Luiza Neto Jorge e Al Berto: vertigem de corpos dissolutos

 

 

 

Tatiana Pequeno da Silva

 

Para a Juliana.

 

The art of losing isn´t hard to master

 

Elizabeth Bishop, One Art

 

            Este texto corresponde a um projeto pessoal, derivado da dissertação de mestrado que escrevo sobre a representação literária da melancolia na obra de Al Berto. Também não nasceriam aqui estas palavras se não fosse pelo curso oferecido pelo professor Doutor e orientador Jorge Fernandes da Silveira, intitulado Poesia 61, do qual surge este pretenso ensaio, cujo objetivo maior é verificar afinidades entre as poesias de Luiza Neto Jorge e Al Berto.

            Por algum motivo este texto só me parecia fazer sentido se eu explicasse que ele nasceu depois de algum tempo de reflexão acerca da possível relação entre ambos os poetas que publicam em Portugal na segunda metade do século XX. Esta comunicação, este texto também só foram possíveis depois que Manoel de Oliveira, cineasta português, comoveu-me pela terceira vez, nomeando um algo muito contemporâneo de “inquietude”. Penso, portanto, que o filme homônimo é um dos grandes motivos que me levaram a tentar entender o porquê de o imaginário cultural português ser tão pleno de livros de desassossego, bolores, corpos insurrectos, casas incendiadas e poemas desconstruídos.

            Falemos, portanto, de corpos líricos. Em Luiza, notadamente marcada por uma vida intelectual intensa, prevalecem os títulos de ensaísta e tradutora, e claro, poeta que destaca-se na famosa publicação Poesia 61, conjunto de cadernos de poesia dos jovens Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge. Parte de sua obra poética foi reunida em Poesia, pela Assírio & Alvim em 1993, estando agora em sua terceira edição (2001). Os poemas aqui escolhidos como corpus deste trabalho intitulam-se O corpo insurrecto, O poema ensina a cair e os Recantos 04 e 12, que compõem uma epopéia moderna da desconstrução de uma razão tão portuguesa e instrumental porque canônica, porque subversiva em relação aos cantos tão masculinizados de barões assinalados, conforme diz SILVEIRA, 1986: Dezanove recantos é a síntese extraordinária duma poesia de acontecimentos, de situações tensas entre o sujeito e as suas circunstâncias.

Alberto Raposo Pidwell Tavares é o nome deste que apresento. Nasce em Lisboa no ano de 1948 e começa a publicar poesia no começo dos anos 80, depois do retorno de um exílio voluntário em Bruxelas. Seu nome poético dissolve-se em apenas Al Berto, marcando notadamente sua identidade fragmentada. Muito pouco estudado, e mormente enxergado somente como enunciador de uma poesia homoerótica, o pendor autobiográfico torna-se evidente a partir das recorrências que compõem uma obra caudalosa, reunida num túmulo-livro intitulado O Medo, de quase setecentas páginas emolduradas por um roxo que se torna lilás com o tempo.

 Finita Melancolia, conjunto que escolhemos para compor uma articulação com a obra de Luiza é publicado em 1989, busca entender a transformação, a metamorfose dos corpos vergados pela geologia da dor. Justifico: todos os poemas partem de sugestões imagéticas que se caracterizam por ambiências de cor acinzentada. Textualmente, o primeiro poema começa com a “paisagem de grafite”, passando pela “tristeza que na plúmbea água reacende a vida” e finalmente culmina em “a dor vem como um estilete perfura/ o xisto das artérias onde estrelas turvam/ os sentidos daquele que escrevendo mata/ o que escuta e o que fala” e na “hulha nocturna”.

Hulha: carvão

Xisto:rocha que sofreu transformações sob a ação de temperatura e pressão, cujos minerais são visíveis a olho nu.

Grafite: carvão usado (mineral) na fabricação do lápis.

A aproximação entre as obras de Al Berto e Luiza se configura como uma busca frenética pela compreensão das reentrâncias, através da “exaltação do mínimo”. Tanto o corpo de um, quanto o de outro editam a deambulação de uma certa errância cuja intenção maior talvez seja a de evitar a inércia, assinatura autenticada da cristalização, e já que falo de pedras, na petrificação humana.

A obra de Luiza reconstrói a idéia-casa, tão cara aos portugueses. Segundo Ida Alves, em Escrever a Casa Portuguesa (1999: 201):

Já em Luiza, a casa é o corpo como espaço de transgressão e revolução. Lugar preso à terra, de costas para o mar. Sua poesia é exigente, com tal complexidade de imagens e estruturas, que o próprio ato de leitura é permanente luta com os sentidos, um tatear físico desse objeto poético que insiste em escapar por entre os dedos. Poesia de um erotismo provocadoramente transbordante, encontramos no poema “ O Corpo Insurrecto” um exemplo fundamental para compreender essa poesia – casa – corpo que se exaura na sua ânsia de existência (...) Casa são inúmeras na obra de Luiza Neto Jorge, porque sua poesia é a busca permanente de conseguir habitar o corpo-poema e o corpo físico, lugar de todas as travessias.

 

 

A casa, portanto, é relida a partir da poesia de Luiza, cujo corpo é uma também máquina de oscilar, conforme apresentou  a ensaísta Rosa Maria Martelo. A casa, presente também na poesia de Al Berto, é possível de ser enxergada pelas frestas de uma geologia dos afetos: a escrita é a sua primeira morada, ainda que seja de silêncio.

