OS JOGOS DE SENTIDOS FICCIONAIS EM JASMINE E ALIAS GRACE

 

             Luiz Manoel da Silva Oliveira

                                                      UFRJ

 

            Este trabalho pauta-se pela tentativa de fazer algo desafiador: analisar os sentidos ficcionais de dois romances da contemporaneidade, eivados de marcantes estratégias estéticas eminentemente pós-modernas, à luz de conceitos teóricos de escritores tanto do século XIX quanto contemporâneos cujas idéias absolutamente não se alinhem nos multifacetados parâmetros das estéticas da pós-modernidade, ou que, no máximo, simplesmente reconheçam, mas não necessariamente lidem diretamente com os objetivos e áreas de interesse dos Estudos Culturais, nem tampouco esposem as mais emblemáticas e radicais formas de representações literárias pós-estruturalistas. Desse modo, em vez de lançar mão prioritariamente de críticos como Gayatri Chakravorty Spivak, Stuart Hall, Linda Hutcheon, Edward Said e Homi Bhabha,somente para citar alguns dos que são mais freqüentemente utilizados em análises de romances como Jasmine e Alias Grace, optarei por recorrer a textos ficcionais ou teóricos de Henry James, Virgínia Woolf, August Wilhelm von Schlegel; e aos jogos textuais da teoria de Wolfgang Iser.

            Cumpre esclarecer, em vista disso, que esta inversão do aparato crítico-teórico se deve a uma idéia que me ocorreu quando pensava na recorrência das opiniões conservadoras da crítica e de escritores que de modo geral sempre se levantam em face das vanguardas e das novas tendências nas estéticas da representação literária. Como se tem tornado notório, o caso não é diferente com as estéticas da pós-modernidade, uma vez que ainda há quem questione se estamos ou não vivenciando de fato um momento estético de contornos próprios e de certa forma diferente do que se chamou de modernismo, das primeiras décadas do século XX até aproximadamente o fim dos anos de 1960. Um outro fator que logo se soma a essa questão diz respeito à polêmica de se rotularem autores e obras como “bons” ou “maus”, partindo-se do julgamento e da avaliação de se as obras produzidas têm ou não “literariedade”, ou até mesmo da mera opinião pessoal deste ou daquele crítico, sem maiores explicações. Vem-nos logo à mente, então, que alguém que conceba a obra literária meramente como objeto estético, em que figurem metáforas e outras figuras de linguagem ou de pensamento, sem nenhuma ou pouca conexão com outros discursos e outras áreas do conhecimento, terá maior dificuldade em reconhecer o valor estético de obras literárias pós-modernas que privilegiem diálogos interdisciplinares com a história, a psicanálise e os aspectos palpitantes dos Estudos Culturais, tais como as questões de raça, etnia, gênero, identidade, alteridade, desconstrução, diásporas e pós-colonialismo, por exemplo. Em vista disso, decidi utilizar a contribuição crítica mencionada anteriormente, que não é a mais usual para a análise de romances pós-modernos, para provar que, mesmo havendo muitas incompatibilidades, existem igualmente interseções que ajudam a derrubar o mito de fossos tão intransponíveis entre a crítica de cunho mais tradicional e as produções literárias contemporâneas.

            Desse modo, antes de explorar os textos que servirão aqui de base teórica, é necessário dizer algumas palavras sobre os dois romances das literaturas de língua inglesa com que estou trabalhando na minha tese de doutorado. Jasmine é um romance de características ultra pós-modernas da escritora Bharati Mukherjee, de nacionalidade indiana e radicada nos Estados Unidos. Na maioria dos seus contos e romances, predominam imigrantes, em sua maioria asiáticos, engajados em diásporas transnacionais envolvendo países que foram colônias no passado e outras nações que foram metrópoles ou que são potências neocolonizadoras na atualidade, como é o caso dos Estados Unidos, por exemplo.

Em Jasmine, Mukherjee utiliza sofisticadas técnicas de desconstrução da subjetividade das suas personagens, assim como da fragmentação da narrativa num grau superlativo, que acaba por espelhar a própria fragmentação das identidades da protagonista do romance. Assim, a narradora enfoca de forma absolutamente não-linear a vida da protagonista, desde os seus sete anos de idade na vila interiorana de Hasnapur, quando era então chamada de Jyoti, até os vinte e quatro anos, nos Estados Unidos, quando já adotou o nome e a personalidade de  Jane Ripplemeyer. Nesse meio tempo, casa-se na Índia com Prakash, que a renomeia de Jasmine; fica viúva e, em virtude disso, estigmatizada por algum tempo, voltando a se chamar Jyoti e tornando a morar em Hasnapur; decide sair de Hasnapur, reassume o nome de Jasmine e emigra como clandestina para a América; é estuprada na primeira noite em solo americano por Half-Face, o capitão do navio que a trouxera para a “terra da promissão”; assume a alteridade da deusa Kali, da morte e da vingança, e mata Half-Face; foge do motel em que estavam e passa a assumir os nomes de Jazzy, Jase e Jane Ripplemeyer, enquanto aprende a se adaptar e a sobreviver em terreno hostil. Enfim, Mukherjee cria uma história de sobrevivência e vitória do sujeito pós-colonial feminino, tocando nos temas do hibridismo, transnacionalidade, deslocamentos diaspóricos, feminismos, subjetividade, alteridade, fragmentação em todos os níveis, dentre outros.

