SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA

 

MABINOGION: UMA VISÃO CELTA DAS MARAVILHAS E UTOPIAS MEDIEVAIS

 

Mônica Amim (Doutoranda em Literatura Comparada)

 

O corpus literário com o qual pretendemos trabalhar são os contos do Mabinogion. Temos consciência de que tais textos são de rara circulação em nosso meio acadêmico, tendo em vista suas particularidades e especificidades. Por isso pensamos ser primeiramente necessário oferecer alguns dados sobre a civilização celta, sua cultura e sua arte, de forma a  propiciar uma maior aproximação e minimizar as possíveis dificuldades que os interessados possam apresentar em relação à obra a ser pesquisada.

Os celtas foram um povo, de origem indo-européia, que constituiu a primeira grande nação de nome conhecido ao norte dos Alpes, sendo por isso considerado o predecessor das nações históricas da Europa Central e do Oeste. Os celtas emergiram como povo reconhecido por volta de 500 a.C. na Europa Central (na área em que hoje se encontram Tchecoslováquia, Hungria, Áustria, Suíça, sul da Alemanha).

. No século III a.C.  já ocupavam uma vastíssima região que ia da Espanha à Ásia Menor. Grande parte dos historiadores destaca o período Lateniano (entre os séculos V e III a.C.) como o apogeu da expansão celta.

Devemos destacar que os celtas distinguiam-se dos outros povos não apenas pela utilização do ferro como também pelo alto grau de habilidade técnica e artística  que desenvolveram em relação à metalurgia. Ora, o ferro que servia para a confecção de ferramentas servia também para a fabricação de armas, o que deu aos celtas superioridade militar e facilitou sua expansão e a conquista de novos territórios.

Tendo dominado um vastíssimo território ocupado por uma variada gama de populações, a civilização celta desenvolveu-se, então, em um meio bastante heterogêneo. Somemos a isto o fato de que a aquisição da escrita pelos celtas deu-se apenas em torno do século V d.C., o que pode ter levado a uma certa fragmentação na transmissão dos conhecimentos e costumes que até então eram passados pela tradição oral.

Exceto por focos de resistência, como Grã-Bretanha e Irlanda, e por efêmeros períodos de renascimento da cultura celta em pontos isolados, podemos afirmar que o declínio da civilização celta começou com a ascensão e a conseqüente invasão romana. Os romanos foram paulatinamente sufocando todos os aspectos da civilização celta, a começar pela Gália, proibindo inclusive a prática do Druidismo (a religião dos celtas), o que acelerou o desaparecimento do gaulês como língua. O golpe final seria dado mais tarde quando em 325 d.C. Constantino declarou o Catolicismo a religião oficial do Império Romano, e a Igreja passou a perseguir com extrema ferocidade todas as outras religiões.

O religioso, o divino, o espiritual, o mágico e o sobrenatural estavam presentes em todos os aspectos do cotidiano celta. Forte indício disto era a posição destacada da classe sacerdotal, que, entre inúmeras outras atribuições era responsável pela educação dos jovens e pela vida intelectual. Verificamos, então, uma unidade de crença que tinha o Druidismo como religião.

Uma característica importante da religião dos celtas é seu não-dualismo. Nesse sentido, a insistência do Cristianismo numa visão dual de mundo acarretou a má compreensão de várias estórias celtas. Dentro da concepção não-maniqueísta dos celtas a magia não era boa ou má, simplesmente era, pois aquele que cura também pode trazer a enfermidade. Temos aí a expressão da relatividade das coisas: para o celta a totalidade encontrava-se na própria contradição interna dos seres e das coisas, e isto dá a unidade entre o Espírito e a Matéria, visto que estes formam o Ser.  Tal relatividade, expressa pelo não-dualismo, levou à inexistência da noção de pecado na religião e da noção de crime no jurídico; os possíveis erros não eram punidos com castigo e sim com reparações, que para eles restabeleciam o equilíbrio do Cosmos.

