O ANJO DECAÍDO E AS CARTAS DE MAMÃE

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo a análise dos contos Um homem muito velho com umas asas enormes de Gabriel García Márquez e Cartas de mamãe de Julio Cortázar à luz dos estudos de Tzvetan Todorov no seu Introduction à la Littérature Fantastique e Irlemar Chiampi em Realismo Maravilhoso . Investigaremos a mudança de perspectiva da literatura fantástica na obra destes dois autores desde os pressupostos clássicos de Todorov até a revolução ficcional hispano-americana dos anos de 1960 e 1970.

Comecemos o nosso estudo por definir, primeiramente, o que vem a ser fantástico eti-mologicamente: o termo fantástico vem do latim phantasticu , por sua vez do grego phantas-tikós , os dois provenientes de phantasia. Refere-se à imaginação, ao que não faz parte do mundo real.

Sob o nome de fantástico se enquadravam as histórias de fantasmas, narrativas maravilhosas, narrativas misteriosas e narrativas sobrenaturais como se seus constituintes fossem da mesma ordem.

Houve várias tentativas por parte de teóricos de uma definição acerca do fantástico. Dentre elas, citaremos quatro: a primeira foi em 1945 com a publicação de Supernatural Horror in Literature , de H.P. Lovecraft. Esta obra se detém no agrupamento de temas em narrativas fantásticas ou sobrenaturais.

Veja-se uma definição do autor de narrativas sobrenaturais, Howard Phillips Lovecraft:

 

 

Nós podemos dizer, de maneira geral, que uma estória fantástica

que pretenda ensinar ou produzir um efeito social ou, na qual o hor-

ror é explicado por meio de regras naturais, não é um conto genui-

namente de grande medo, mas permanece como fato que tais narra-

tivas freqüentemente possuem, em partes isoladas, toques de atmos-

fera que preenchem toda a condição da literatura de horror sobrena-

tural. (LOVECRAFT, 1945:16)

 

Ainda, segundo Lovecraft:

 

 

... devemos julgar uma história sobrenatural não pelas intenções do

autor ou pela simples mecânica do enredo, mas pelo nível emocional

que ela atinge no seu ponto mais insólito. (LOVECRAFT, 1945:16)

Podemos inferir desses fragmentos que a literatura fantástica, segundo Lovecraft, poderia ou não ser educativa, mas deveria ser julgada pelo nível emocional que atingisse, o que não geraria uma multiplicidade de significações, considerando que a emoção citada por ele seria um sentimento coletivo.

Já Louis Vax, contemporâneo de Lovecraft, afirma:

 

a essência do fantástico não seria acessível senão a uma espécie de

intuição intelectual ou mística que escaparia a qualquer controle e poderia

variar de um sujeito para outro. (VAX, 1960:120)

Concluímos daí que a emoção é algo individual, que varia de pessoa para pessoa.

 

A segunda definição é de 1947, com a publicação de Situations I , de Sartre, mais especificamente no capítulo intitulado “Aminadab ou du fantastique consideré comme un langage” . Segundo ele, em se tratando das obras de Blanchot ou Kafka:

 

não existe senão um objeto fantástico: o homem. Não o homem

das religiões e do espiritualismo, engajado apenas pela metade no

mundo, mas o homem-dado, o homem natureza, o homem-sociedade,

aquele que saúda respeitosamente um cortejo fúnebre à sua passa-

gem, que se põe de joelhos nas igrejas, que marcha dentro do com-

passo atrás de uma bandeira. (SARTRE, 1947:127)

 

Em suma, o homem comum é o ser fantástico.

 

Sartre procura estabelecer um divisor de águas entre o gênero fantástico até o séc.XX, ou seja, o fantástico tradicional, e o fantástico realizado a partir daí por autores como Kafka e Blanchot.

A terceira definição surge em 1952, com a publicação de The Supernatural in Fiction , de Peter Penzoldt. Esta obra explica o fantástico via psicanálise, fazendo uma análise psicológica dos autores para explicar a obra e não se detendo somente na literatura.

A quarta definição é a de Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica , publicada em 1970. Esta obra faz um estudo detalhado de aspectos formais das narrativas a partir de obras literárias. Vejamos como Todorov define o fantástico:

 

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo

das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre

uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos aconteci-

mentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente expe-

rimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por

assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesita-

ção encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no caso

de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem.

Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o

texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpre-

tação “poética”. Estas três exigências não têm valor igual. A primeira

e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda pode

não ser satisfeita. Entretanto, a maior parte dos exemplos preenchem

as três condições. (TODOROV, 1970:39)

 

A hesitação e a atitude para com o texto, isto é, a rejeição da leitura alegórica ou poética da obra, são necessárias para que o fantástico se constitua. A identificação do leitor com o narrador ou personagem é desejável, mas não necessária.

Todorov define o fantástico como um gênero vizinho a dois outros: o maravilhoso e o estranho. O fantástico, segundo ele, dura apenas o tempo da hesitação comum ao leitor e à personagem. Se ao final da narrativa, leitor ou personagem optasse por uma explicação real ou científica, estaríamos diante do estranho, e se optasse por uma explicação sobrenatural, estaríamos diante do maravilhoso. Concluímos daí, que no fantástico proposto por Todorov a hesitação deveria seguir do início ao fim da narrativa.

Todorov tem em comum com Lovecraft a adoção do critério de definição do fantástico através do sentimento produzido no leitor. A diferença entre ambos reside no tipo de sentimento. Todorov aponta a hesitação como cerne do fantástico, Lovecraft aponta o medo:

 

O teste básico do verdadeiro sobrenatural é simplesmente este –

se é ou não suscitada no leitor uma profunda sensação de medo e

de contato com esferas e poderes desconhecidos ... (LOVECRAFT, 1945:16)

 

Da mesma feita Peter Penzoldt afirma:

 

 

... com exceção do conto de fadas, todas as histórias sobrenaturais

são narrativas de medo que tiram partido de nossa dúvida sobre o que

consideramos ser pura imaginação e não é, afinal, realidade. (PENZOLDT, 1952:9)

 

Peter Penzoldt considera que os contos de fadas são narrativas nas quais o medo e a hesitação não habitam, por terem abdicado do compromisso com o real e aderido abertamente às convenções animistas.

Na obra de Todorov, a temporalidade da hesitação não é considerada. O ato de hesitar é para o teórico algo atemporal, universal e transcultural. Ele não considera a hesitação no tempo e no espaço. Algumas obras e autores que não são reconhecidos em sua época o são em outra pela mudança de valores e pelos avanços tecnológicos. O tempo passa, os paradigmas mudam e, por essa razão, a hesitação diante de um fato pode passar a ser nula num dado momento. Este problema foi abordado por Jauss quando tratou em sua obra do distanciamento entre o ato de criação e a leitura da obra.

Voltando ao ponto anterior, as leituras alegórica ou poética poderiam pôr fim ao fantástico, mesmo que a hesitação permanecesse até o fim por colocá-lo no plano do real. O fantástico tem caráter representativo que lhe permite subsistir na obra ficcional, pois utiliza termos que designam uma realidade não-textual. A poesia, no entanto, não é representativa, embora comporte elementos dessa representação.

Segundo Todorov:

Concorda-se hoje que as imagens poéticas não são descritivas, que

devem ser lidas ao puro nível da cadeia verbal que constituem, em

sua literalidade, e não realmente naquele de sua referência. A ima-

gem poética é uma combinação de palavras, não de coisas, ... (TODOROV, 1970:67)

 

A alegoria denota um sentido figurado que se opõe ao sentido literal do texto. Ela é, segundo Todorov, uma proposição de duplo sentido (literal e alegórico), que tanto pode ser considerada em um aspecto(alegórico) ou ser considerada em conjunto. Mas , de qualquer forma, o duplo sentido é indicado na obra, desprezando qualquer interpretação por parte do leitor.

Passando às figuras retóricas, Todorov cita três traços que favorecem a constituição do fantástico, na medida em que preparam o leitor para o acontecimento sobrenatural:

 

•  o maravilhoso hiperbólico que se comporta como um prolongamento da figura

retórica. O exagero conduz ao sobrenatural. Exemplo: as imensas serpentes

nas narrativas de Sindbad:

 

 

...serpentes tão grossas e compridas que não havia uma que não engolisse

um elefante. (Mil e uma noites, 214);

 

•  a figura retórica que realiza o sentido próprio de uma expressão figurada. Exemplo:

 

 

O indiano favorecia o jogo. Como fosse baixo, encolheu-se como bola, e

rolava sob os golpes dos atacantes, que o seguiam por todos os lados em

um encarniçamento inaudito. Rolando assim de cômodo em cômodo, de

quarto em quarto, a bola atraía atrás de si todos os que encontrava(Mil e uma noites, 84).

Assim, da expressão “encolher-se como bola”, passa-se a uma verdadeira metamor-fose.

