palhaço — imagem bizarra — que a mãe carrega consigo durante a narrativa. O palhaço lembra Renato, enfiado em calças largas, mas também é Cristiano. O palhaço, assim como o anão, representa o grotesco, a paródia, o avesso das imagens apresentadas na "reunião de família".

Nesse momento, pode-se recordar Paulo Leminski: "tudo dito,/nada feito,/fito e deito" (LEMINSKI, 1996:162). Diante disso, é válido mostrar que o "mito do eterno retorno", colocado por Nietzsche como um movimento circular no qual se estabelece que tudo está fadado a retornar, é uma das marcas principais da escrita de autoria feminina. Exemplo disso pode ser apreciado no último capítulo do livro em que, após a tormenta de falas jogadas e verdades arremessadas pela casa da família do velho Rasputin por Aretusa, Alice e, inclusive, por Evelyn, tudo volta aos seus "devidos" lugares. Nesse momento, as máscaras são, calmamente, restabelecidas e o espaço familiar, desagregador e punitivo, retorna a sua pseudopaz:

 

Estamos calmos e compostos. Nada temos a ver com as criaturas que ontem se desnudaram mutuamente, arrancando máscaras, rasgando carnes, lascando unhas. Somos apenas três pessoas comendo diante de um espelho rachado.

Foi tudo um jogo de espelhos: nossas imagens defrontadas numa série interminável, multiplicando rostos, como nesses labirintos espelhados em que tudo se torna possível. Reflexos de reflexos de reflexos: eis o que somos. Agora que descobrimos isso, despertamos para a lucidez do trivial. (RF, 1991:123) 

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS   

            Com esse trabalho foi possível observar, ainda que de passagem, a atmosfera apresentada por Lya Luft, a partir de uma sensibilidade e qualidade literárias invejáveis.

            Em diversas entrevistas, a autora afirmou que sua literatura não tenta resolver os problemas da alma, mas antes mostra-os a fim de, por intermédio do "feitiço da palavra", buscar controlá-los.    

            Com a narradora-protagonista em 1ª pessoa, foi permitido observar a expressão desse Eu feminino que, por ter voz, denuncia a opressão vivida no entorno de uma família patriarcal decadente. Como disse Helena Parente Cunha:"Há sempre (nas escritoras) uma preferência pelo interior, pelas vivências, pelas experiências, pelas emoções" (CUNHA, 1990:121).

            Pôde-se, com este trabalho, adentrar no mundo luftiano e, observar, sob a luz da figura do narrador e da construção da narrativa, os intertextos, os símbolos, as armadilhas do duplo, a criação literária e a polifonia dentro de monologismo dialógico.

Dessa forma, Alice entrou no espelho e o que encontrou por lá foi um outro ângulo de si e das coisas a seu redor. Tal qual a personagem de Lewis Carroll, a narradora de Lya Luft reporta-se e, levando consigo, o leitor enfrenta uma realismo fantástico, um universo habitado por anões, palhaços que andam feito crianças? , amantes inventados, tudo real em sua fantasia-texto. Esse trabalho como muitos deixa um gosto de quero mais que o mundo-velocidade não permite. Em qualquer momento, volta-se a ele pela urgência angustiante de mergulhar, tão logo possível, nesse maravilhoso universo de Lya Luft.

 

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

Alice: edição comentada./ Lewis Carroll; ilustrações originais, John Tenniel; introdução e notas, Martin Gardner; tradução, Maria Luiza X. de ª Borges. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2202. 

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice através do espelho. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. 

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. 

______. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993. 

COSTA,  Maria Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. São Paulo: Annablume, 1996. 

GRIMM, Jacob & Wilhelm. Contos de Grimm. (obra completa). Trad. David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. 

LISPECTOR, Clarice. Laços de família: contos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978. 

LUFT, Lya. Reunião de família. São Paulo: Siciliano, 1991. 

Melhores poemas de Paulo Leminski / seleção Fred Góes, Álvaro Martins. — São Paulo: Global, 1996. 

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004. 

SCHÜLLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: 1989. 

Seminários de literatura brasileira: ensaios. 3ª bienal Nestlé de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1990. 

XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998. 

 


[1] Melhores poemas de Paulo Leminski / seleção Fred Góes, Álvaro Martins. — São Paulo: Global, 1996, p. 30.
[2]
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice através do espelho. São Paulo: Círculo do Livro, 1983, p.16.

 

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