Como o Cosmos tudo contém, o fundamento do Druidismo era a harmonia universal dos seres e das coisas. Partindo-se do princípio de que tudo e todos têm um duplo aspecto, ao se resolverem as respectivas contradições internas, chega-se à totalidade. Assim sendo, na religião celta a noção de Mal era relativa ao Mal Metafísico e não ao Mal Moral. Tais concepções levaram à amoralidade (no sentido da moral após o surgimento do Cristianismo); desta forma, ser druida não significava renunciar à carne, à matéria, visto que não havia então culpa em relação ao prazer.

Devemos salientar que os celtas eram extremamente orgulhosos de seu passado e de sua fé, e que mesmo a cristianização da Irlanda não foi impedimento para a conservação de antigas tradições pagãs. Torna-se então claro, para o leitor mais atento, que alguns heróis dos muitos mitos e lendas, ainda hoje conhecidos, eram provavelmente antigos deuses, evidentemente camuflados pela ética cristã dos posteriores responsáveis pela elaboração dos textos.

Para além das fronteiras do Império Romano, algumas comunidades celtas resistiram ao sufocamento cultural e mantiveram suas instituições e modo de vida. Por este motivo, mesmo após cristianizadas, persistiram em cultivar várias características pré-cristãs, apesar das óbvias mudanças nas crenças e rituais.

A arte de contar estórias constituía a principal diversão para todas as classes sociais. Segundo John Sharkey a função primeira do mito é explicar o inexplicável; nesse sentido poucos foram os povos que utilizaram o mitológico, o sobrenatural, o onírico e o imaginário como os celtas o fizeram. Assim sendo, devemos ter em mente que a chave para compreender o mundo celta está em fundir o espiritual, o físico e o imaginativo, fusão esta que, aliás, é prática constante na arte e na literatura celtas. Vale ainda lembrar que a falta de barreiras entre o real e o imaginário e a possível interpenetração entre os mundos são duas das principais características da arte e da literatura celtas.

Devido à transmissão de seus conhecimentos através da oralidade, acentuou-se nos celtas o gosto pela narrativa e pelo discurso artístico. A aquisição da escrita entre os celtas se deu, como já dissemos, por volta do século V d.C. e, na Irlanda, um pouco mais tarde. Mesmo assim, a tradição oral conservou muito bem, até aquele momento, os dados e elementos da cultura celta. Na literatura os exemplos mais antigos de escrita são de poesias do século VI d.C. e vêm da Irlanda.

A Grã-Bretanha não possui uma literatura tão remota quanto a Irlanda, mas no País de Gales verificamos uma tradição oral tão fortemente desenvolvida quanto a irlandesa, com a presença de poetas profissionalizados e temas celtas. As estórias mitológicas irlandesas,  que estão entre os registros mais antigos que possuímos, chegaram até nós de forma coerente e acabada. Infelizmente não podemos dizer o mesmo da mitologia galesa. O único grupo de estórias galesas coerentes está no Mabinogion, e foram registradas apenas muitos séculos depois dos primeiros registros irlandeses. Sendo assim, podemos dizer que as estórias irlandesas pertencem ao período heróico, enquanto as galesas, que chegaram até nós com uma roupagem medieval, são um produto da Idade Média cristã. Entretanto, tal é a conservação do mundo literário galês, que apesar das óbvias influências inglesas e normandas que podemos algumas vezes detectar, estas estórias permaneceram substancialmente celtas.

Os manuscritos mais antigos de poesia galesa são Black Book of Camarthen (séc. XII) e Book of Taliesin (de 1275). Em prosa encontramos o White Book of Rhydderch, escrito por volta de 1300-25, e o Red Book of Hergest, produzido entre 1375- 1425. É exatamente sobre o conteúdo destes dois últimos que repousa o nosso interesse.