 

•  o sincronismo entre a figura de linguagem e o sobrenatural numa relação funcional, ou, nas palavras do próprio autor:

 

 

uma série de comparações, de expressões figuradas ou simplesmente

idiomáticas, muito correntes na linguagem comum, mas que designam,

se forem tomadas ao pé da letra, um acontecimento sobrenatural. (TODOROV, 1970:88)

 

Exemplo: Vénus d´Ille de Merimée.

 

 

Dizer dos olhos de um retrato que parecem vivos é uma banalidade; mas aqui

esta banalidade nos prepara para uma “animação” real. Mais adiante, o recém-

casado explica por que não quer enviar ninguém para buscar o anel deixado no

dedo da estátua: “Aliás que pensariam aqui de minha distração? (...) Eles me

chamariam de marido da estátua...”(p.166) (TODOROV, 1970:88)

 

 

Todorov considera que a literatura para ser considerada fantástica deve satisfazer três exigências: a hesitação, a existência de aspectos formais dessa ambigüidade na trama da história e a escolha dos níveis de leitura(natural ou sobrenatural).

Ao final de seu livro, Todorov aponta os novos rumos assumidos pela Literatura do séc.XX. Ele considera a obra de Kafka como inaugural do fantástico contemporâneo. Na narrativa de Kafka, em especial, A Metamorfose , o acontecimento sobrenatural se naturaliza ao longo da narrativa e, de alguma forma, parece possível de acontecer. O irracional faz parte do jogo e a hesitação não é uma característica da personagem, talvez seja do leitor.

Todorov admite a proximidade de sua teoria com a teoria proposta por Sartre em seu artigo “Aminadab ou du fantastique consideré comme um langage”, em Situations I.

 

Segundo Sartre:

não existe senão um objeto fantástico: o homem. (TODOROV, 1970:127)

Esse homem é o homem comum e o fantástico poderia acontecer dentro do cotidiano da vida de qualquer um de nós.

 

O Realismo Maravilhoso

 

A teórica Irlemar Chiampi começa seu estudo denunciando o uso indiscriminado do termo realismo mágico pela crítica hispano-americana para designar a renovação ficcional ocorrida nas décadas de 1940 e 1950, numa tentativa de nomear a produção que se desenvolvia e de conseguir abarcar tanto a complexidade temática quanto explicar a passagem da estética realista-naturalista para uma visão mágica da realidade. O termo mágico foi cunhado em 1925 pelo historiador e crítico de arte Franz Roh com a publicação de um livro sobre a produção pictórica do Pós-Expressionismo.

O termo Realismo Mágico revela a preocupação dos críticos em constatar uma nova atitude do narrador diante do real. Esse real estava marcado por um modo complexo, esotérico e lúdico que se tornou uma camisa de força que impossibilitava a penetração dos mescanismos de construção de um outro verossímil pela análise de núcleos de significação ou pela avaliação objetiva de seus resultados poéticos.

Por essa razão, Irlemar Chiampi, na sua proposta de um Realismo Maravilhoso explica as razões de sua opção pelo termo “maravilhoso” ao “mágico” . O termo “maravilhoso” para significar a nova narrativa hispano-americana não traz em si a contradição com o natural. Maravilhoso é o que contém maravilha, do latim mirabilia . Dele provém mirare que significa olhar e que está na etimologia de milagre e miragem. É também termo consagrado pela Poética.

Por outro lado, o termo “mágico” nos levaria à magia e implicaria uma atitude do narrador. O termo magia nos liga ao ocultismo, crenças, mitos, ritos e assim, a realidade se torna algo a ser interpretado.

O “realismo mágico” era associado à mentalidade do índio pré-colonial e passa a representar o modo de o indígena converter o sobrenatural em real, segundo Miguel Angel Astúrias. Borges, por outro lado, recorre ao termo magia devido à insipiência de teorias do romance.

 

A magia, segundo Carpentier, funciona como um sistema de nomeação ao inominado americano:

Y quisiera hablarle de otras cosas de América, pero no

teniendo la palabra que las define ni el vocabulario necesario,

no puedo contárselas.” Y me di cuenta, un buen día, de que

era ese vocabulario y eran esas palabras las que teníamos que

hallar. (CARPENTIER, 1975:30)

 

No “realismo maravilhoso”, o acontecimento insólito não causa o embate. Não há necessidade de escolha entre uma explicação natural ou sobrenatural, porque o sobrenatural tem uma essência que o qualificaria como natural, e o desconhecido incorpora-se ao real. A maravilha está na realidade. O evento possui probabilidade interna. O realismo maravilhoso se qualifica pela relação entre o encantamento e o relato.

