As máscaras pessoanas: um convite à liberdade

como caminho da interpretação

           

Não há que se tentar impor como se deva ler ou interpretar uma obra – a de Pessoa ou a de quem quer que seja. A leitura, afinal, deve ser um ato de liberdade. Mas, quando se diz que a leitura deve estar baseada na liberdade, sem indagar mais a fundo o que ela significa, não estaremos correndo o risco de conferir a quem lê – e dependendo de como lê – um poder desmesurado em detrimento da obra? Tal poder não seria passível de chegar a sufocar ou silenciar o que ela teria a dizer se não se usasse (e, a partir da modernidade, freqüentemente se abusasse) de uma liberdade que, em última instância, não se refere senão a quem interpreta? É para esse perigo que nos chama a atenção Hans-Georg Gadamer, em seu livro Verdade e Método.[1]

            Neste tratado fundamental sobre a interpretação, o autor alemão parte de uma perspectiva ontológica a respeito da linguagem e da compreensão humanas: o homem não tem linguagem, ele é linguagem. Por isso o entendimento não se dá com, mas na linguagem. Deste fato decorre que se mostra infundada a expectativa de um conhecimento objetivamente verdadeiro. Este pressuporia que a linguagem fosse apenas um instrumento nas mãos do homem – instrumento capaz de criar uma distância entre aquele que conhece e o que é conhecido –, e não o meio que o envolve por inteiro, dentro do qual ele está imerso. Heidegger, autor com quem Gadamer empreendeu um frutuoso diálogo, chega a afirmar que o homem é uma promessa da linguagem.[2]

            Partindo-se de uma visão ontológica do universo lingüístico, vê-se diretamente afetado o ato de interpretação: a verdade deve ser concebida como uma construção que se opera dentro da linguagem, jamais como um dado “objetivo”. Por este motivo, como sustenta Gadamer, a verdade não pode se doar àquele que se aproxima da obra com esquemas metodológico-analíticos previamente montados, ancorados nas “certezas” da subjetividade.[3] A pretensão de se chegar a uma interpretação objetivamente válida a respeito das coisas está fundada no fato do sujeito ter estruturado previamente o método com que as interroga. Elas são, assim, “constrangidas” a responder segundo os critérios colocados pelo método de que o sujeito é portador, o que faz com que, em realidade, o método fale, não as coisas. Assim procedendo, aquele que se auto-instituiu como sujeito nada mais fez do que objectualizar a coisa, papagueando o que o método diz com a pretensão absurda de estar dizendo “a verdade” objetiva. A uma “liberdade” assim exercida, há que se convir, melhor poderia se denominar violação...[4]

            Impõe-se, então, a pergunta: que liberdade seria essa que não incorreria na desmesura da mera auto-referenciação a um intérprete que da obra se aproxima já repleto de esquemas previamente montados com os quais pretende “analisá-la”? Sem dúvida, uma que levasse em conta a obra, que a deixasse falar, que se abrisse para a escuta do que ela tem a dizer, que se oferecesse ao diálogo, em suma: que respeitasse sua peculiar experiência poética do real. O real não é algo que se defina por si mesmo, mas um constructo, e as grandes obras são aquelas que efetuam radicais experiências do que seja a realidade. De fato, a obra decisiva é aquela que reconstrói a verdade e a realidade para além da vigência do senso comum e do institucionalizado, os quais insistem em tomá-las como substancialidade, isto é, como dados em si mesmos subsistentes. A verdade, entendida como processo de desvelamento (alétheia), e não como conhecimento preciso, correto e universalmente válido (orthótes), só pode ser alcançada através do diálogo. Este, como sua origem grega indica, é um colher ou juntar (léguein) o que está separado (diá-), ou seja, um ato de reunião entre os que estão desunidos, como modernamente se encontram o sujeito contraposto ao objeto.

