Santo Agostinho: a narrativa de si e a filosofia

 

Hudson dos Santos Barros (Mestrando / UFRJ)

I - Introdução

           

Em Milão, Agostinho teve uma experiência decisiva em sua vida: a conversão. No início do livro VIII, de Confissões[1], ele narra sua dificuldade pessoal em abraçar a fé cristã. Nesse ponto da narrativa, o jovem professor de retórica já abandonara o maniqueísmo e escutava com atenção os sermões de Ambrósio. Era um momento de transição, de abandono dos velhos hábitos para um definitivo engajamento na busca e vivência da verdade revelada. Agostinho lutava contra si próprio, submetia à prova sua capacidade de optar, de viver o que queria, mas que não podia. Aparece também aí o tema central de Confissões: o livre-arbítrio. É na narração dessa luta espiritual que o filósofo mostra a relação entre o indivíduo e a liberdade, a ruptura e a escolha, o passado e a ação presente, a fé e a razão.

            Para tratar do conceito em questão, o bispo de Hipona escreve sobre si. Em Confissões, a escrita está voltada ao conhecimento do sujeito, de suas ações, pensamentos e motivações. A liberdade do indivíduo é debatida através da narração dos fatos, da indagação sobre estes e da proposição produzida pela experiência de vida.

Essa escrita de si está inserida em uma tradição já presente nos estóicos romanos, a citar Sêneca e Marco Aurélio.[2] Ao contrário dessa tradição, Agostinho inaugura uma nova relação entre a escrita de si (mais especificamente, a narrativa), a filosofia e a moral. Ao tematizar o livre-arbítrio, ele confere a essa escrita uma amplitude filosófica maior que a dos estóicos e, ao mesmo tempo, empreende discussões que apenas serão realizadas por Descartes no século XVII. Em Confissões, Agostinho consagra paralelamente a arte literária, a proposição e a pedagogia religiosa.

Portanto, é partir dessas considerações que este estudo pretende mostrar algumas características entre a tradição estóica e agostiniana no que concerne ao desenvolvimento histórico dessa escrita voltada à construção da subjetividade. Não se trata de apresentar um quadro evolutivo, mas de diferentes elaborações de um modo discursivo e suas implicações filosóficas e morais no percurso da história.

 

II – O percurso histórico escrita de si

 

Antes de Agostinho, a escrita de si não contemplou uma discussão sobre o livre-arbítrio; o objetivo principal era o aperfeiçoamento dos atos em articulação com as regras da razão universal. Era prática corrente dos estóicos escrever cartas de exortação aos amigos. Muitos desses textos continham algumas referências ao filósofo que enunciava os conselhos e reflexões. Era uma parcela autobiográfica que conferia maior credibilidade ao que se escrevia ou falava, seja para mostrar a fidelidade aos ensinamentos, seja na defesa de acusações. O discurso proferido era do dever e da boa conduta, da reflexão cuidadosa baseada em um código implícito de verdade moral. Entretanto, era comum acusações aos estóicos que aparentemente não seguiam seus próprios códigos. Em A vida feliz, por exemplo, Sêneca se defende daqueles que esbravejam contra suas riquezas, “vaidades” e boa alimentação:

Por que cultivas o campo além  do necessário e não te alimentas segundo as regras que apregoas? Por que tanta elegância nos teus móveis? Por que se bebe em tua mesa um vinho mais velho que tu e tua casa é tão luxuosa? Por que plantaste árvores apenas para aproveitar-lhes a sombra? Por que tua esposa ostenta a riqueza da estirpe nos colares e teus servos vestem-se ricamente? Por que em tua casa prepara-se artisticamente a mesa e a prataria não é disposta ao acaso mais usada num cuidadoso serviço as ordens de um mestre de cerimônias que distribui iguarias?[3]

           