O efeito da causalidade no realismo maravilhoso difere das narrativas fantástica e realista. Na fantástica, a causalidade é questionada pela falsidade das hipóteses explicativas, na realista a causalidade é explícita, há uma relação clara entre causa e efeito, e na narrativa maravilhosa, a causalidade é simplesmente ausente: tudo pode acontecer. A questão aqui é apresentar o real e deixar que o discurso o legitime como sobrenatural e, assim, o encantamento passa através do discurso do real para o irreal. Os personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam nunca diante do sobrenatural. A impressão que temos é que tanto o natural quanto o sobrenatural têm validade, peso e medida iguais, o direito de existir promove o encontro, uma manifestação de complementação entre o que existe e o que acreditamos que possa existir.

No “realismo maravilhoso” são apresentados questionamentos considerados atuais aos códigos sócio-cognitivos do leitor, sem instaurar o paradoxo porque as referências que temos, e são freqüentes, já têm um referencial supra-racional.

Daremos aqui uma explicação que se faz necessária para que não haja confusões entre o Realismo Maravilhoso e o Realismo Maravilhoso Americano.

O Realismo Maravilhoso Americano é exemplificado por Irlemar Chiampi com um exemplo extraído do romance El reino de este mundo (1949) de Alejo Carpentier. O romance conta a história do Haiti, na figura do negro Ti Noël que volta ao Haiti depois de alforriado. A passagem é valiosa, pois há na narrativa a união de elementos díspares procedentes de culturas heterogêneas que configuram uma nova realidade histórica, que subverte os padrões convencionais da racionalidade ocidental. O realismo maravilhoso americano foi cunhado por Carpentier para designar o conjunto de objetos e eventos reais que singularizam a América no contexto ocidental. No caso de Carpentier, pretendeu-se resgatar o significado básico de um acontecimento histórico no continente que foi o afrancesamento e os sincretismos culturais que se acentuaram durante o reino de Henri Christophe, cozinheiro durante a colonização francesa e o primeiro rei negro da América. E a América era vislumbrada como o repositório de prodígios naturais, culturais e históricos, que a singularizam como entidade independente do resto do mundo.

 

Análise dos Contos

 

O conto “Um homem muito velho com umas asas enormes” de Gabriel García Márquez apresenta uma variante dos Temas do Eu, que é a aparição do ser sobrenatural enquanto “Cartas de mamãe” de Julio Cortázar apresenta uma variante dos Temas do Tu, que é o amor a mais de dois.

O conto de García Márquez narra o aparecimento de um anjo na casa de Pelayo e Elisenda durante um período de chuvas ininterruptas. A primeira sensação que é descrita é a hesitação que é o cerne do fantástico, mas a hesitação que deveria se prolongar na narrativa é posta como algo fugaz, momentâneo, que dá lugar a uma indiferença que produz uma escala descendente. A hesitação que seria levada ao ápice através de acontecimentos cada mais intrigantes na narrativa é desconstruída em García Márquez. Nele , a hesitação inicial das personagens acerca da identidade do estranho é logo desfeita com a afirmação da vizinha:

 

Apesar disso, chamaram para vê-lo uma vizinha que sabia todas as

coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro.

- É um anjo – disse-lhe. – Não tenho dúvida de que vinha para buscar o

menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou.”

(GARCÍA MÁRQUEZ, 1972:10-11)

 

Assim, a introdução do sobrenatural na narrativa não cria a tensão entre o real e o irreal, e esse sobrenatural é posto ao nível do real, isto é, o sobrenatural é aceito tacitamente como natural. O sobrenatural nesse contexto é real:

 

O anjo andava se arrastando, para cá e para lá, como um moribundo

sem dono. Tiravam-no a vassouradas de um dormitório e, um momento

depois, o encontravam na cozinha.” (GÁRCIA MÁRQUEZ, 1972:17)

 

O que nos chama a atenção, a priori , é a figura do anjo que assume marcas incomuns e o seu aspecto contradiz o cânone clássico do que seria um anjo. O que seria compreensível imaginar? Imaginaríamos um anjo rafaelita ou talvez um ser de beleza indizível com vestes tão alvas quanto algodão e asas resplandescentes, cercado daquela aura mítica, anunciador de boas-novas, como no texto bíblico:

 

E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada;

o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres.