            Já Margaret Atwood, ao mesmo tempo que levanta delicadas questões sobre a identidade nacional canadense, urde a trama da imigrante branca Grace Marks, da Irlanda para a Toronto do século XIX. Enquanto Mukherjee cria uma história totalmente ficcional, Margaret Atwood se baseia num episódio real registrado nos anais judiciários, jornais e na memória do povo canadense. Misturando dados da vida pública do Canadá do século XIX e da vida privada da imigrante Grace Marks, Atwood vai tecendo uma intricadíssima colcha de retalhos (“quilting”, em inglês), em que se utiliza da técnica da metaficção historiográfica, ao entremear fatos históricos (muitos dos quais questionáveis) com suas recriações ficcionais, para dar conta dos dramas homéricos da protagonista e da sua construção de subjetividade, enquanto um sujeito pós-colonial feminino também em terreno hostil, como Jasmine.

            O grande momento do enorme romance de mais de cinqüenta capítulos é quando Grace Marks, após passar por várias dificuldades em solo canadense, vai trabalhar como doméstica na casa do fazendeiro Thomas Kinnear, quando ainda adolescente. Lá, ela se apaixona por Kinnear, que, por sua vez já era amante da governanta Nancy Montgomery. A situação se complica porque na fazenda já trabalhava McDermott, um outro jovem irlandês que se apaixona por Grace Marks logo que ela chega à fazenda. Então, em troca de supostos favores sexuais a McDermott, Grace pede a este que mate Nancy, para que o caminho para o coração de Kinnear fique livre para ela. McDermott aceita a oferta, porém não somente mata Nancy como também tira a vida de Kinnear. Imediatamente a esse homicídio histórico que comoveu o Canadá no século XIX, Grace é forçada a fugir com McDermott. Ambos chegam a atravessar a fronteira para os Estados Unidos, mas são capturados e julgados no Canadá. McDermott e Grace são condenados à pena de morte por enforcamento. McDermott é de fato enforcado, porém Grace tem sua pena de morte comutada em prisão perpétua, em virtude da sua pouca idade.

            Desse ponto em diante, o gênio criativo de Atwood narra os trinta anos em que Grace Marks vive entre a prisão, o manicômio penitenciário e a sua vida de doméstica nas casas dos sucessivos diretores da penitenciária (regalia que consegue após muitos anos de comportamento exemplar). Em vários capítulos do livro, lado a lado com o texto, aparecem desenhos de Grace e McDermott, recortes de notícias de jornais da época e de autos do processo; cartas dos psiquiatras reais e ficcionais que trataram de Grace, e até uma versão completa de toda a história em forma de quadrinhas rimadas. Enfim, Atwood cria uma estrutura narrativa e representacional altamente pós-moderna, interdisciplinar e inclusiva, para narrar a saga fantástica e também vitoriosa de uma imigrante irlandesa.

Após três décadas, Grace consegue um perdão, graças à intervenção de inúmeros novos amigos, que custam a acreditar que ela tenha de fato participado do assassinato de duas pessoas; casa-se com um homem que testemunhara contra ela no passado (e se arrependera de o ter feito) e acabam virando fazendeiros nos Estados Unidos, onde ninguém saberia do passado de Grace. No fim do romance, ela se descobre grávida e reconhece que dentro dela há várias mulheres, numa clara alusão ao processo de problematização da sua identidade determinado pelas condições de mulher, imigrante, pobre e subalterna. Além disso, a sua alteridade mais ainda se complica quando seu comportamento oscila entre os seguintes pólos: pura/luxuriosa, inocente/culpada, generosa/psicopata e louca/equilibrada. Adicione-se a isso o intercâmbio com as características comportamentais da sua amiga Mary Whitney, tida como suposta possuidora de comportamentos sábios, equilibrados e exemplares, e que serve como uma espécie de alter-ego para Grace Marks por todo o romance. Em suma, o que menos importa no fim da história é se Grace Marks foi mesmo assassina ou não, uma vez que o que se destaca é a sua construção identitária enquanto sujeito pós-colonial feminino.