O texto é uma exortação de Sêneca a seu irmão Gallione; é, igualmente, uma apologia ao epicurismo e uma crítica aos falsos epicuristas. No tratado em questão, o filósofo aconselha seu irmão a uma autonomia de pensamento. Ele deseja que Gallione consiga saber refletir, para assim tomar suas próprias decisões. Sêneca critica a passividade da multidão e a falta de opinião. É necessário, segundo ele, pensar por si próprio, não se deixar conduzir, realizar o bem e não o que é freqüentemente feito. Essa exortação à independência do pensamento liga-se também a um domínio do indivíduo sobre si. Este deve buscar um bem real e não um bem temporário. A tranqüilidade e a liberdade são o resultado de uma vida desligada dos prazeres, do poder, das riquezas, da ostentação, da luxúria, da gula e dos males em geral. É necessário seguir a natureza, isto é, reconhecer e praticar a virtude em detrimento do vício para ser feliz: “Entretanto, como todos os estóicos, saibas que sigo a natureza: é sábio não e distanciar dela e obedecer a seu exemplo e lei.”[4]. Esse é o preceito para aqueles que desejam a paz e a harmonia, visto que a sujeição pelo prazer causa dor. A indiferença frente a este concede ao filósofo um espírito libertário, altivo, intrépido e constante. Por fim, a obediência à natureza o leva à felicidade e o torna senhor de si próprio.

Para que esse domínio ocorra é preciso utilizar bem a razão. Tal uso implica um autoconhecimento e uma certeza de juízo. De acordo com Sêneca: “Ninguém é feliz sem ter sadia a mente, e não pode tê-la sã quem busca, em vez do melhor, aquilo que lhe causará dano.”[5] A prática da virtude está relacionada ao pensamento reflexivo. Este é o primeiro passo para a aquisição de uma saúde moral. É a razão que diferencia os homens dos animais e o torna superior. Enquanto estes são guiados pelo estômago, o ser humano é aquele que toma possa de bens superiores. Para o estóico, apenas o homem pode ser feliz, uma vez que é o único que pode saber-se como tal. Ele pratica a virtude guiado pelo pensamento e, assim, alcança o bem verdadeiro.[6]

Do capítulo I até o XVI, o filósofo realiza um conjunto de reflexões e exortações sobre a felicidade. No capítulo XVII, Sêneca expõe as acusações contra ele e nos seguintes capítulos defende-se. Em seu discurso, ele legitima a posse de seus bens enfatizando sua conduta em relação a eles. Diz: “De minhas posses, não serei protetor avarento nem pródigo esbanjador.”[7] Completa: “Comerei e beberei comedidamente para satisfazer a exig6ncia natural do estômago, não para empanzinar-me.”[8] O discurso que profere contra seus inimigos (o texto acaba deixando de ser diretamente uma série de conselhos a Gallione) pauta-se na concretização da ação em meio às riquezas. Estas não são más, desde que não levem o indivíduo a sujeição pelo prazer. Segundo o argumento, a abundância de bens materiais oferece ao sábio mais formas de exercício que a pobreza: “...na riqueza, a temperança, a liberalidade, a diligência, o equilíbrio e a munificência encontram vasto campo de ação.”[9] O que diferencia o filósofo não é a ausência de posses, mas sua tentativa em praticar a virtude e evitar o prazer, mesmo que não tenha sucesso nessa empreitada. O que importa é sua relação com esses bens, sua desobrigação com estes, sua iniciativa em alcançar a sabedoria: “Desiste, pois, de proibir o dinheiro aos filósofos: jamais alguém condenou a sabedoria à pobreza. O filósofo pode possuir riquezas desde que não sejam produtos de roubo, nem venham manchadas de sangue ou colhidas com o fruto de injustiça.”[10]

Ao escrever sobre sua vida, Sêneca visa a pregação moral baseada no bom uso da razão. Seu objetivo não é dizer que possui riquezas, tampouco se exaltar. Ele reflete sobre a vida e seus acontecimentos e se defende daqueles que desvalorizam seu pensamento. Ao escrever sobre si, ele detalha ainda mais sua proposta filosófica, proposta esta vinculada a uma ação pedagógica. No texto em questão, seu pensamento é validado enquanto instância realizadora de mudança. Suas máximas legitimam-se na escuta na outro, na atenção deste e, principalmente, na vontade do filósofo que seu amigo as pratique.

Cabe dizer que, diferentemente do cristianismo, o estoicismo não possui uma lei escrita, nem uma autoridade doutrinal única. Há, ao contrário, um código implícito, um conjunto de deveres a serem cumpridos e reflexões de diferentes pensadores acerca da realidade. Deve-se viver segundo a natureza, conforme dito acima, esta é a lei. Com essa máxima, o benefício a ser alcançado não é o de uma vida futura transcendental, mas sim, a apátheia, uma tranqüilidade de espírito para o bem viver. Isso não implica dizer que o cristianismo desvalorize a validade de sua moral para este mundo. O que se quer ressaltar aqui é que as exortações estóicas estão ligadas às necessidades humanas do mundo físico.

