ROSA / HEIDEGGER: QUESTÕES / APROXIMAÇÕES

Priscila Guedes Buares (UFRJ)

 

Vou lhe falar. Lhe falo do sertão.

Do que não sei. Um grande sertão!

Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só

umas raríssimas pessoas – e só essas

poucas veredas, veredazinhas.

 

(Guimarães Rosa)

 

 

Os livros nascem quando a pessoa

pensa. O ato de escrever já é a técnica e

a alegria do jogo com as palavras.

 

(Guimarães Rosa)

 

RESUMO:

Neste trabalho observaremos as aproximações no que diz respeito ao pensar as questões, existentes entre o pensador Martin Heidegger e o autor / leitor / escritor / pensador Guimarães Rosa, em sua obra Grande Sertão:Veredas, escutando, auscutando e dia-logando as questões, tais como, Ser e Não-Ser, bem e mal, a travessia humana e literária, a Linguagem – na Linguagem e pela Linguagem.

 

A vida é questão; vivemos nas questões e pelas questões. E para que a vida seja e sejamos por ela também questões necessitamos pensar – um círculo e não um externar-se, um fazer de fora a poética, o pensar; se fizermos de fora não estamos pensando, estamos conceituando, definindo, o que não se faz poiesis . Não “pensar” como os moldes e imposições da sociedade, enquadrando, classificando, fazendo acepções, divisões, regras, moldes, esquemas, análises... mas pensar como dia-logo, escuta e ausculta do Ser, da vida, do Eu, do outro.

Isso não vale apenas e somente para o âmbito literário como alguns pensam. Crêem que pensar e “pensar” só se “encaixam” – aí, usando o termo classificatório – para a leitura e a escritura de livros, poemas, textos literários, entre outros. Como já dissemos, pensar é vida, questões são vida, a vida é no e pelo pensar, escutar, auscultar e dia-logar as questões. As questões são em-si e no entre-ser da vida como essência a poiesis , a essência de todo pensar e de todo agir. Citando Manuel de Castro:

Esta pressupõe um fazer surgir, um figurar algo a partir do nada (...) Poiesis é, pois, todo agir criativo ou essencial.

 

Ainda citando Manuel de Castro:

(...) o sentido da essência do agir de todo homem se desvela poeticamente.

 

  Rosa e Heidegger dia-logam em si as questões de maneira a aproximarem-se nesse ritual de pensar / escuta do Ser, do outro, do Eu, da travessia, e em todas essas a Linguagem. São travessias a partir e através do mesmo e do diferente, do tão igual e do tão distinto caminho. Citando Heidegger “Caminhos – não obras”.

Nessa caminhada, podemos nos deter aqui em quatro pontos tão repletos de outras questões e tão harmônicos – daí tirando do nosso pensar e dia-logar a chamada “contradição”, “separação”: o Ser e o não-Ser, o bem e o mal, no qual vive o homem nesse experenciar da poiesis , movendo-se no horizonte, no entre da liminaridade, do visível, do não-visível, do ordinário, do extra-ordinário; a travessia humana e literária, que nos leva a pensar a vida dentro da vida sendo, e não fora dela, definindo, conceituando; e, através de todas essas questões a que envolve todas e todo Ser: a Linguagem, como morada do homem, como questão essencial do Ser do homem, do experenciar, do dia-logar com o mundo, com as coisas, com o outro, con-sigo mesmo. Citando mais uma vez Heidegger:

A arte (...) é Poesia. Não é apenas a criação da obra que é poética, mas também é poética a salvaguarda da obra, só que à sua maneira própria; com efeito, uma obra só é real como obra na medida em que nos livramos do nosso próprio sistema de hábitos e entramos no que é aberto pela obra, para assim trazermos a nossa ciência a persistir na verdade do ente.

 

E também citando Guimarães Rosa – e já começando aqui o nosso dia-logo:

Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não tem princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.