            Em vista de todo o exposto, as questões da diáspora, de gênero, da alteridade, da  identidade, do hibridismo e do pós-colonialismo ficam claras nos dois romances e justificariam plenamente o uso de um embasamento teórico da área dos Estudos Culturais. No entanto, é exatamente neste ponto que passo a recorrer a um tipo de embasamento relativamente adverso. Aludindo ao recorrente desdém de críticos e escritores por certas obras, podemos constatar que esse fenômeno pode-se verificar tanto em relação a obras do passado, quanto em relação a obras do momento vivenciado pelo crítico ou escritor, por razões de incompatibilidades estéticas com os parâmetros por ele eleitos como representativos da “literariedade” de determinada obra literária. Nesse sentido, podemos brevemente relembrar a rotulação que Virginia Woolf dá a Thomas Hardy e Joseph Conrad de “escritores espiritualistas” (bons escritores) e de “escritores materialistas” (maus escritores) a Wells, Bennett e Galsworthy, em seu ensaio “Modern Fiction”. Isto é idêntico ao que faz Schlegel no século XIX em seu texto “A Carta sobre o Romance” (1988), quando o narrador do conto critica uma personagem feminina por ler “más obras” como os livros de Fielding e La Fountaine, de acordo com a seguinte passagem:

 

Freqüentemente tenho visto, com espanto e raiva interior, o criado trazer-lhe pilhas daqueles livros. Como pode tocar os volumes imundos com suas mãos? E como pode permitir, através dos seus olhos, a entrada do palavrório confuso e inculto no templo da alma?  (Schlegel, 1988, p. 62).

 

            Da mesma forma, Henry James também se refere de forma derrogatória a Anthony Trollope, por “levar às lágrimas pessoas que tomam sua ficção a sério” (JAMES, 1995, p.22), uma vez que expõe bem claramente em A Arte da Ficção (1995) seus conceitos do que seja “boa ficção”, ou seja, o tipo de ficção realista do século XIX, conforme se percebe em afirmações suas tais como : “A única razão para a existência de um romance é que ele tenta de fato representar a vida” (p. 62). Além disso, num reconhecimento da técnica pictórica que deve presidir à feitura do romance, diz que: “(...) se a pintura é realidade, o romance é história. (...) O tema da ficção está arquivado, como em documentos e registros, e para que seja explorado é preciso falar dele com segurança, com a tonalidade do historiador.” (p. 62). Já no conto O Desenho do Tapete, em que James usa a ficção para teorizar sobre ela mesma, todo o enredo gira em torno das frustrações das personagens por não conseguirem jamais penetrar os sentidos últimos da obra do escritor ficcional Verek, de forma que esses tais sentidos se assemelhariam ao complexo desenho de um tapete persa, que, para Verek, está em primeiro plano, mas é de muito difícil visualização. Sua visualização deve ser tentada, porém jamais vislumbrada. Isto equivale a dizer que o sentido da obra de arte é a própria obra de arte em si, envolta um uma aura de mistério e impenetrabilidade, a reclamar constante contemplação de seus admiradores, sem que seja oferecido acesso ao entendimento dos seus significados.

            Com base nesse conceitos, Jasmine e Alias Grace não poderiam ser consideradas obras literárias, em função do certo tom instrumental e do atrelamento às questões dos Estudos Culturais. Contra isso, se levantam vozes como a de Rita Felski, oferecendo novas possibilidades de interpretação, como quando afirma que:

 

O feminismo norte-americano tem servido para lembrar aos críticos que a literatura não se refere unicamente a si própria, ou aos processos metafóricos e metonímicos, mas está profundamente imbricada com as relações sociais reais, reveladoras das maquinações da ideologia patriarcal, através das suas representações de gênero e das relações masculinas e femininas (FELSKI, 1989, p. 29).  

 

            Porém, voltando a James e Schlegel, é digno de nota como eles mesmo acabam por emitir opiniões que contradizem aqueles conceitos rígidos se pinçarmos certas afirmações suas e usarmos um tom bem contemporâneo de desconstrução para interpretá-las. A de James está ainda em             A Arte da Ficção, quando diz o seguinte:

 

A arte vive de discussão, de experimentação, de curiosidades, de variedade de tentativas, de troca de visões e de comparação de pontos de vista; e presume-se que os tempos em que ninguém tem nada de especial a dizer sobre ela e em que ninguém oferece motivos para o que pratica ou prefere, embora possam ser tempos honrados, não sejam tempos de evolução – talvez sejam tempos, até, de uma certa monotonia. (JAMES, 1995, p. 20.).