Outra diferença significante é o fato de que ao falar sobre si, os estóicos não empreendem uma investigação interior, uma hermenêutica de seus desejos e desvios. Em seus textos, a escrita de si se assemelha a um processo administrativo em que a rememoração das regras serve para um ajustamento dos atos. Estes é que são o foco da memória, e não os pensamentos[11] Os fatos passados são avaliados em relação aos códigos morais, seja por meio de uma curta exposição autobiográfica ou de um exame da consciência;  ao contrário da tradição cristão do século IV, não há, nesse exame ou exposição, uma tentativa de revelação profunda da individualidade através do contraste da vida passada (em pecado) e da vida de convertido ou um exaustivo escrutínio dos pecados. A revelação que os estóicos conduzem visa ao aperfeiçoamento da conduta moral. Esta consequentemente permite uma abertura a uma capacidade de reflexão potencialmente melhor e o exercício de uma função pedagógica (na exortação dos amigos).

No livro III, de A ira, Sêneca não somente realiza uma reflexão sobre o caráter nocivo da irascibilidade. O que vai ser destacado no final são também as técnicas para se evitar a ira. Assim começa: “Realizei, Novato, uma grande tarefa; tranqüilizei a alma, ensinando-a a não sentir a ira ou mostrar-se superior a ela. Agora vou expor os meios de atenuar o mesmo vício nos outros, pois a tranqüilidade da alma que desejamos para nós devemos querê-la também para os outros.”[12] Cabe notar que é sobre si, inicialmente, que o estóico escreve. Ele se mostra como o primeiro em que os “meios” foram e são utilizados. Há, nessa passagem, uma exposição da individualidade, de seus atos e proposta de vida. Sêneca mostra que incorporou na própria vida o que ensina: ele foi sujeito e objeto de sua técnica, isto é, das ações que permitiram que sua alma alcançasse a tranqüilidade. 

A fim de expor as técnicas, o filósofo utiliza-se do discurso deôntico (“deve-se”, “é preciso”), assim como em A vida feliz. Ou seja, o texto contém um conjunto de deveres a que Novatus tem que incorporar em sua vida para evitar a ira. As reflexões de Sêneca tem como conseqüência exortações sobre as ações, as companhias, os cuidados da alma e do corpo. O uso dos “meios” para se atenuar os vícios são ajustes. A ira não se elimina, por isso, deve-se permanentemente prestar atenção nos preceitos. Há nessa relação com a natureza humana um jogo de previsões e correta aplicação das regras. A razão é aquela que rege as ações. Para a prática da virtude, o estóico tem que saber identificar as falhas, entender sua personalidade, calcular seus atos. Razão e memória, essas são as duas ferramentas que permitem o uso apropriado dos códigos morais.

Em Agostinho, a escrita de si vai além dessa pragmática do pensamento racional. Segundo diz Peter Brown[13] escreve para um público acostumado a biografias (e autobiografias); seu texto é dirigido aos servi Dei, homens de espírito cuja experiência de fé eram também conhecida. Confissões retrata o olhar de um homem de meia idade atribulado pelo peso de seus pecados, um cristão que precisa acertar contas consigo próprio: “Vós, que sois o médico de meu interior, esclarecei-me sobre o fruto com que faço esta confissão.”[14] Deus é o médico, é Aquele a quem o bispo de Hipona suplica nas constantes orações dentro da obra. Estas possuem um aspecto terapêutico, elas são uma etapa da intimidade com o criador, uma conversa cujo objetivo está no conhecimento do próprio Deus e de si. Conhecer-se para curar-se, para libertar-se do pecado, pecado esse que possui duas dimensões a serem curadas: morte e desilusão. Não se trata de um livro de reminiscências somente, mas principalmente de um envolvimento consigo, de uma tentativa de levar a experiência de Deus aos outros e curar-se.