O Red Book of Hergest é um manuscrito do século XIV que se encontra no Jesus College, em Oxford. Apesar de conter um rico e variado material da literatura galesa em verso e prosa, de valor inestimável, esteve praticamente inacessível ao público em geral e até mesmo aos estudiosos até meados do século XIX. Entretanto, este quadro foi alterado em 1849 quando Lady Charlotte Guest publicou o texto em galês e a tradução em inglês  de onze contos do Red Book, numa edição em três volumes com numerosas notas explicativas. Mais tarde, em 1877, Lady Charlotte publicou uma edição condensada contendo apenas a tradução em inglês sem o texto galês, e com as notas originais condensadas. Além dos onze contos originais do Red Book, ela incluiu, nas duas edições, o conto de Taliesin, pertencente a um manuscrito posterior ao Red Book of Hergest.

No País de Gales, em princípios da Idade Média, os bardos formavam uma classe, dividida em níveis ou graus, que se dedicava a uma arte em especial. A fim de pertencer a este grupo, o candidato a bardo deveria passar por um severo e bem definido treinamento literário e provar ser um mestre das antigas tradições e conhecimentos. Segundo Lady Charlotte Guest, este aspirante a bardo era chamado de mabinog. Os conhecimentos que ele deveria adquirir eram, de maneira geral, representados pelo mabinogi, que era ao mesmo tempo um curso e uma fonte de rendas, já que era costume os mabinog receberem pagamento para recitar os contos e estórias que sabiam. Assim sendo, Lady Charlotte Guest utilizou o termo Mabinogion (entendido como plural de mabinogi) como título geral para os doze contos contidos em seu livro. Todas as estórias deste volume são mais antigas que o manuscrito no qual foram encontradas.

Cabe neste ponto de nossa  um esclarecimento. De acordo com Gwyn Jones (Professor de Inglês e Literatura Inglesa da University College of Wales  em Cardiff)  e Thomas Jones (Professor de Galês e Literatura Galesa da University College of Wales), Lady Charlotte Guest atribuía, juntamente com os acadêmicos de seu tempo, um significado errôneo ao termo mabinogion, qual seja, o plural de mabinogi. Tal alegação se baseia no fato de a palavra mabynnogyon aparecer somente uma vez nos manuscritos, o que pode ser atribuído a um erro do escriba. De qualquer maneira, ainda segundo Gwyn e Thomas Jones, o termo mabinogi se aplicaria apenas ao primeiro grupo de estórias dentre as onze existentes. Entretanto, embora o termo escolhido por Lady Charlotte Guest apresente um duplo equívoco, seu uso tem se mostrado conveniente; e já que está há mais de um século estabelecido, os professores Gwyn e Thomas Jones acharam desnecessário cunhar um novo termo.

O conjunto de onze estórias encontradas no Mabinogion é geralmente dividido em três grupos. No primeiro grupo, também conhecido como The Four Branches of the Mabinogi, temos os contos Pwyll Prince of Dyfed, Branwen Daughter of Llŷr, Manawyddan Son of Llŷr e Math Son of Mathonwy. Essas estórias são em sua essência pré-cristãs e pré-históricas, e são, indubitavelmente, sobrevivências da antiga mitologia celta. Em sua presente forma elas são quase-mitológicas, todavia, a ação do tempo e as inevitáveis mudanças abrandaram em muito o elemento mítico, sem entretanto suprimi-lo completamente. Na verdade o conteúdo destes contos é muito mais antigo que sua forma, e apesar de neles os deuses terem deixado de ser deuses, ainda assim não se transformaram em homens comuns, oferecendo-nos então estórias repletas de magia e ilusão.

O segundo grupo, geralmente denominado The Four Independent Native Tales, é composto por quatro estórias. As duas primeiras são dois breves contos: The Dream ofMacsen Wledig e Lludd and Llefelys, que nos remetem à administração romana da Bretanha, e possuem um substrato histórico. Logo percebemos que, se nas estórias do primeiro grupo o narrador luta para dar ao mito uma realidade histórica, nestas aqui, porém, sua imaginação e fantasia têm que lidar com pessoas reais. É importante mencionar que as estórias deste segundo grupo pertencem a um período intermediário entre a criação das primeiras estórias   e o crescimento da lenda Arturiana na literatura galesa. Neste sentido, as duas outras estórias que compõem este segundo grupo, Culhwch and Olwen e The Dream of Rhonabwy, apresentam Arthur como um típico cavaleiro bretão, a ação se desenrola na Bretanha e todo o espírito da narrativa é completamente celta. Supõe-se ainda que estas narrativas assumiram a forma apresentada no século XII, antes de a lenda Arturiana sofrer influência normanda.

