DESCONSTRUÇÃO / RECONSTRUÇÃO EM ’AQUI E EM OUTROS LUGARES’ DE OSWALDO FRANÇA JÚNIOR
- Maria José Ladeira Garcia -


                            
A arte é a finalidade do mundo, o destino 
inconsciente do aprendiz. 

Gilles Deleuze

              Interpretar é realizar movimentos sucessivos desconstrutores de leitura para desfazer a trama do texto, tecido que, simultaneamente, mascara e revela. É no ocultamento que o texto mostra o que esconde 1.  Só os detalhes, apontando o fio da trama que se deve destecer, poderão guiar o leitor na tarefa de reconstrução da própria narração.

           Se a reconstrução aponta a desconstrução, se o sentido, o não-sentido, a desconstrução e as rupturas de sentido no detalhe apontam o sentido e uma arquitetura contínua mais profunda.    

           Interpretar é, portanto, construir sentido a partir de traços que se revelam como índices de uma verdade oculta que se pretende revelar.

           Uma cena, um personagem, uma imagem podem retratar a figuração simbólica única, resultante da condensação de alguns traços, assim como, por deslocamento, um detalhe obscuro pode substituir a idéia essencial do texto.

           A reconstrução de sentido se articula em simultaneidade com a tarefa de desconstrução, porque interpretar é destecer a trama textual e vir, ao mesmo tempo, tecendo um novo tecido com os fios retirados de outros tecidos-textos.   

            É através dessa dicotomia desconstrução / reconstrução que se pretende

“ ler “ ‘Aqui e em outros lugares ’  para apreciar a pluralidade com que é tecido. 
________

1 CARVALHO, Lúcia Helena (1983) p. 1. As subseqüentes citações desta obra serão feitas, por esta edição, no próprio texto entre parêntesis, indicando-se abreviado P.N.,  em itálico e seguido da página em algarismos arábicos.

        

 O estudo da narrativa como objeto tecnicamente elaborado suscitou-nos múltiplas pesquisas quanto ao seu mecanismo de reconstrução; por isso, elementos do texto, cujo valor significativo passara despercebido ao olhar crítico, começaram a seduzir-nos.

          Assim, coincidências e repetições, simetrias espaciais e temporais encontradas na obra são alguns dos recursos que nos atraíram a atenção.

          Como elemento de duplicação interior, a “ mise en abyme ” é um procedimento estrutural válido para refletir a narrativa: um caminho natural para a desconstrução. Em sua multiplicidade, se oferece como bloco de significação que se deve dessoldar, desarticulando a complexidade de relações em que cada unidade é um nó, assinalando, portanto, o cruzamento de cadeias significativas diversas.

          Como os espelhos convexos funcionam na pintura flamenga redimensionando o espaço limitado da tela, na narrativa franciana, as histórias desdobram os episódios, abrindo ao processo de significação uma dimensão insondável.

         O desdobramento da narrativa vai criar-lhe a ilusão de profundidade “ de estar vertiginosamente em abismo”  (P.N., p. 8).

          Pode-se dizer que a narrativa é a metáfora de vidas que se ligam por fios sutis que se rompem, como exemplo, essa “ mise en abyme ” que anuncia a separação, após sete anos de muito amor:

                         Os preparativos para o dia do casamento. Ela dizendo que teria de cozinhar o primeiro prato e soltar os pombos. Ele sem ter idéia de onde ela havia escutado e se convencido de que aquelas coisas podiam influir na felicidade de um casamento. Abrindo a caixa após os cumprimentos para que os pombos voassem. Os dois pombos muito brancos, com fitas amarradas no pescoço. Um com uma fita azul e outro com uma fita vermelha. Ela abrindo a caixa no centro da grande roda de convidados e o pombo com a fita azul batendo as asas e voando.  Dando a volta e indo embora. O outro, o que representava a noiva, não acompanhando. Não voando. Batendo as asas de modo desordenado e caindo. Ela tentando novamente. Colocando-o na palma da mão e tentando fazê-lo voar. Mas ele não conseguindo. Batendo as asas outra vez de modo desordenado e indo de encontro à parede. E se machucando. Os convidados brincando, dizendo que somente o noivo seria feliz. Ela não seria 2 .

_______________

2  FRANÇA JÚNIOR,  Oswaldo  (1984)  p, 68-9) , As subseqüentes citações desta obra serão feitas, por esta edição, no próprio texto entre parêntesis, indicando-se abreviado A , L.,  em itálico e seguido da página em algarismos arábicos.         


                  Ao acompanhar o percurso do sema pombo, através do jogo de associações é que se constata que está relacionado  à separação, como em:

-          Será que no casamento deles algum pombo foi de encontro à parede?