Como mostra Brown[15], Agostinho viveu em uma época de conversões, tempo em que havia uma certa “obrigação” de justificativa e explicação dos motivos de mudanças tão radicais na vida. Existia um círculo de curiosidades onde experiências semelhantes eram divididas, falava-se ou escrevia-se sobre transformações na qualidade de vida do novo cristão. Brown destaca cristãos como Paulino de Nola, Santa Pérpetua e Santo Antônio. O historiador cita o conceito de amizade celeste de Paulino, uma amizade que se inicia nessa troca das vivências espirituais e que culmina na habitação do paraíso preparado por Deus aos seus fiéis. Nessa escrita de si, o ato de revelar-se é encaminhado por uma visão positiva da mudança: a ruptura com o saeculum traz a libertação. Há um confronto entre o passado de perigos, de mortalidade, de busca pela verdade, e o presente ao lado de Deus. Entretanto, a libertação ocorrida não isenta o fiel da prática do heroísmo espiritual, que parte do modelo do martírio, da constante atenção contra as tentações. De qualquer modo, a conversão é um fato bem sucedido, um acontecimento que afasta o cristão dos perigos do mundo e o insere na glória de Deus.

Em Agostinho, outra dimensão é focalizada: diferentemente da herança dos “amigos celestes”, sua conversão é apenas o primeiro passo para a procura de um “eu” desconhecido. Essa busca de si tem na oração e na meditação seu apoio principal. Meditar, nesse contexto, é refletir sobre o passado e a ação deste no presente, é tentar entender os limites da vontade e da ação de Deus, é, por fim, investigar a própria subjetividade na compreensão do livre-arbítrio.

Na tradição estóica, a meditação é direcionada ao discurso exortativo. As Meditações, de Marco Aurélio são um conjunto de exortações que o imperador faz a si mesmo: “De manhã cedo dize logo a ti mesmo: encontrei um indiscreto, um ingrato, um arrogante, um trapaceiro, um invejoso, um egoísta. Tudo isso advém da ignorância do bem e do mal.”[16] Assim como em Sêneca, o texto é uma escrita de si. Elaborado no período de guerra, ele é composto sob forma de notas; por isso, não há uma preocupação formal ou didática. As Meditações são escritos morais que carecem de beleza literária e refinamentos, onde imperam um caráter de familiaridade e espontaneidade. O alvo das exortações é o próprio autor: o que importa não é a qualidade literária, mas a rememoração dos atos e dos códigos e sua aplicação destes a si mesmo.

A primeira parte da obra contém um fragmento autobiográfico. Marco Aurélio lembra-se de sua herança moral familiar, pedagógica e fraternal apresentando características de pessoas que marcaram e marcam sua vida. O imperador recorda-se da boa moral e calma do avô, da modéstia de seu pai, da piedade da mãe, do caráter disciplinar do filósofo Rústico e da firmeza do filósofo Apolônio, das observações de seu professor Frontão, do amor à família e à verdade do irmão Severo, do autodomínio e desprendimento do amigo Máximo, entre outros. Trata-se aqui de um reconhecimento e agradecimento para com as referências mnemônicas de sua moral. Os dados biográficos sobre o imperador estão subordinados à reflexão moral, ou seja, estes são parte de um conjunto de pressupostos que autorizam o filósofo a proferir suas máximas. Foi graças a essa herança que Marco Aurélio está legitimado a escrever sobre como se deve agir. Sua formação foi boa, sua memória moral está bem construída: “Aos deuses agradeço: ter tido bons avós, bons pais, uma boa irmã, bons mestres, boas relações, parentes, amigos, quase tudo de bom”.[17]

Diferentemente de Sêneca, o estoicismo de Marco Aurélio confere grande valor ao civismo moral: “Pensa firmemente a cada instante, como romano e como homem”.[18] Há, nesse pensamento, um amor à ordem, à organicidade das ações humanas e do dever cívico. A relação do indivíduo consigo próprio e seu bem estar é estendida a uma prática moral coletiva. O que se apresenta na proposta do filósofo-imperador não é apenas o domínio de si. Este vincula-se a felicidade do império na medida em que cada indivíduo deve ser guardião de si mesmo e do outro. Ou seja, o cuidado para consigo está unido ao bem coletivo e ao bem-estar social. É preciso ser romano e homem.

É importante ressaltar o fato de que o estoicismo, de Zenão, na Grécia, até os romanos, sofre modificações ao longo do tempo. Isso acontece porque não há uma doutrina escrita que guie os pensadores por um só credo, conforme foi dito acima. Por isso, a possibilidade de diferenças e até divergências. Todavia, há nos escritos estóicos pontos-chaves. Assim como Sêneca, Marco Aurélio enfatiza o bom uso da razão. De acordo com o imperador, esta não deve ser escrava. É por meio dela que se segue a natureza. A palavra usada no grego para razão é hégemonikôn ou faculdade diretriz da alma. Ela é que permite o controle de si, o domínio do prazer e do sofrimento: “Quando se erra por desejo, ao contrário, vencido pelo prazer, demonstra-se, com tais erros, que se é fraco e efeminado.”[19] A razão é a lei do indivíduo, é a união da alma com a natureza que se efetiva na prática filosófica.