            Esta abertura para a escuta e o diálogo subjaz ao próprio campo etimológico da palavra liberdade. No radical latino lib- estão implicadas palavras tais como libatio (cerimônia sacrificial em que o sacerdote provava o vinho e depois o lançava ao fogo) e Líber (o Diónysos romano, deus do vinho, por extensão o próprio vinho), as quais, por sua vez, remetem à forma grega léibo (chorar, ter os olhos marejados, derramar gota a gota, especialmente o vinho para a libação aos deuses). A liberdade, originalmente considerada, não é, portanto – tal qual comumente se costuma entender –, o poder daquele que diz e faz o que bem entende e quer. Tal afã remonta ao fato do homem moderno ter passado a tratar as coisas (e também o homem) como objetos dessacralizados a partir do esboroamento da mundivisão medieval, e, neste movimento, não só objectualizou-as, como se auto-consumou e se auto-legitimou como sujeito. Assim procedendo, passou a construir e a projetar a realidade unicamente a partir de si mesmo, o que vem a ser uma forma extremada de subjetivismo, isto é, da redução do mundo à atividade do sujeito.[5] Tampouco se refere a liberdade à autonomia do assim chamado “sujeito”, constructo que fundamentou a modernidade histórica desde os seus albores, e que viria a redundar na aspiração política das liberdades do indivíduo quando da consumação do mundo burguês.

            Como sua origem indica – associada que está ao arrebatamento propiciado pelo vinho em ritos sacrificiais –, a liberdade é um ékstasis, um êxtase no sentido de se colocar para fora (ek-) de onde ou como se está postado ou fixado (stásis). Quem participa de modo efetivo de um rito sacrificial não pode se deixar fixar ou engessar em uma suposta subjetividade, sob pena de não experimentar os símbolos atuando e transformando sua vida: o que é próprio do simbólico é facultar uma experiência, considerada esta – frise-se – etimologicamente, isto é, ir para fora (ex-) do limite (péras) do estritamente individual. Experimentando o símbolo, ao homem é dado alcançar uma compreensão mais lata e integrante com a totalidade das coisas. Por isso Eudoro de Sousa afirma que o simbólico transporta “o sentido do todo, que faz, precisamente, com que as partes sejam partes integrantes, ou melhor, integradas neste todo”.[6] Esta conotação se deixa entrever na palavra grega symbállo, que designa o ato de lançar ou colocar junto, reunir, e também o ato de interpretar, inclusive as predições oraculares.

            Para que os símbolos desabrochem em sua plena efetividade, há que se estar aberto para o que eles têm a dizer. Sobre esta “abertura” para o simbólico Fernando Pessoa chamou a atenção na “Nota Preliminar” de Mensagem. Falando dos cinco atributos que o intérprete deveria possuir – simpatia, intuição, inteligência, compreensão – “sem os quais os símbolos serão pra ele mortos, e ele um morto para eles”, culmina, em suas próprias palavras, com o quinto e “menos definível” deles:

 

   Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo. [7]

 

            Este quinto requisito para a interpretação do simbólico, descrito paradoxal e ironicamente também de modo simbólico, aponta para a inexauribilidade do símbolo, o qual jamais se esgota na discursividade analítica de um pretenso sujeito. A palavra poética se consuma simbolicamente, e não como signo, tal qual o entende a semiótica. Esta reproduz, sem o saber, nas cisões significado-significante, forma-conteúdo, sujeito-objeto –, as cisões metafísicas platônica, entre inteligível e sensível; aristotélica, entre causa formal e material; e cartesiana, entre res cogitans e res extensa. A palavra poética, por ser simbólica, apresenta-se para o intérprete como questão permanentemente em aberto. E, justamente porque nunca se exaure ou cessa de estar em aberto, revelando e ao mesmo tempo velando aquilo que não se pode dar senão como mistério, exige do intérprete a ética do mistagogo (mystagogós, o iniciado nos mistérios, guia ou cicerone nos templos), capaz de resguardar a questão que o símbolo vela sempre de modo ambíguo e inexaurível. São propriamente a ambigüidade e inexauribilidade do simbólico o que permite que façamos a cada vez novos desvelamentos quando o experimentamos, ou seja, que partamos para novas construções do real e da verdade. Não nos fala Álvaro de Campos, no poema “Psiquetipia”, a respeito dessa inesgotabilidade e abertura do simbólico, cuja irradiação, nas palavras do poeta, “não terminou, nunca terminou”?