 

 

            Se a afirmativa de James acima já nos recorda as multifacetadas formas de representação que a ficção pós-moderna oferece, mais além ainda nos leva a seguinte afirmação de Schlegel em “Carta sobre o Romance”:

 

É verdade, você afirmou que o romance seria aparentado, acima de tudo, com o gênero narrativo e até mesmo com o épico. Mas devo lembrar-lhe, primeiramente, que uma canção pode ser tão romântica quanto uma história. Pois, afinal, quase não posso conceber um romance que não seja uma mistura de narrativa, canção e outras formas. (SCHLEGEL, 1988, p. 68.).

 

Dessa forma, podemos reconhecer que a aparente rigidez conceitual apresenta certas falhas ao oferecer espaços de flexibilização que nos permitem aqui encaixar os romances em questão, a despeito de sua condição pós-moderna.  É este exatamente o espaço onde podemos evocar o caminho conciliatório oferecido por Wolfgang Iser com a sua Estética da Recepção, quando enfatiza que a assimetria entre texto e leitor produz espaços vazios ou lacunas que precisam ser negociados (p.9). Além disso, ele afirma que, quando ocorre a substituição da estética clássica pela desconstrução, também ocorre o seguinte:

 

As questões sobre literatura que, no passado, seriam formuladas com naturalidade começaram então a ser percebidas como decorrência de uma abordagem historicamente condicionada da arte. É indiscutível, porém, o seguinte traço fundamental na história da interpretação: as questões formuladas anteriormente não deixam de exercer certa influência quando novas questões estão sendo concebidas. Não sumiram pura e simplesmente de vista. Ao contrário, tornaram-se signos de uma via de interpretação naquele momento bloqueada. Desse modo, as velhas questões servem para apontar novas direções. A velha busca semântica da mensagem deu origem à análise dos meios de construir, de articular o objeto estético. O critério de conciliação de opostos, sempre vinculado ao valor estético da obra, levou à questão de como as faculdades humanas eram estimuladas e afetadas pelo texto literário durante o processo de leitura. (ISER, 1999, p. 24.).

 

 

            Instaura-se assim a atmosfera propícia para a teoria dos jogos ficcionais de Iser, o jogo livre e o jogo instrumental, em que os movimentos da narrativa  e as negociações das brechas de significação vão produzindo um movimento oscilatório entre esses dois jogos, permeado pelo jogo com a diferença. O resultado é que a ficcionalização estará sempre sujeita a mudanças, em decorrência da sua inabilidade para controlar o alvo a que visava. Os desdobramentos dessa relação tensa entre jogo livre e jogo instrumental se especificam ainda mais na medida em que Iser subclassifica os jogos em quatro tipos: agon, jogo de conflitos; alea, jogo baseado na sorte e no imprevisível; mimicry, jogo de imitação; e, por fim, ilinx, fundamentalmente um jogo de carnavalização que resulta numa subversão contínua.

            Assim, mesmo em vista dessa extremamente resumida visão panorâmica das posições teóricas tão distintas aqui apresentadas, podemos constatar que Jasmine e Alias Grace, graças às suas especificidades e complexas e bem elaboradas teias narrativas,  podem ser objetos de interpretação não só à luz  da crítica desconstrutiva  e dos Estudos Culturais, assim como pela via de certos conceitos da crítica mais tradicional,  em função principalmente do caminho conciliatório oferecido pela Estética da Recepção e dos jogos textuais de Iser.

 

BIBLIOGRAFIA                                       

ATWOOD, Margaret. Alias Grace. New York: Anchor Books, 1996.

   FELSKI, Rita. Beyond Feminist Aesthetics: Feminist Literature and Social Change. Cambridge: Harvard University Press, 1989.

ISER, Wolfgang. Trad.: Bluma Waddington Vilar e João César de Castro Rocha. “Teoria da Recepção: Reação a uma Circunstância Histórica”. J. C. de Castro Rocha, org., Teoria da Recepção. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.

JAMES, Henry. Trad.: Paulo Henriques Britto. A Arte da Ficção. São Paulo: Ed. Imaginário, 1995.

____________. Trad.: Paulo Henriques Britto. A Morte do Leão, Histórias de Artistas e Escritores. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

MUKHERJEE, Bharati. Jasmine. New York: Fawcett Books, 1991.

SCHLEGEL, A.W. “Carta sobre o Romance”.Trad. de Victor-Pierre Stirnimann In: Conversa sobre a Poesia. São Paulo: Iluminuras, 1988.

WOOLF, Virginia. “Modern Fiction.” M. H. ABRAMS et al, eds. The Norton Anthology of English Literature. New York: Norton, 1993.  

 


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