EDIÇÃO Nº 11 volume I, Outubro - Dezembro 2006

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Homenagem a Carlos Drummond de Andrade

Querido e saudoso amigo

Carlos Drummond de Andrade,

quisera que esta fosse realmente mais uma carta igual a uma daquelas tantas que te enviei um dia e para as quais tinhas sempre as palavras certas, rápidas e generosas em resposta. Não , eu não me iludo. Estou falando ao vento, sem esperar som do outro lado, mesmo que me escutes o secreto pensamento e saibas de antemão o que a pena escreve e o que a voz, neste momento, amplia. Sim, poetamigo, é aquela a quem chamaste “a doce menina” que te escreve agora, passados dez anos da tua falta, aplacada pela presença dos teus livros na estante e pela tua fala viva ao longe na vitrola.

Quis o destino – ou tu mesmo, quem sabe, daí, com teu permanente humour , - que tenha eu recebido, através de teu fiel amigo Plínio, a honra de te invocar neste triste aniversário. Sofri muito, amigo, sofremos todos naquele dia chuvoso e cinza, 17 de agosto de 1987, quando decidiste partir. Naquele momento, toda a nação brasileira lamentava a morte do nosso maior poeta, mas, acima disto, chorávamos a ausência do amigo maior de todos nós, aquele com um coração em que cabia o mundo, pois sentias as grandes dores e as pequenas alegrias humanas com a rara sintonia dos escolhidos. Recordamos teus pálidos olhos azuis escondidos sob os óculos – sintoma do teu acanhamento e do teu interior em turbilhão -, o riso torto, amargo e doce, a cabeça pensa, os braços cruzados, a atitude de perplexidade diante deste imenso e inexplicável sentido de existir. Tu eras todos nós, Carlos, aquele que sabia do grito mineral das pedras, da dimensão sábia dos animais, da porosidade das coisas, da aventura humana. Cantaste a tua aldeia, a Itabira da memória, e o Rio da tua adoção, mas cantaste realmente o mundo, o vasto mundo de todos os Raimundos com ou sem solução. “ Gauche na vida”, apresentaste o nosso lado precário e absurdo, a nossa incompatibilidade com o mistério que nos foi legado, buscando-lhe, na penumbra, os vestígios de significado, a aparente falta de sentido. Tinhas a dimensão do trágico que nos marca, mas tinhas também, escondido na mina mais profunda, o raro prazer de rires disto tudo, sabendo que o minuto escoado entre a dor e o espanto é sagrado por ser único e pleno de beleza. Era a tua alma abissalmente mineira, guardiã dos segredos e tesouros que não eram só teus mas de toda criatura. Tua figura modesta e altiva, teu porte humilde e orgulhoso, tua presença esquiva e solidária eram as marcas da dignidade e da correção de teu caráter. Nós, privilegiados amigos, sabemos bem disto.

Hoje, temos a tua ausência e como dói não encontrar tua voz do outro lado da linha ou a tua comprida coluna no jornal, às 3 as e 5 as e sábados, falando do prosaico cotidiano com a dimensão do filósofo e dos grandes impasses do nosso tempo com a brandura e graça chapliniana. Quanto custa não encontrar mais sob a porta o envelope esperado com a tua letra conhecida e o conteúdo da carta com tua palavra, teu carinho fraterno. Quanto é melancólico passar por tua rua e alçar os olhos para a tua varanda e saber que agora habitas nuvens. Ficamos todos mais pobres, mais tristes, mais sozinhos. Sei que tua obra é imortal, que estás destinado a uma imortalidade que só a verdadeira obra de arte concede. Sei que ficarás, por tua palavra, para sempre, mas isto nos consola só em parte, porque choramos pela linha de afeto que nos unia.

Nestes dez anos passados, muita coisa mudou, Carlos, o mundo já é outro e, se aqui estivesses, saberias para nós decodifica-lo com precisão e astúcia. Nós mesmos mudamos. Se pudesse, te contaria tanta coisa, os fatos que não viste, os pequenos acontecimentos, as grandes transformações. Ouvirias e sorririas, do jeito torto, mistura de entendimento e compaixão. Pessoalmente, poetamigo, foi naquele dia 17 de agosto que vi o que era a morte e aprendi rebeldemente a aceita-la com certo silêncio contido e certa noção de liberdade: soube que a morte é parte da vida ou é a parte que melhor a explica e, assim, me fortaleci para as futuras perdas que viriam. Tive também, neste tempo, algumas alegrias, porém não mais coloridas pelos olhos ardentes juvenis, mas patinadas por mais dez anos vividos e acatadas com menos ardor e mais compreensão.

Hoje, estou eu e todos os teus amigos do Sabadoyle te invocando à memória e à recordação. Tua falta é presença intensa na vida daqueles que te amam, apesar destes dez anos sem a palavra amiga, a verticalidade modelar, a profunda humanidade, o verso único. Porém, sabemos todos também do teu compromisso com a urgência da vida e com tudo aquilo que se nos apresenta a cada instante. Esta foi, com certeza, a lição da tua poesia – a aceitação plena da condição humana -, a constatação de ossa precariedade e dos minutos de ouro e cinza por que passamos. Por isso, repito aqui hoej, dez anos depois, aquele poema que talvez tenhas ouvido naquele dia, entre o barulho seco do cimento fresco, as luzes dos fotógrafos, as flores amontoadas e o silêncio de todos sob aquele céu nublado daquele dia frio. Minhas palavras, perplexa e dolorosamente, clamavam pela resistência à dor, pela aceitação e esperança em relação à vida, apesar de tudo. Este é o poema que te escrevi para aquela hora e que, mais uma vez, agora, serve para aplacar saudades e reforçar certezas:

Por mais que

- “Psiu... Não acorde o menino”

CDA

Por mais que a dor irrompa,
a voz se denuncia
e a manhã se expande
na dança dos ponteiros.
Por mais que a dor perturbe,
as mãos cotidianas
avançam sobre
nuvens e a paisagem.
por mais que a dor destrua,
os poros sempre expostos
se refazem em seus espaços
definidos.
Por mais que a dor corrompa,
a vida estabelece pactos de auroras.
Por mais que a dor agrida,
sobrevém – à revelia –
todo o ritmo.
E a ausência,
– ó dor –,
que é presença no ar,
recompõe as formas do dia.

Assim, poetamigo, recebe de todos os teus amigos aqui presentes e também de todos que já partiram, Cyro, Afonso e Nava, o fraternal pensamento, a saudade coovida, e, da tua amiga que te fala, aquela de que disseste que “há de sempre ter a alma cristalina”, a emoção sentida e a dor amenizada quando a memória te traz como um presente à tona.

Esta, como vês, é mais uma carta, um pouco diferente daquelas que te mandava e a que respondias prontamente. Ao vento, esta vai em ecos respondendo-se a si mesma. É agora a forma que tenho de te escutar. Recebe-a com o teu ouvido atento e a tua alma generosa no recôndito das novas minas em que te abrigas. Olha por mim, olha por todos nós aqui reunidos e dá-nos a tua temperança, a tua benevolência, o teu rigor e, acima de tudo, o ardor da paixão diante do mistério a que chamamos vida.

Com todo o carinho de sempre e para sempre da tua amiga,

Teresa Cristina

(Teresa Cristina Meireles de Oliveira,
16.8.1997, no décimo aniversário da morte de
Carlos Drummond de Andrade, no Sabadoyle)

 

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