 

Símbolos. Tudo símbolos...

Se calhar, tudo é símbolos...

Serás tu um símbolo também?

 

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas

Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.

Pessoas independentes de ti...

Olho-as: também serão símbolos?

Então todo o mundo é símbolo e magia?

Se calhar é...

E por que não há de ser?

 

Símbolos...

Estou cansado de pensar...

Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.

Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

 

Meu Deus! e não sabes...

Eu pensava nos símbolos...

Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...

It was very strange, wasn’it?”

Awfully strange. And how did it end?”

Well, it didn’t end. It never does, you know.

Sim, you know... Eu sei...

Sim eu sei...

É o mal dos símbolos, you know.

Yes, I know.

Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?

Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?

Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...[8]

 

            Quem está aberto para o que o outro tem a dizer já não se pode considerar encerrado nos limites pré-fixados de um sujeito contraposto a um objeto. Ao contrário, encontra-se em deveniência, em transformação, experimentando (sempre no sentido etimológico) o poético como força plasmadora, capaz de transformar a sua vida. Ouvindo o que o outro tem a dizer, e doando-se à experiência na medida em que se abre para escuta, temos a consumação ética de um verdadeiro diálogo. Vista nesta perspectiva, a liberdade no ler ou interpretar seria o movimento pelo qual se sai de si mesmo através de um diálogo que se abre para a escuta das questões de que a obra é portadora. Jamais uma auto-referenciação a um intérprete que, ao arbitrariamente se constituir como “sujeito” a partir da modernidade cartesiana, supõe estar dotado de um instrumental metodológico eficaz de análise, o que pretensamente lhe garantiria chegar a uma verdade “objetiva” a respeito daquilo sobre o que se debruça. Aliás, o próprio termo método (méthodos), constituído da preposição metá e de hodós (caminho), indica que a interpretação não pode estar calcada em uma estruturação instrumental prévia: metá, após a proeminência que o método analítico de cariz subjetivista veio a ganhar, passou a designar principalmente o que está “atrás” ou “antes”, isto é, “o que estrutura previamente o caminho”. Mas metá, originalmente, também quer dizer “através” ou “entre”. O método constitui, assim, o que se dá “através do caminho”, “no caminhar entre”, ou seja: o sentido que se constrói poeticamente ao longo do caminho, na articulação que se opera entre os que se oferecem a um autêntico diálogo. O interpretar igualmente guarda uma conotação dialógica: interpretatio, constituído dos termos inter (“entre”) e pretium (“preço”, “valor”, “prêmio”, “recompensa”), é o sentido com que se é agraciado na articulação entre os que estabelecem uma relação efetivamente dialogal. Interpretar é fazer o caminho, a travessia, a experiência – lembramo-nos agora de Guimarães Rosa – para a “terceira margem do rio”. Jamais a fixação obsessiva em apenas uma das margens: a das certezas de uma suposta subjetividade.

            A obra de Fernando Pessoa – e isso constitui um dos aspectos mais radicais do fingimento que se consuma na poética da despersonalização – põe em xeque a modernidade ao denunciar o sujeito como um mero constructo, na verdade um simulacro...[9] Não se lê na “Tabacaria” uma referência direta e irônica ao cogito cartesiano?

 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! [10]

 

            E o que dizer do estilhaçamento do assim chamado sujeito que se assiste nas grandes “Odes” de Álvaro de Campos, assim como o incessante convite à libertação extática, a exemplo deste excerto da “Passagem das Horas”, do mesmo autor?

 

Sentir tudo de tosas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,

Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,

E amar as coisas como Deus.[11]

 

            Desvencilhando-se das muradas do sujeito através da poética da despersonalização – tanto o ortônimo quanto os heterônimos são máscaras, ou seja, não expressam uma suposta subjetividade do autor –, Fernando Pessoa nos legou uma obra multifacetada, que concita o intérprete à ética do diálogo com as questões que nela habitam. Neste diálogo, ao leitor é ofertado o exercício de uma liberdade que não é a vã confirmação de alguém que se encerra nas redomas da subjetividade, mas, ao contrário, um convite a se pôr em deveniência, a se transformar, a se regenerar. Regeneração que reverbera de modo tão intenso no poema “Liberdade”, de Fernando Pessoa do Cancioneiro – apelo vigoroso à libertação do peso de um intelectualismo subjetivista incapaz de se doar ao mistério das coisas e que termina por estiolar a própria vida:

 

 

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada.