No terceiro grupo, normalmente intitulado The Three Romances, encontramos  The Lady of the Fountain, Paredur Son of Efrawg e Gereint Son of Erbin. Neles Arthur e seus seguidores se tornaram cavaleiros normandos. Nestas três estórias a cavalaria e o cavaleiro errante são componentes essenciais, enquanto que nas primeiras eram aspectos apenas ocasionais e secundários. Neste momento a lenda Arturiana já havia permeado a literatura européia, e este fato se refletiu na versão galesa.

Como vimos os textos do Mabinogion apresentam uma notável variedade dentro do padrão medieval. Tal diversidade, porém, não se contrapõe à existência de uma substancial unidade entre os componentes deste corpus literário que nos propomos  discutir. Percebemos então que esta unidade se faz presente na obra através dos temas e do meio social e literário que a forjaram.

Nas palavras de Tzvetan Todorov:

A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança, o inexorável curso dos acontecimentos, a interminável narrativa da “vida” (a história), onde cada instante se apresenta pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força tenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem, ... A narrativa nunca obedece a uma ou a outra força, mas se constitui na tensão das duas...[1]

Pensamos que esta formulação expressa por Todorov relata com fidelidade o que ocorre em grande parte das narrativas, mais ainda, vemos que tal descrição corresponde perfeitamente às narrativas medievais. Nesse sentido, nossa intenção é propor uma leitura das narrativas encontradas no Mabinogion, utilizando, além dos conceitos estabelecidos por Todorov  sobre o fantástico e o maravilhoso, os estudos de Jacques Le Goff sobre o maravilhoso medieval e de Hilário Franco Júnior a respeito das utopias medievais.

Sabemos que num primeiro momento, nossa proposta pode parecer repetitiva, pois alguns estudiosos já trataram da ocorrência do maravilhoso nos textos do Mabinogion. Entretanto, verificamos que praticamente a totalidade dos estudos existentes sobre estes textos se detém na investigação e posterior explicação de suas fontes/origens celtas. É exatamente aí que reside o diferencial de nossa proposta de pesquisa. Que as narrativas do Mabinogion apresentam uma origem celta é indiscutível, que podemos traçar, em cada um dos textos, a filiação dos elementos maravilhosos então apresentados a esta ou àquela tradição celta é inegável. O que pretendemos é dar um passo mais adiante, ou seja, nossa intenção é relacionar a ocorrência destes elementos maravilhosos de origem celta com o conjunto de elementos míticos e utópicos que compunham então o imaginário medieval como um todo.

A relevância desta pesquisa se mostra de maneira bastante clara, se considerarmos que há um lapso razoável de tempo entre a formação desse conjunto de narrativas (sua composição oral) – que no caso de alguns textos remonta à segunda metade do século XI – e a forma final a que temos acesso encontrada nos manuscritos (século XIV). Sendo assim, é fundamental, neste momento, estabelecer uma relação entre os elementos geradores deste maravilhoso de origem celta e os elementos políticos, religiosos, míticos e utópicos que co-participam da posterior elaboração da forma escrita dos textos do Mabinogion.

Para tal, pretendemos, através do entrecruzamento dos textos de Todorov, Le Goff e Franco Júnior, estabelecer um diálogo maior, qual seja, um diálogo com as narrativas do Mabinogion. A partir do conceito de maravilhoso (sobrenatural) estabelecido por Todorov, dos aspectos do maravilhoso medieval, apresentados por Le Goff e do estudo sobre as utopias medievais feito por Franco Júnior, pretendemos apresentar uma leitura dos textos do Mabinogion. Isto é, nos propomos estabelecer um diálogo entre estas narrativas medievais de origem celta e este corpus teórico, para daí buscar extrair uma tipologia dos elementos geradores do maravilhoso e do utópico nestes textos.



[1] TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas (pp. 21 – 22).

 

 

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