O avanço pela espiral de Avalovara

 

O futuro é dado ou está em perpétua construção? É uma ilusão a crença em nossa liberdade? É uma verdade que nos separa do mundo?A questão do tempo está na encruzilhada do problema da existência. [1]

 

 

Este pequeno texto é uma tentativa de apresentar algumas idéias que vem sendo discutidas em um trabalho maior sobre Avalovara , de Osman Lins. A proposta principal é aproximar-se da questão essencial: Tempo. Não há como se manter fora da órbita de tal questão. É um problema latente para todo o conhecimento humano. Do apriorismo newtoniano às idéias atuais da Cosmologia, a ciência moderna vem tentando responder a esta questão que como afirma Prigogine está na nossa encruzilhada [2]. No campo da filosofia, pensadores como Heidegger, Popper e Bergson mostraram a incompatibilidade do apriorismo com o indeterminismo da realidade. Hoje mais do que em qualquer tempo é necessário que esses dois campos se aproximem para tentar colocar novas luzes na questão.

Sem dúvida, Avalovara é uma tentativa de Osman Lins de entender e responder a algumas perguntas, que neste trabalho reduzo a duas: a questão do tempo e a origem do Universo . Para o bom leitor, fica claro que elas são o mesmo. O autor pernambucano de forma mítica [3] inaugura a sua Cosmogonia (do grego Kosmogonos) e deixa bastante clara uma divisão: o espaço é representado pelo quadrado, o tempo é representado pela espiral. Neste breve momento nos concentraremos na espiral. Baseado numa geometria inédita [4] em termos cosmológicos, Osman Lins divide a questão do Tempo em Avalovara , em dois temas: A espiral e o quadrado , que se divide em dez partes no livro e O relógio de Julius Heckethorn que se divide em outras dez partes [5]. A espiral parte, como tudo o que existe, do princípio das curvas, que rege a espiral, mantendo seu movimento uniforme. Ignora-se sua origem e seu fim. é uma entidade sem limites. A mecânica que rege a espiral é tão rígida quanto a que rege os astros.

Com o que foi colocado até aqui é possível afirmar:

A) O Universo de Avalovara obedece ao princípio das curvas que rege uma espiral em movimento uniforme.

B)Esta espiral não tem começo, nem fim: Idealmente, ela começa no Sempre e o Nunca é seu termo. [6]

O Cosmos de Avalovara é eterno e em constante movimento. A espiral obedece a uma rígida mecânica que impede o seu colapso ou paralisia. Labirintos seriam a exemplificação de uma arritmia no movimento. Osman Lins reafirma que a espiral é o tempo e que o espaço é o quadrado. Então podemos concluir que, primeiro, o tempo é eterno, segundo, que está em constante movimento e terceiro, e mais fantástico, que o espaço deriva desse tempo que inicia no sempre e o nunca é o seu termo. Isso dito, surge uma abertura para formular a seguinte questão: Se a espiral-tempo é eterna, está em constante movimento uniforme, e o espaço-quadrado do romance é uma manifestação nesta espiral, pergunto: O Tempo em Avalovara é um axioma? Temos aqui um apriorismo?

Diante do que foi exposto acima é inegável a existência de um Tempo eterno que serve de arcabouço para a manifestação do real. O movimento das curvas e a espiral funcionam como uma convenção nos moldes de Poincaré. [7]Teria nosso autor caído nas garras de uma estrutura apriorística? Sobre o campo instável, o mundo, reina uma vontade imutável [8].

Em Avalovara , além da espiral existem dois outros elementos marcantes, que regem o romance, a frase latina SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS [9] e a mitologia guiada pelo Deus Jano [10]. Tanto a frase quanto Jano são caracterizados no romance pela ambigüidade, o que parece abrir um precedente na rigidez e uma possibilidade de reversibilidade. O improvável surge no sistema que rege Avalovara quando nos aventuramos pela história de Julius Heckethorn, um relojoeiro do início do século XX, que tem na sua família uma tradição de montadores de relógios.

Julius constrói um relógio que trabalha com o imprevisível [11], reproduzindo o que seria uma introdução de uma sonata de Scarlatti. Ele monta o relógio de acordo com a manifestação do real que na sua concepção é a da imprevisibilidade como em um eclipse. Assim quando se espera que se escute a frase musical inteira da sonata de Scarlatti, o imponderável pode acontecer e a frase não ser executada. O relógio de Julius é o marcador do tempo do improvável. Aos saltos ele marca a possibilidade de manifestação do real. Que momento é esse que marca o improvável? Sem dúvida o aparecimento dos dois personagens principais.

Os dois personagens principais do romance penetram uma sala, advindos do movimento rígido da espiral: natureza infinita, como um eterno processo [12]. A forma quadrangular da sala é um corte no movimento espiralado e onde se justifica toda a trama, seus movimentos e personagens [13]. Os temas que surgem a princípio de retorno arbitrário são regidos pela já dita frase: SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS e obedecem a uma Topologia de compensação ao movimento da espiral. O quadrado mágico (sala) é a terra, os personagens são a manifestação do não-equilíbrio.

Concluindo e tentando entender o sistema criado em Avalovara : De um lado temos uma espiral que, ao lado de uma frase em latim e regidas pelo Deus Jano, mantém uma vontade temporal imutável.

Não representa a espiral, igual a Jano, um simultâneo ir-e-vir, não transita simultaneamente do Amanhã para o Ontem e do Ontem para o Amanhã? [14]

 

Por Julius nós temos um relógio que marca o imponderável, que vaga pelo mundo emitindo notas musicais de forma caótica.

