ANNE RICE E O VAMPIRO DECADENTISTA

 

Não há outro jeito de livrar-se de uma

tentação a não ser sucumbindo a ela.”

Oscar Wilde[1]

O que é ser um vampiro?

No século XIX, esta não era uma pergunta difícil de ser respondida.  Bastaria que se tentasse imaginar que a figura do vampiro representaria o mal encarnado, uma criatura sobrenatural que iria de encontro às normas pelas quais os seres civilizados viveriam. Com seus hábitos noturnos, o vampiro sempre serviu de símbolo para as superstições do ser humano, evocando seus medos mais arraigados.

Anne Rice, no entanto, criou personagens que contradizem tudo aquilo que se conhece como Vampiro. Aliando suas leituras de mestres do gênero a autores decadentistas, criou um vampiro único, misto de antigo e novo, Lestat de Liouncourt, a personificação do Dandy finissecular que apareceu no século XIX

O decadentismo, estilo literário nascido nos últimos vinte anos do século XIX, teve um período de curta duração, porém extremamente profícuo. Wilde, Lorrain, Huysman, D´Annunzio, Gautier, Verlaine, são alguns dos principais autores que defendiam o culto da artificialidade, da arte como algo completamente inútil e por isso mesmo belo, e de uma vida dedicada à contemplação do artifício, à estetização da vida. Para tanto, os autores decadentistas beberam nas águas de Sade e Baudelaire e na filosofia que privilegiava arquétipos marginalizados e os escombros da cidade, construindo assim sua tessitura romanesca e poética.

Os decadentistas herdaram de Baudelaire a classificação tipológica desses seres humanos que transitavam pelas ruínas citadinas: o flâneur, observando à distância, medindo, crítica e cuidadosamente, de sua mesa em um café ao findar do dia, a multidão que transitava pelas calçadas dos bulevares, como se pode ver pelas palavras de Walter Benjamim:

As galerias são um meio termo entre a rua e o interior da casa. Se quisermos mencionar uma artimanha própria das fisiologias, falaremos de uma dos folhetins, já comprovada: a de transformar boulevares em interiores. A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom, ou melhor, que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornal são as suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente. Que a vida em toda a sua diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo: eis o pensamento político secreto da escritura de que faziam parte as fisiologias.[2] 

 O dandy, o ser preso às convenções da moda, valorizando-a sobremaneira, que transita entre o mundo elegante dos salões burgueses e as casas de tolerância, opiários, onde as classes baixas iriam se refestelar no fim do dia como afirma o estudioso Pedro Paulo Catharina:

Os dandys são figuras de exclusão que se encontram paradoxalmente à margem e dentro de uma aristocracia ou alta burguesia e exigem seu direito à futilidade e ao artifício. Eles se postam contra a massa e a massificação da sociedade industrial e burguesa. São figuras que jamais fariam uma revolução coletiva, mas servem de contraponto ao coletivo e teatralizam a decadência das sociedades e o direito à individualidade e à diferença.[3] 

O dandy, neste contexto, para Baudelaire, deveria: “procurar ser ininterruptamente sublime. Nem mesmo quando dorme deve viver como se estivesse diante de um espelho”.[4] Ele representa o extremo da superficialidade, pois apenas a beleza e o ato de ser impecável diante da sociedade seriam suas marcas e sua “função”.

Os decadentes herdariam de Sade o gosto pelo perverso, pelo desvio da moral, não como um caminho subversivo dentro da sociedade, mas sim como uma conduta, um modus vivendi. A quebra da sensualidade hegemonicamente heterossexual, a negação da família, tudo assinala em direção à figura do dandy, como afirma Luis Edmundo Bouças Coutinho, em seu artigo intitulado “Mascaramentos da cidade: poses da modernização”:

Na esteira dos motivos da lésbica, do flâneur, da prostituta configurou-se igualmente a condição da conduta do dandy decadentista, que passou a assumir o afrontamento trágico, revolucionário e ilusionista pontuado por Baudelaire. Na exortação das primeiras relações entre dandismo e escritura, o narrador decadentista absorveu as vertigens de uma zona limite. Se, por um lado, essa atitude incorporou uma experiência trágica, por outro formulou um elenco de denúncias, colocando em sua atitude crítica, os componentes de reação política e social, fazendo que o dandy decadentista - na redação do contorno de sua diferença - transgredisse os princípios burgueses de valorização do trabalho e do lucrativo, ao brindar o ócio e o prazer,  no cortejo do supérfluo e do inútil.[5] 

Esta reação limite está ligada diretamente à vertigem que assola a sociedade no período que se convencionou chamar de finissecular. A suposição das sociedades ocidentais de que a virada do século traria o fim do mundo conhecido causou espasmos ideológicos, fazendo com que o ser humano procurasse se eternizar. Em cada período de mudança secular houve reações diferentes: do pânico absoluto a uma indiferença calculista. No que diz respeito ao século XIX, verificou-se que o culto ao artifício e ao esteticamente perfeito, quase chegando ao grotesco, é o que marca a entrada do século XX, podendo ser classificada esta tendência de beleza do subterrâneo, e, neste sentido, pode-se verificar em Moretti opinião consoante:

Antes da nova arrancada que levará às inovações do século XX, há, entre as elites, um cansaço, uma vaga idéia de que algo morre, de um mundo de decomposição. É claro que os reveses políticos e a síndrome de vazio psicológico a todos os fins de século não bastam para explicar esta atmosfera de melancolia e desesperança que os ritmos de Strauss, Offenbach e Suppé não conseguem dissipar. Mas, em contrapartida, há, neste contexto, uma contradição de grande interesse: se, de um lado, a geração de 1880 sente um frio de morte e de decadência, há por sua parte a necessidade de uma luta por algo diferente, por uma renovação. [6] 

É nesse estado de crise que o decadentismo floresce, não se propondo ser, mas sendo, uma filosofia de transformação que legaria ao século XX a figura que se tornaria emblemática ao ser absorvida por um outro caminho literário que não o decadentismo: o dandy.

As crônicas góticas de Anne Rice trarão em seu escopo as matrizes decadentistas do século XIX, apresentando um novo dandy, Lestat de Lioncourt, que trará em sua formação questionamentos filosóficos e um comportamento mais humano do que aquele apresentado por todos os monstros já criados na literatura mundial, como nos demonstra ele próprio:

Voltando pela sombria e erma Rua do Canal, subi pelas escadas para os meus aposentos em um antigo hotel do bairro francês. Ele era calmo e bastante conveniente, podendo-se ver o velho quarteirão espalhando-se sob as janelas, e suas ruas pequenas e estreitas como nas cidadezinhas espanholas que eu conhecia tão bem. Coloquei um videocassete no aparelho e fiz projetar na gigantesca tela da televisão o belo filme Morte em Veneza, de Visconti. A certa altura um ator diz que o mal era uma necessidade. Era o alimento dos gênios.

Não acreditava nisso. Mas gostaria que fosse verdade. Então poderia ser apenas Lestat, o monstro, não poderia? E eu sempre fui tão bom como monstro! Ah, bem...[7] 

Anne Rice ficou conhecida nos meios literários a partir da publicação de Entrevista com o vampiro (1976), cujo personagem-narrador, Louis de Pont du Lac, é atormentado pela imortalidade, não aceitando sua condição e vivendo em conflito por ter de matar outros seres humanos.

Entrevista com o vampiro gira em torno dessa figura paradoxal. Misto de herói trágico e romântico, um perfeito humanista, Louis culpa seu criador, figura hedonista e narcisista, Lestat de Lioncourt, por sua transformação.

Neste primeiro livro, Rice, confessadamente, admite ter feito Louis seu alter-ego, sua figura de apoio. Não havia, porém, uma intencionalidade maior na criação de Lestat. Ele era, então, somente o antagonista.

No entanto, o antagonista de Entrevista transformar-se-ia no personagem central de suas tramas. O “príncipe moleque”, como mais tarde será chamado por Marius, outro de seus vampiros, no terceiro livro, A Rainha dos condenados, tomou corpo e voz e assumiu o papel de personagem principal.

Diferentemente do que se possa ter pensado, Rice criou uma trajetória filosófica em sua série de livros que nomeou de Crônicas vampirescas, por serem narradas sob o ponto de vista dos próprios vampiros e apresentarem digressões sobre a vida, a sociedade e o papel que Deus e o Demônio representariam, não só na vida do ser humano, mas também na vida dos seres amaldiçoados com a vida eterna. Até então, o vampiro era apresentado como uma figura silenciosa e malévola, sem direito a pensamentos e reflexões críticas sobre o mundo. Ela optou, para tanto, por um estilo de texto pouco usual em um romance: a crônica de cunho memorialista.

As crônicas vampirescas primam por serem narrativas em primeira pessoa, cujo personagem–narrador atém-se aos fatos ocorridos apenas em sua existência imortal. Há nessas narrativas um sentido de competição entre cada um dos narradores, mas sempre ocorre um elemento comum entre elas: não importa quem esteja narrando, Lestat de Lioncourt sempre aparece como foco de tensionamento na tessitura do texto.

O dandismo vampírico encontra-se inserido na alma da personagem. Nascido no interior da França, na pré-revolução francesa, Lestat é o terceiro filho de nobres decadentes, que deseja ser ator e, para tal, foge para Paris. Lá, depois de um ano, será perseguido por um vampiro, Magnus, que o transformará e em seguida se atirará numa pira. Seguindo incautamente por todo o século XVIII e XIX, Lestat retira-se para um período de hibernação de onde acordará ao ouvir os acordes de uma banda de rock and roll. Acordado, percorrerá as ruas de Nova Orleans, desse tempo desconhecido, procurando assimilar tudo o que puder :