            A razão vincula-se à prática diária. Ela é aquela que firma o indivíduo e o coloca no seu devido lugar na ordem universal; através conjunto de ações apropriadas, regulações e indiferença frente ao prazer e ao sofrimento, o homem conduz-se à superioridade e ao enobrecimento: “Com efeito, o homem que é assim não tarda a incluir-se entre os melhores, é como um sacerdote e um ministro dos deuses, cultuando também a divindade implantada nele...”[20] Cada momento é importante, cada dia é considerado único e, por esse motivo, deve ser bem aproveitado. Em outras palavras, aproveitar o dia é exercitar a si mesmo na resistência contra aquilo que atinge a dignidade da natureza humana. Não se pode perder tempo: os pensamentos e as ações têm que ser concentrados naquilo que é útil para o sujeito e a coletividade: “Devemos então afastar nosso pensamentos de  tudo que não tenha propósito e seja inútil, principalmente a futilidade e a maldade.”[21] Percebe-se, assim, que o uso da razão nessa prática diária está relacionado à utilidade do ganho; deve-se escolher o melhor, estar preparado, ser independente e solidário, ser forte como pessoa e cidadão, obedecer às leis da natureza e cívica. Cabe dizer ainda que essa escolha pelo melhor caminha paralela a uma projeção sobre o futuro: Não andes mais sem rumo: já não lerás as tuas próprias memórias, nem os feitos dos antigos romanos e helenos, nem a seleção de livros que reservas para a tua velhice.”[22] É mister apressar-se para o fim e preocupar-se com as fraquezas futuras. A idade e a conseqüente decadência intelectual e física são consideradas, por isso, há a necessidade de ter o melhor no momento presente.   O agora é o tempo da razão, momento de se aproveitar a grandeza da ordem natural e universal: 

Se concentras teus esforços no presente, seguindo a reta razão seriamente, vigorosamente, calmamente, sem permitir que nada mais te distraia e mantendo puro teu Gênio interior, como se tivesses de devolvê-lo imediatamente, se te aplicares a isso, nada esperando, nada temendo e satisfeito com tua atividade presente conforme à natureza  e com uma verdade heróica em cada palavra e manifestação, viverás feliz. E ninguém será capaz de impedir isso. [23]  

            As Meditações de Marco Aurélio tratam do aspecto pragmático da reflexão filosófica. É para si que ele dirige tais reflexões, é sobre seus atos e sua maneira de ser que ele deseja aplicar suas máximas morais. Para o uso da hégemonikôn é fundamental saber ver distintamente o estado das coisas. É, em um primeiro momento, através do exame metódico da vida que se adquire os meios para se restaurar o aspecto funcional de cada coisa no universal. Deve-se entender os objetos e seus valores, as relações, as dependências e os conceitos. Gentileza, hombridade, verdade, fidelidade, simplicidade, auto-suficiência, conceitos esses interligados à lei natural, ordem estabelecida e encadeada por Deus. Concentrar os esforços naquilo que é certo, útil e presente; compreender a vida, dominar o corpo e as paixões; agir conforme à natureza por um método eficaz. As Meditações atendem ao aspecto teórico e funcional dessas assertivas. Elas são a memória escrita da prática de vida de Marco Aurélio e uma forma de exercitar um melhoramento. Não há nelas uma investigação sobre a verdade: elas são a própria verdade resultante da atividade somática diária e da reflexão. Nelas, não é discutida a natureza do livre-arbítrio. O que se discute está no nível da práxis e não da indagação teórica. Assim como Sêneca, a relação entre a vontade, o corpo e o pensamento é considerada do ponto de vista da investigação e administração dos atos e do uso da técnica.