Nem sequer ocorre (a quem ocorreria?) que as engrenagens ajustadas e expostas à falha calculada, voluntária, do mecanismo imperfeito marcham calmamente para esse milagre: a confluência, o eclipse . [15]

 

Em outras palavras, num arcabouço temporal rígido ou nem tanto, nós temos a manifestação do real que é da ordem do imprevisível. O Cosmos se movimenta uniformemente e o devir se manifesta de maneira irreversível.

É possível pensar hoje numa cosmogonia que tem um universo em movimento uniforme e fenômenos locais caóticos ou imprevisíveis? Sim. O caminho apontado por Prigogine ou por Mário Novello, cientistas que estão hoje no cerne da questão cosmológica, desmistifica a certeza, incorpora elementos até então estranhos ao cientista como o não-demonstrável e apresenta uma concepção cosmológica de universo muito próxima a de Avalovara . Uma divergência surge: Seria o Tempo irreversível em Avalovara ? A resposta por agora é Não. A temporalidade no livro trabalha com a possibilidade de idas e vindas dentro do sistema, o que se concretiza no duplo nascimento da personagem principal. Mas é uma questão ainda a ser pensada. Para Prigogine o tempo é irreversível, para Mário Novello as viagens no tempo são uma possibilidade ensaiada por Gödel, motivado pelas equações de Einstein. Para encerrar o que não se pode deixar de constatar é a atualidade do pensamento e da estrutura de Avalovara diante dos novos caminhos apontados pela Ciência. O mais impressionante é que Osman Lins afirma que a estrutura de seu livro é derivada de uma estrutura poética de dois mil anos descoberta na Biblioteca Marciana em Veneza. Estiveram os poetas a par do Cosmos durante todo este tempo e permaneceram em silêncio ou Osman Lins é um viajante no tempo?

 

Bibliografia

•  BORGES, Jorge Luis. O Imortal . In: Obras completas de Jorge Luis Borges, volume I. São Paulo: Globo, 2001.

•  ________________. Obras completas Jorge Luis Borges, Volume II. São Paulo: Globo, 2001.

•  GLEISER, Marcelo. A dança do universo .São Paulo: Companhia das Letras,1997.

•  HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos . São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores)

•  _______________. Ensaios e Conferências . Petrópolis: Vozes, 2001.

•  _______________. Heráclito: a origem do pensamento ocidental: lógica: a doutrina heraclítica do logos . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.

•  LINS, Osman. Avalovara . São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

•  ___________. Nove, novena . São Paulo: Livraria Martins Editora.

•  NOVELLO, Mário. O que é a Cosmologia? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2006.

•  ___________. O círculo do tempo . Rio de Janeiro: Campus, 1997.

•  PLATAO. A República . Rio de Janeiro: Ediouro,s/d.

•  ___________. Fédon . Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.

•  ___________. Fedro . São Paulo: Martin Claret, 2001.

•  PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas .São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

•  ___________. As leis do caos. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

 

1. Prigogine, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

2. Para maiores detalhes sobre as discussões sobre o tempo na ciência, ver NOVELLO, Mario. O círculo do tempo. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

3. Dá sentido à sua existência sem nenhuma preocupação com o provável.

4. As idéias sobre a geometria do romance podem ser esclarecidas em GHYKA, Matila. The geometry of art and life. New York : Dover publications,inc ou COOK, Theodore Andrea. The curves of life. New York : Dover publications,inc.

5. Para um melhor entendimento das divisões de Avalovara ler: DELCASTAGNÉ, Regina. A garganta das coisas: Movimentos de Avalovara. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.

6. LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pg 23.Importantíssimo destacar a questão da edição em Avalovara. Como o romance segue uma cosmogonia geométrica-temporal é de suma importância respeitar a forma imposta pelo autor. Infelizmente nem todas as edições do romance respeitaram as idéias originalíssimas, ou nem tanto, de Osman Lins. Recomendo desde já a leitura de duas ou três edições diferentes do livro.

7. Poincaré: Os axiomas geométricos, portanto, não são nem juízos sintéticos, nem fatos experimentais. São convenções.

8. LINS, Osman. Op.cit, pg.37.

9. No romance aparecem duas traduções: O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos e O Lavrador mantém cuidadosamente o mundo em sua órbita. Uma discussão sobre estas traduções será motivo de um trabalho futuro.

10.Janeiro, cujo nome vem do deus Jano, foi acrescentado ao calendário por Numa Pompílio (715- 672 a .C.), sucessor de Rômulo, personagem histórico-mítico que, segundo Plutarco, teria fundado Roma em 21 de março de 753 a .C.Figura das mais singulares, Jano é exceção no panteão romano, visto não haver seu correlato entre os gregos. Tampouco o encontramos nas mitologias indo-européias, e seu surgimento está envolto em incerteza. Uns dizem que nasceu na Cítia (Ásia Menor), outros que seja proveniente de Perrébia, na Tessália (região da Grécia). Algumas versões o fazem filho de Apolo e de Creusa, filha de Ereteu, um dos reis de Atenas.Sua imagem é representada como uma figura de dois rostos.

11. Importante ressaltar que o que chamamos aqui de sistema são as indicações dadas pelo próprio autor de como funciona o livro. Este lado da imprevisibilidade é indicado pelo próprio Osman. Obviamente que o romance e seus personagens traduzem o improvável a cada instante. Este trabalho se preocupa apenas com a cosmogonia (ou seria cosmologia?) criada pelo autor.

12. Ibid.

13. De maneira simples e bela, Osman Lins apresenta o surgimento do humano colocado no espaço.

14. Ibid.

15. Ibid.

 

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