Eu prosseguia com a minha educação. Conversava com mortais nas paradas de ônibus, nos postos de gasolina e em bares elegantes. Lia livros. Enfeitava-me com vistosas peles de sonho das lojas da moda. Usava camisas brancas de gola role e blusão caqui franzido, tipo safári, ou então luxuosos blazers de veludo cinza com lenços de cashmere no pescoço. Empoava todo o meu rosto para poder “passar” sob as luzes químicas dos supermercados abertos a noite inteira; das lanchonetes que vendiam sanduíches e dos locais de diversão na chamada zona dos clubes noturnos.[8] 

Lestat passa então a observar a cidade e a se inserir nela, absorvendo costumes e circulando na multidão tal qual um mortal. Nenhum lugar é sagrado. A cidade transforma-se no seu eterno palco e em seu sepulcro, (o que nos faz lembrar de Oscar Wilde, cuja vida foi um eterno espetáculo, na tentativa de vivê-la como uma obra de arte). Este ser imortal acompanha a evolução urbana e, tal qual o flâneur de Baudelaire, reflete sobre suas mudanças:

AH, O SÉCULO XX. AH, O GIRO DA GRANDE RODA. Ele superava os meus sonhos mais delirantes, este futuro. Ele transformara em idiotas os profetas sinistros das épocas passadas. 

Eu pensava muito nesta inocente moralidade secular, neste otimismo. Neste mundo brilhantemente iluminado no qual o valor da vida humana era muito maior do que jamais fora.[9]

 

É possível explicar esta visão de Lestat do século XX, se refletirmos sobre o que é ser um flâneur. Para Benjamim:

No flâneur, o desejo de ver festeja o seu triunfo. Ele pode concentrar-se na observação - disso resulta o detetive amador; pode se estagnar na estupefação - nesse caso o flâneur torna-se um basbaque. As descrições reveladoras da cidade grande não se originam de um nem de outro; procedem daqueles que, por assim dizer, atravessam a cidade, distraídos, perdidos em pensamentos ou preocupações. É a eles que faz jus a imagem da Estranha esgrima[10] 

Lestat é um esgrimista de Baudelaire levado ao extremo. Ao invés de criar o fazer poético, ele aniquila a vida do poeta, seduzindo-o com a promessa de imortalidade, assim como a cidade seduz o transeunte todos os dias, durante o eterno movimento da vida. Pois ela será muito mais do que uma mera especuladora da flânerie vampírica, será sua cúmplice. Sua própria estrutura propiciará ao vampiro os prazeres que matam e a noite é o manto que encobre a perversidade não apenas dele, como também dos homens.

A cidade será seu simulacro, sua eterna obra de arte, onde ele circulará e usufruirá de todas as suas comodidades, sempre à espreita, sempre à margem, por ser um ser excluído do processo de modernização, ou como o próprio Lestat diz ao falar de Miami: "Há uma ameaça que paira sob a brilhante superfície de Miami, há desespero e avidez incontroláveis; há o pulso profundo e regular de uma grande capital - a energia lenta e crepitante, o risco infindável”.[11]

 

BIBLIOGRAFIA 

BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas II. Magia e técnica, arte e política. Trad. José Carlos Martins Barbosa.São Paulo: Editora Brasiliense,
1994.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira.São Paulo: Martin Claret, 2001.

____________________. Meu coração Posto a nu – Poesia e prosa. Trad e Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1992.

COUTINHO, Luis Edmundo Bouças.  Mascaramentos da cidade: poses da

          modernização.  In Terceira  Margem. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999.

 

CATHARINA, Pedro Paulo Garcia. Quadros literários em À Rebours de J. K. Huysman.

         Tese de Doutorado em Literatura Francesa.Rio de Janeiro: Universidade Federal do

         Rio de Janeiro, 2001

 

MORETTO, Fúlvia M.L. Os caminhos do Decandentismo Francês. São Paulo:  

         Perspectiva, 1989.

RICE, Anne. Entrevista com o Vampiro.Trad. Clarice Linspector. São Paulo: Rocco, 1976.

_________.O Vampiro Lestat. Trad. Celso Vargas.São Paulo: Marco Zero, 1986.

_________.A rainha dos condenados. Trad. Eliana Sabino.São Paulo: Rocco, 1990.

_________.A história do ladrão de corpos.Trad. Aulyde Soares. São Paulo: Rocco, 1992.

WILDE, Oscar. As obras primas de Oscar Wilde. Trad: Marina Guaspari. Rio de Janeiro:

        Ediouro, 2002.

 



[1] ________ (2002).p-517

[2] BENJAMIN, Walter. (1994). p-35

[3] CATHARINA, Pedro Paulo Garcia.(2001). p-89

[4] BAUDELAIRE, Charles.(1992). p-526

[5] COUTINHO, Luis Edmundo Bouças. Mascaramentos da cidade: poses da modernização. p-142.

[6] MORETTO, Fúlvia, M.L. (1989). p-14-5

[7] RICE, Anne. (1986). p-20

[8] RICE, Anne. (1986). p-1

[9]Idem, p-14

[10] BENJAMIN, Walter.(1994). p-75

[11] RICE, Anne. (1992). p-20

 

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