-          Não devem ter tido revoada de pombos no casamento – ele respondeu [ . . . ]

          Ele inclinou a cabeça  procurando o que ele havia apontado e viu alguns pombos [ . . . . ]  . .  .   ela havia se referido aos pombos da festa do casamento [ . . .  ] .

-          O pombo com a fita azul é que devia ter ido de encontro à parede ( A . L . , p.

 75 ) .  

            Para  Lucien Dällenbach, “ mise em abyme “ é, portanto, “ todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém “ 3  , funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui.

          Caracterizada como a história dentro da história, é um dos recursos mais eficazes para se obterem coincidências bem construídas e se oferece como caminho natural para a tarefa desconstrutora na produção de interessantes jogos de espelhos dentro da narrativa. Mas esse reflexo surgido pelo fragmento incluído não possui sempre o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui.

          A narrativa em terceira pessoa aparece fragmentada porque o romance não possui uma história central. É uma edificação orgânica de dezessete histórias que, ao ser decomposta, revela sutis articulações das partes, porque é uma unidade perpassada de significados em luta pela predominância dos sentidos da visão: “ Olhando-se para um lado, avistava-se ao longe o centro da cidade. Olhando-se para o outro, avistava-se  um vale, um rio e as montanhas no horizonte” ( A . L. , p. 7 ) ; e da audição: “ Ele ouvia as duas e reparava na moça. Achava sua voz meiga e delicado o modo como segurava o violão, como tocava as cordas. E ela estava sempre alegre e ria  todas as vezes que errava a música ( idem, ibidem, p. 108 ).

          Apesar de,  à primeira vista, os personagens parecerem  muito diferentes,

estão todos  movidos pelos mesmos sentimentos e sujeitos às mesmas limitações

existenciais. Sem identificação nominal, vão surgindo através de historietas ligadas de várias maneiras, como encadeamento, encaixamento e alternância4  . O encadeamento consiste na justaposição de diferentes histórias; termina uma,
_____________

3  DÄLLENBACH, Lucien ( 1977 )  p. 18 .

4TODOROV, Tzvetan ( 1973 ) p. 234 .       

 começa a outra, sendo a unidade assegurada pela semelhança na construção de cada uma. Pode ser exemplo de encadeamento, a história da queixa da senhora contra  “ o velho do Jardim “ a qual está encadeada a do delegado:

                    Ele encerrou o trabalho mais cedo e preparava-se para sair quando um guarda  lhe disse :

-          Tem uma senhora querendo falar com o senhor.

-          O que é ? – ele perguntou.

-          - É uma queixa contra aquele velho do jardim ( A. L . p. 52 ) . 

          O encaixamento inclui uma história no interior de uma outra que, encaixada na memória do “ dono da casa “ cuja parte do muro caiu em conseqüência da batida do caminhão que perdeu o freio, vai vivenciando, através de lembranças involuntárias, o seu passado: “ E agora, anos mais tarde, ali na estrada, ao lembrar-se dos dois bem juntos dentro do carro, sentiu a pressão sobre o peito. E ele falou:

          - Puxa,  como eu gostava daquela moça    (  A . L . p. 40 ) .

          A alternância consiste em contar histórias simultaneamente: interrompe ora uma, ora outra, para retomá-la na interrupção seguinte como ocorre na história da mãe da moça e do homem casado:

                  E ao sair da igreja, dirigiu-se ao ponto de ônibus. Quando se aproximou do ponto, um homem abandonava a fila. Um homem que ela conhecia de vista  [ . . . ] .

                     Entre as pessoas que iam e voltavam do trabalho no mesmo horário em que ela ia e voltava do hospital, havia algumas que já se conheciam. Conheciam-se de tanto se verem no ônibus ou ali na fila, esperando. E entre essas pessoas estava aquele homem que havia se afastado. Ele sempre a cumprimentava ( idem, ibidem, p. 17 ) . 

          Essa técnica de narrar tem afinidades com a dinâmica espaço-temporal do cinema.

          As histórias vão se tecendo ora com a presença de um termo aditivo como em : “ E ela sempre respondia “  ( idem, ibidem, p. 17 , grifo nosso ) ; ora, referente a lugar: “ Onde moravam havia um vizinho que na praia, às vezes, conversava com eles “ ( idem, ibidem, p. 19, grifo nosso );  ora, a tempo : “ Na manhã em que a mãe da moça, depois de sair da igreja, viu que ele abandonava a fila de ônibus, ele havia realmente esquecido alguma coisa”  ( idem, ibidem, p. 26, grifo nosso ) ;

ora, à sensação auditiva:  “ Não muito longe dali um rapaz também ouviu  aquela música “ ( idem, ibidem, p . 117, grifo nosso ) ; ora, um termo de oposição : “ Mas um deles, em vez de se dirigir para casa, entrou num bar e pediu um aperitivo (idem, ibidem, p. 41, grifo nosso ).