            Os possíveis diálogos entre ambas as poéticas configuram –se por meio de uma forma vertiginosa de estar no mundo, levando em consideração que O poema ensina a cair. Curiosamente, o espaço da poesia consiste numa aprendizagem contínua, sobre qual a arte de perder parece evidenciar-se o tempo inteiro através diálogos contínuos de fogos em vênias sucessivas, como podemos verificar nos poemas de Luiza e também em Al Berto na sua melancolia incendiária e até aí finita, até porque Finita Melancolia é o livro que antecede Horto de Incêndio, obra final cujo teor contém a apoteótica morte do sujeito enunciador em Morte de Rimbaud.

            Segundo ainda Rosa Maria Martelo, é notória a presença de um outro semelhante e essencialmente diferente na obra de Luiza Neto Jorge, o que pode assemelhar-se à contínua necessidade que a poesia al bertiana tem de interlocução.Al Berto é o poeta que escreve na suposição vertiginosa de um leitor, daí suas referências contínuas à segunda pessoa do singular, com quem o sujeito lírico parece o tempo inteiro dialogar, consultar, inquirir, desafiar e sobretudo acusar. Não considero, de forma alguma, que o espaço literário de Luiza e Al Berto sejam de meras reflexões subjetivas que se utilizam apenas da alteridade para promover um aprofundamento nestes possíveis desdobramentos de si. Pelo contrário, o que se pode ver, por exemplo, nos Recantos é uma preocupação em tornar insólita toda a consistência por ventura existente nesta realidade notadamente demarcada politicamente, o que também não significa que a poesia de Luiza seja panfletária.

            De acordo com Edgar Pereira (1999) os poetas que seguem à geração de Luiza Neto Jorge escrevem com os olhos voltados ao grupo Poesia 61, ainda que seja para negá-los enquanto fórmula poética  ou ainda para que seja pensado novamente o lugar da subjetividade na poesia. Os poemas da autora aqui verificados são posteriores à publicação dos cadernos de então, e em função disso podem ser lido à luz de algumas fulgurações: é que a própria poesia de Luiza funciona como vanguarda de toda uma escrita que desafiará o texto a saber do corpo. São dados quase concretos daquela que outorgou a quarta dimensão literária através do medo   e do espanto II.  Ainda segundo Pereira (1999: 137):

Com recursos aparentemente simples – a reabilitação da subjetividade, o despojamento gráfico, a pontuação mínima, a interlocução com um alocutário, a realidade transfigurada pela morte, a vertigem metafórica, a busca do ritmo fluido e dinâmico – mais uma vez a poesia de Al Berto atualiza aquela aliança que, desde Baudelaire, a modernidade realiza com o desespero e a decadência.

 

De forma que, pensar a poesia de Al Berto é também pensar nos limites de uma transgressão, preocupada em recuperar a experiência, mormente encontrada em sua poesia nas alusões às deambulações do corpo e no rompimento de todos os possíveis limites numa Europa que buscava sua reconstrução ao mesmo tempo que vivia os ecos dos anos sessenta. É portanto nessa ausência de lugar que Al Berto buscará desconfigurar os aparatos de sua nacionalidade poética. Inicialmente, tendendo a compor uma poética beat, sedimentará sua escrita na fórmula corpo-enunciação e identidade, curiosamente a mesma tríade defendida por Rosa Maria Martelo no ensaio Luiza Neto Jorge e a máquina de oscilar no qual a crítica aponta:

Embora  o erotismo possa, também no seu caso, constituir uma temática importante, ele é, acima de tudo , o motor e o modelo de uma condição discursiva de excesso que permite situar o poema fora da (e contra a) ordem social. De resto, sendo a experiência da escrita apresentada como homóloga da experiência erótica, e sendo esta situada do lado da desordem, ambas se equivalem como práticas excessivas de transgressão e de contrapoder.

 

 

(MARTELO, 2004: 164)

 

            Ambas as poéticas desafiam o leitor a entender estes dois corpos tão díspares e irmãos ao mesmo tempo, na medida em que tendem a fazer parte de uma gênese cultural que busca desafogar-se da solidão salazarista[i], de forma que Luiza e Al Berto buscam a restituição de seus corpos através da escrita, primeira morada da poesia que, sabiamente, ensina a cair na dissolução do silêncio, mas que também ressuscita corpos e os recanta nas suas finitas melancolias.

 

 

BIBLIOGRAFIA 

 

BERTO, Al. O Medo. Lisboa, Assírio & Alvim: 1997.

JORGE, Luiza Neto. Poesia. Lisboa, Assírio & Alvim: 2001

MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta. Porto, Campo das Letras: 2004

PEREIRA, Edgar. Portugal – poetas do fim do milênio. Belo Horizonte, Editora da UFMG: 1999.

SILVEIRA, Jorge Fernandes (org.) Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte, Editora da UFMG: 1999. 

 


 

[i] Durante a vigência do Estado-Novo Salazar orgulhava-se da solidão continental portuguesa diante do mundo, repetindo o sintagma “orgulhosamente sós” em seus discursos, referindo ao isolamento português.

 

 

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