Nos textos estóicos romanos apresentados, a origem e a fragilidade da ação não são discutidos, tal como é empreendido em Confissões. Os escritos concentram-se no plano reflexivo-exortativo. Não há pensamentos acerca da relação entre querer e poder, entre vontade e capacidade de escolha; o pacto estabelecido com o leitor é o da execução de atos considerados racionalmente bons para o alcance de uma autonomia. A memória e a razão são os instrumentos para articulação das regras e ações. A não conformidade entre os dois não gera conflitos, apenas uma aceitação da força da natureza. Esta não é combatida ou questionada. Reconhece-se a grandeza das virtudes e sua dificuldade de execução. Não há questionamentos sobre a liberdade, os fatos geradores da fragilidade de escolha humana, da aleatoriedade e da imposição dos desejos. O que é enfatizado são considerações de ordem prática.

Nas Confissões, essa pragmática é envolta de reflexões filosóficas. Se é certo que sua narrativa tem como alvo a execução de determinados atos, é igualmente correto que essa execução é parte de um conjunto correlato em que fé, razão e moral se articulam de forma interdependente: “Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria...”[24] É, por meio do reconhecimento da própria condição, da interpretação dos seus conflitos, que o jovem filósofo atesta a verdade que devia escolher. Há, em Agostinho, uma volta a si, uma análise cujo sentido está na afirmação da identidade cristã. Identidade cuja característica principal reside no bom uso da vontade, na libertação da escravidão do pecado e na potencialização do pensamento racional.          

 

III – Conclusão 

Posteriormente à tradição estóica, Agostinho traz inovações no que diz respeito a conceitos discutidos pela escrita de si. Ele não apenas expõe códigos morais; sua narrativa autobiográfica opta pela revelação da verdade sobre o sujeito, seus conflitos e limites. Através desse reconhecimento, o texto alia-se à vivência espiritual iniciada na experiência da conversão no jardim de Milão. Ao narrar seu progresso espiritual, Agostinho torna a narrativa uma técnica de valor terapêutico e espiritual: ele busca a sua cura e o engajamento de seus leitores na experiência com Deus. O filósofo reconhece o limite da linguagem e da vontade humana e a necessidade do combate da carne. Na narração dessas “verdades”, o livre-arbítrio é tematizado sob a ótica da execução de atos; ou seja, a verdadeira liberdade estaria na capacidade de rompimento com o “mundo” (com tudo aquilo que torna o ser humano servil) e na permanente força do querer ativado pela alma (razão).

 

IV - Referências

 

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2002.

AURÉLIO, Marco. Meditações. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, Tecnoprint, 1967.

BROWN, ­­­Peter. Augustine of Hippo. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 2000.

FOUCAULT, Michel. Two technologies of the self. In: MARTIN, Luther H. et al. (org.)Technologies of the self. London: Tavistock publications, 1988.

SÊNECA, Lúcio Aneu. A vida feliz. Trad. André Bartholomeu. Campinas: Pontes, 1991.

SÊNECA, Lúcio Aneu. A ira. Trad. Antero Barradas Barrata. Rio de janeiro: Casa Editora Vecchi, s.d. (Coleção Os Grandes Pensadores)

 



[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 2002.

[2] FOUCAULT, Michel. Two technologies of the self. In: MARTIN, Luther H. et al. (org.)Technologies of the self. London: Tavistock publications: 1988. p. 16-49.
[3]
SÊNECA, Lúcio Aneu. A vida feliz. Trad. André Bartholomeu. Campinas: Pontes, 1991. XVII, p.47. 

[4] Ibid., III, p. 27.

[5] Ibid., VII, p.31.

[6] Ibid., IX, p. 35-36.

[7] Ibid., XX, p.51.

[8] Id.

[9] Ibid., XXII, p.54.

[10] Ibid., XXIII, p.55.

[11] FOUCAULT, op. cit., p.36-38.

[12] SÊNECA, Lúcio Aneu. A ira. Trad. Antero Barradas Barrata. Rio de janeiro: Casa Editora Vecchi, s.d. (Coleção Os Grandes Pensadores) III,  p. 121.

[13]BROWN, ­­­Peter. Augustine of Hippo. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 2000. p. 152 -153.

[14]AGOSTINHO, op. cit., X, 3, p.218. 

[15] BROWN, op. cit., p. 152 et seq.

[16] AURÉLIO, Marco. Meditações. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, Tecnoprint, 1967. II, p.29.

[17] Ibid., I, p.25.

[18] Ibid., II, p.31.

[19] Ibid., II, p.33.

[20] Ibid., II, p.42.

[21] Id.

[22] Ibid., II, p.48.

[23] Id.

[24] AGOSTINHO, op. cit., VIII, 12, p.186.



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