Estudar é nada.

O sol doira

Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa...

 

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

 

Quanto é melhor, quando há bruma,

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

 

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

 

O mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

 

Regeneração quer dizer “retorno ao génos”, retorno à origem. Se cada um de nós possui uma existência singular, jamais igual à outra, o destino de todos os homens sempre vigora na mesma dimensão ontológica e originária. Esta dimensão é o poético: o destino humano de ter de se edificar, de se plasmar ao longo da existência, em uma palavra – e se nos é permitido o neologismo –, de se “ficcionalizar”, no sentido originário deste termo: fingere (moldar a terra), moldar o barro de que somos feitos. Fingere, que também dará origem à palavra “fingidor”, não significa evidentemente “dizer mentiras” no famoso verso pessoano “o poeta é um fingidor”, mas plasmação, forjamento do que somos a partir do poético.

Como visto, não é só o poeta que é um fingidor: todos nós o somos, poetas e fingidores, desde que nos abramos para a experiência e recusemos a covardia do imobilismo. A mascarada pessoana nos recorda, assim, que estamos lançados na originária liberdade do poético: nossas ações – o que fazemos ou não fazemos – são o que decide o que nos tornamos no deveniente rio da vida. Por isso a obra pessoana é também um grandioso convite para que sejamos os poetas e fingidores de nosso próprio destino.



[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1998.

[2] HEIDEGGER, Martin. “A linguagem” in A caminho da linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 10.

[3] Quando falamos em “certezas” da subjetividade estamos nos referindo, é claro, à viragem filosófica empreendida por Descartes (1596 – 1650). No conhecido Discours de la méthode, o filósofo francês, partindo da dúvida metódica, chega a uma primeira intuição fundamental, da qual não se poderia duvidar, e que está expressa na famosa assertiva “cogito, ergo sum”. Se, no seu entender, pode-se duvidar da existência das coisas, não se pode duvidar da existência do sujeito que pensa. O método analíco seria o meio para se chegar às “idéias claras e distintas”, que corresponderiam à verdade objetiva das coisas. Por tais proposições, o filósofo pode ser considerado um elemento-chave da tônica gnosiológica da modernidade, marcada pela fragmentação analítica do discurso científico e pela projeção subjetivista do mundo.

[4] Quando caracterizamos como violadora esta “liberdade” que conduz à objectualização das coisas, nos veio à mente, de imediato, o termo grego hýbris, que significa “desmedida”, “orgulho”, “impetuosidade”, “fogosidade”, e até mesmo o ultraje ou a violação de mulher ou criança. Aos que ainda não meditaram suficientemente sobre os riscos que residem na redução do mundo à atividade do sujeito metodologicamente municiado, fica um alerta emblemático e milenar: a reviravolta (metabolé) trágica de Édipo, quando o herói, de largamente ditoso, cai no mais terrível infortúnio –, também decorre de sua incorrência na hýbris. Édipo certamente ainda não é “sujeito” no sentido moderno do termo, mas não deixa de ser aquele que incorreu na desmesura de acreditar que tudo sabia, que tudo podia controlar. Ele decifra o famoso enigma (“Quem tem quatro pés de manhã, dois à tarde e três à noite?”), respondendo à Esfinge que era o homem. Mas a sua resposta, apesar de correta, era abstrata – como aliás também o é o conhecimento científico –, e passava ao largo da concretude sempre misteriosa das coisas. Aquele que levou a Esfinge ao suicídio e que foi glorificado em Tebas conhecia abstratamente os pés dos homens (o que os liga à terra), mas desconhecia seus próprios pés: Oidípous, “o de pés inchados”, atado pelos calcanhares quando nascera para ser abatido no monte Citéron. Esta é a grande ironia trágica que decorre de sua hýbris: aquele que se guiava só pela luz termina descobrindo que na verdade era um cego; aquele que fora aclamado como rei termina se tornando um mísero mendigo errante.