           França renova a tradição, ao escolher uma linguagem pobre, coloquial, com

 períodos curtos, fragmentada para caracterizar pessoas simples do interior, comprovando, portanto, que a arte tem o dever de manter vivo o fluxo da história como em : “ A moça ficou sabendo que ele era do interior, que morava na construção. Que ele mesmo lavava sua roupa, preparava sua comida.  Que não fazia compras na feira porque julgava que não era preciso “ ( idem, ibidem, p. 8 ).

          São também exemplos de coloquialismo na linguagem, o uso do pretérito imperfeito pelo futuro do pretérito em : “ Ele sem ter idéia de onde ela  havia escutado  e se convencido de que aquelas coisas podiam influir na felicidade de um casamento  ( idem, ibidem, p. 68, grifo nosso ).

          Assim, o romance se desdobra como espaço de experimentação, de configurações variadas, de recursos múltiplos ao substituir a unidade do enunciador pela pluralidade de enunciados.

          O tempo da memória vem entrecortado, não apresentando o contínuo fluir bergsoniano como em : “ O  rapaz pensava nas chuvas caindo e enchendo o rio. Enchendo o rio que ele sempre seguia pela margem quando precisava ir do outro lado “ ( idem, ibidem, p. 120 ) .

          A opção do narrador por esse  “jogo do tempo” decorre de um projeto elaborado no / pelo ser com a perspectiva de apreender a verdade mineira o que não deixa de ser também um processo angustiante, porque o único caminho para essa travessia é a linguagem que,  em alguns momentos, aparece fragmentada, conotando a descoberta de suas possibilidades, entre elas a de ser fator de renovação e reconstrução da vida. 

 

BIBLIOGRAFIA  

 ARNAUDIÉS, Annie. Le nouveau roman :  les formes. Paris: Hatier, 1974. 

__________. Le nouveau roman :  les matériaux. Paris: Hatier, 1974.  

BARTHES, Roland. La mort de l’ auteur. In: - - -. Le bruissement de la langue.  Paris: Seuil, 1984. p. 63-9. 

__________. Leçon. Paris: Seuil, 1987. 

BOMENY, Helena.  Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: UFRJ / Tempo Brasileiro, 1994. 

BOURNEUF, Roland, OUELLET, Réal. O universo do romance. Coimbra: Almedina, 1976. 

CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo. São Paulo: Ática, 1976     (Perspectiva). 

CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. 3. ed. São Paulo: FTD, 1975. ( Coleção ensaio ). 

COELHO, Nelly Novaes. O ensino da literatura. São Paulo: FTD, 1966. 

DÄLLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: INTERTEXTUALIDADE. Trad. de Clara Crabbé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979. p.51-76. 

___________. Le récit spéculaire: essai sur la mise en abyme. Paris: Seuil, 1982. 

DIDI-HUBERMAN, Georges. A dupla distância. In: - - -. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 1998. p. 147-65. 

___________.  A imagem crítica. In: - - -. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34, 1998. p. 169-99. 

DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985. (  Série Princípios ). 

FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. Aqui e em outros lugares.  2. ed.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 

GENETTE, Gerard. Fronteiras da narrativa. In: ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA.  3. ed. Trad. de Maria  Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 255 – 74. 

KUJAWSKI,Gilberto de Mello. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1988.  (Série Temas, v. 7 ). 

LAFETÁ, João Luiz.  O romance atual : considerações sobre Oswaldo França Júnior, Rui Mourão, Ivan Angelo. In: - - -: A dimensão da noite.  Organização de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2004. p. 241-64. 

LIMA, Alceu Amoroso. Voz de Minas. Rio de Janeiro: Agir, 11945. 

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976 Ensaio, 20 ). 

LOPES, Maria Angélica Guimarães.  Água e ouro: o Brasil em dois romances de Oswaldo França Júnior. In: - - -.  A coreografia do desejo :  cem anos de ficção brasileira. São Paulo: Ateliê 2001. p. 169-99 

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988 ( Série Fundamentos, 31 ). 

RICARDOU, Jean. Pour une théorie du nouveau roman.  Paris: Seuil, 1971. 

____________. Problèmes du nouveau roman. Paris: Seuil, 1967. 

SILVA, Edson Rosa da.  Escritura / Scriptura: a poética de um sentido por vir. In :

A FORÇA DA LETRA:  estilo escrita representação. /  Lúcia Castello Branco, Ruth

Silviano Brandão organizadoras. Belo Horizonte: UFMG, Pós-Lit. Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, FALE/ UFMG, 2000. p. 114-21. 

SILVERMAN, Malcolm.  Moderna ficção brasileira. Trad. de João Guilherrme Linke. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1982. 

TODOROV,  Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: ANÁLISE ESTRUTURAL DA NARRATIVA.  3. ed. Trad. de Maria  Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 209 – 54.



voltar