 

O homem, dentro de sua travessia, vê questões nas quais não se obtêm respostas... Entra, com isso, num perguntar constante em busca de conceitos, de definições para que sua vida em sociedade se satisfaça. Esse perguntar constante nos mostra o verdadeiro sentido do Ser: o mostrar-se e o desvelar-se, o Ser e o não-Ser nesse horizonte. Nesse experenciar e viver da Linguagem, o homem não tem como sair do círculo poético, da poiesis , da physis para conceituar e assim “crer na vivência completa”. É claro, somos e não somos. Não só nós, mas também tudo que está ao nosso redor e em nós: todas as coisas, a natureza – tão bem pensada por Guimarães Rosa –, o outro, como parte integrante e total da natureza.

Guimarães Rosa, nesse dia-logar constante, intenso e tensional (tensão) de Grande Sertão:Veredas pensa a questão do Ser já com Riobaldo. Riobaldo mostra-se como um tensionador da tensão Ser / Não-Ser, mas “não vive” essa ambigüidade por não se convencer desse experenciar – na verdade, ele vive e não vive; ele se observa dentro dessa tensão, desse horizonte. Citando Grande Sertão:Veredas:

Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser.

 

Também cito Manuel de Castro:

O homem é um ser ético porque está constitutivamente aberto ao Ser, mora na morada do Ser, a Linguagem, isto é, na abertura que ele já desde sempre tem para o Ser e só por isso é homem.

 

Essa é a travessia humana e literária em Guimarães Rosa. O homem, em busca de definições, vive, experencia, pensa e, a partir desse caminhar age, de maneira que não haja o silenciar da poiesis , do poético, essência da vida. Citando novamente Manuel de Castro:

Tratar de pensar a poética da poiesis é se mover no horizonte da liminaridade, da finitude e não finitude de todo homem.

 

Nessa travessia, podemos perceber também o homem e sua relação com a natureza numa tensão de mutualidade, um inter-cruzar, um entre-laçar, uma rede, uma teia em que cada um e todos se fazem sentido, são e não são, harmonizam-se. O corpo em Rosa recebe isso, essa tensão esse agir em favor da physis . Como diz Ronaldes de Melo e Souza “O corpo em Rosa não é um receptor do que ocorre no mundo circundante”.

Por isso, o homem se faz harmonizador de contrários. Observamos isso a partir da tensão e mutualidade entre bem e mal, discutida através de outra questão: o diabo. Citando Grande Sertão:Veredas:

Moço: Deus é paciência. O contrário, é o diabo.

   

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo.

 

O processo de separação e mostra de mal e bem se dá pelo sofrimento. Mas a partir da leitura de Grande Sertão:Veredas observa-se que há a harmonização desses contrários:

O mal ou o bem, então é em quem faz; não é no efeito que dão.

   

 

O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons – todo o grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons?

 

Sendo assim, destacamos mais uma vez que para vivermos é essencial (essência) dia-logarmos, pensarmos, experenciarmos, sermos, não-sermos, harmonizarmos, estarmos no horizonte da Linguagem nela e por ela, nessa tensão, nesse entre-ser do Ser do homem. É aí que somos, é aí que vivemos, é aí que pensamos. O que faz hoje Heidegger e Rosa é nos fazer Ser, pensar, “ambigüizar”, nos mostrar como identidade na diferença, não nos constituindo parte separada e conceituada de um mundo telúrico, de sombras, da caverna, mundo este que precisa ser suplantado. Temos que observar o mundo nessa tensão, como poiesis , que não nos impõe conhecimentos prévios, silenciadores dessa mesma poiesis . Por isso:

A poética da poiesis deve ser buscada sempre e principalmente nas próprias obras, pois é onde ela acontece.

Citando para destacarmos esse dia-logo em Guimarães Rosa e assim terminando esse trabalho:

Lorenz: Fixemos este ponto de partida; e para encaminhar nossa conversa, queria propor-lhe um início convencional: o biográfico, embora ele já não seja tão convencional, se minhas conclusões sobre o que disse há pouco estiverem certas. Nasceu no sertão, aquela estepe quase mística do interior de seu país, encarnada como um mito de consciência brasileira...

 

Guimarães Rosa: Sim, mas para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais; sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo. Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome sueco que na época das migrações era Guimaraens, nome que também designava a capital de um estado suevo da Lusitânia? (...)

 

(...)

 

Lorenz: (...) Mas voltemos a sua biografia...

Guimarães Rosa: Creio que minha biografia não e muito rica em acontecimentos. Uma vida completamente normal.

 

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