[5] De tal construção e projeção da realidade, feita sob color subjetivista, não adviria o fato da modernidade ter passado a encarar a História como um permanente projeto de resolução dos inúmeros “problemas” que lhe são inerentes? O apelo irresistível de incrementação científica, tecnológica e industrial, de planificação social, de controle genético, entre tantos outros, são apenas alguns dos problemáticos apelos para cuja resolução a modernidade mobiliza o homem e a natureza, reduzindo-os à mera condição de recursos e instrumentos – isto é, objetos – a serviço da superação dos impasses que a caracterizam...

                Não bastasse o controle ideológico gerado por tal situação – pois que a humanidade se torna uma eterna refém dos “problemas” em que está mergulhada –, assistimos cada vez mais ao acirramento de uma tecnolatria que se expressa na crença ilusória de se poder encontrar algum tipo de libertação de tal estado de coisas na ciência e na técnica. Mas, entregar a elas a solução dos problemas da humanidade é como entregar ao lobo a tarefa de cuidar do galinheiro. Estas filhas exaltadas do subjetivismo, que reduzem tudo o que tocam a objetos, atuam como conhecimentos de cego e perigoso poder manipulador, pois se constituíram a partir da fragmentação da realidade que acompanhou a eclosão da modernidade. Com isso perderam a noção da totalidade das coisas e, sobretudo, liberaram-se das eventuais constrições que poderiam advir da reflexão de natureza ética. Como dizem Adorno e Horkheimer, na crítica que fazem ao iluminismo, e referindo-se ao conhecimento característico das sociedades modernas, a “técnica é a essência desse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou imagens nem a felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho dos outros, o capital. Por sua vez, as inúmeras coisas que, segundo Bacon, ainda estão guardadas nele não passam de instrumentos: o rádio, enquanto impressora sublimada, o avião de combate, enquanto artilharia eficaz, o telecomando, enquanto bússola de maior confiança. O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e sobre os homens. Fora disso, nada conta. Sem escrúpulos para consigo mesmo, o iluminismo incinerou os últimos restos da sua própria consciência de si” (ADORNO; HOKHEIMER. Conceito de Ilunimismo. Col. “Os pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, p. 19).

                Não é preciso muito esforço para compreender porque temos hoje entregue, pelo mundo afora, o poder à tecnocracia que, com seu correspondente culto tecnólatra, tanto tem ameaçado de instrumentalização o homem, a linguagem e a natureza. Para esta ameaça chama a atenção, em toda a sua obra, não só Heidegger, mas tantos outros grandes autores comprometidos com a reflexão sobre os destinos da contemporaneidade, dentre os quais gostaríamos de citar Ernesto Sábato em livro que já fala só por seu título: Hombres y engrenajes...

[6] SOUSA, Eudoro. Mitologia I: mistério e surgimento do mundo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 59.

[7] PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, p. 69. A obra será citada, a partir de agora, com a abreviação OP.

[8] OP, p. 387.

[9] Ao dizermos que os sujeito é um constructo ou simulacro, não podemos deixar de nos reportar ao romance O estrangeiro, de Albert Camus. Lembra-se o leitor de que, no julgamento de Meursault por homicídio, assiste-se a um processo de conversão de uma personagem absurda – como absurdo é o seu gesto, praticado “por causa do sol” – em personagem impregnada de sentido e motivações morais? Os julgadores, promotoria e testemunhas vão compondo, vão construindo, ao longo do processo judicial, um sujeito chamado Meursault – um simulacro, porque inexistente, espécie de síntese fictícia em que se projetam os valores sociais vigentes, e sobre o qual há de incidir a pena capital... Seria imotivado concluir que o sujeito é o constructo através do qual a sociedade moderna busca assegurar a nova ordem por ela inaugurada?

[10] OP, p. 363.

[11] Idem, p. 347.

 

 

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