E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava

que saudação seria esta.

Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça

diante de Deus. (Lucas 1:28-30)

 

Mas o que temos é o seguinte:

 

 

Estava vestido como um trapeiro. Restava-lhe apenas uns fiapos

descorados na cabeça pelada e muitos poucos dentes na boca,

e sua lastimável condição de bisavô ensopado o havia desprovido

de toda grandeza. Suas asas de grande galináceo, sujas e meio

depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal.

(GÁRCIA MARQUEZ, 1972:10)

 

A idéia do anjo é desmitificada, a figura é destituída da aura celeste, mas sua aparição tem algumas marcas de verossimilhança com o texto bíblico, considerando que o anjo aparece no terceiro dia, em uma época de chuvas que lembram o dilúvio:

 

E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.

E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus,

para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles

para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.

(Gênesis 1:13-14)

 

Ao longo da narrativa, tudo o que se refere ao cânone é desconstruído, revelando uma crítica mordaz à religião que foi o grande avatar na conquista das Américas. Em nome da religião, a América foi conquistada, ou talvez, devorada, pelo colonizador. Além disso, os povos da América foram colonizados, tiveram sua cultura e sua língua suplantadas pela língua do colonizador. Na narrativa, o anjo se comunica através de uma língua incompreensível e essa incompreensão gera o isolamento e a subjugação, a intolerância à diferença, à alteridade, que não têm lugar na narrativa, a não ser junto com a criação no galinheiro. Há aí um jogo interessante com a palavra criação. A criação animal é colocada ao mesmo nível da criação poética e da criação divina. A criação poética é posta em evidência.

O ato de criação aqui descrito serve de conformação de elementos do sistema de linguagem que estruturam o texto. Nomear significa dar uma existência e renomear encontrar novos fluxos de sentido, inaugurar uma nova diretriz, onde o ato de criação, de dar existência equipara o poeta a Deus e o torna dessa maneira imortal, imortalizado na sua própria criação.

Essa criação, no caso de García Márquez, revitaliza questões formadoras da literatura hispano-americana, levando a conceituações engajadas, compromissadas com questões de afirmação de nacionalidade e do tratamento de outras que permeiam a formação de um povo e o repensar do sentido do ser no binômio colonizador versus colonizado, a recriação através da arte de um povo.

Vemos, ao longo da narrativa, que o lugar do anjo não se determina. A figura é constituída de forma tão deplorável e patética que à sua alteridade só resta o não-lugar, a vaguidade na narrativa, os vários cantos da casa. Ao final da narrativa, o anjo parte numa terceira forma, numa forma híbrida de sua natureza. Ele parte despojado das essências humana e divina, prevalecendo apenas o elemento da diferença: as asas. Como ave ele parte, regenerado como uma águia e renascido como a lendária Fênix.

No conto se pode perceber o imbricamento de traços antagônicos: a racionalidade e a irracionalidade. O aparecimento do ser maravilhoso como representação do imaginário humano se racionaliza com sua aceitação como realidade, ao passo que o racional adquire marcas de irracionalidade no fato dessa mesma aceitação.

Nesses termos, o liame que separa o real (cujo eixo é o mundo empírico) do irreal e o racional do irracional desaparece, abrindo a possibilidade na narrativa para o amálgama entre o natural e o sobrenatural. A convivência de ambos (natural e sobrenatural) segue complementariamente até o final da narrativa.

A figura do narrador aparece no texto como testemunha da história já sucedida que conduz o leitor através da narrativa e usa das figuras avalizadas da vizinha experimentada (anciã) e do pároco(religião) e ainda das notações tátil, auditiva e olfativa para garantir credibilidade à narrativa.

A situação insólita do anjo na casa de Pelayo e Elisenda nos lembra a situação de Gregor Samsa em Die Verwandlung ( A Metamorfose ). Na vida comum de pessoas comuns, que poderiam ser um de nós, acontece o fantástico. O anjo e Gregor têm em comum a mesma relação com o dinheiro. O anjo muda a vida de Pelayo e Elisenda. Através dele, eles tiveram acesso ao capital. Ele(anjo) foi transformado em animal de circo e vivia em cativeiro(galinheiro), mas não participava do seu próprio evento; estava alheio a tudo e não dizia palavra, ou melhor, palavra compreensível. E se no começo da narrativa, ele era suportado porque gerava lucro, ao final quando deixa de ser fonte de renda, torna-se um estorvo e diante da rejeição desaparece.

Gregor Samsa era, do mesmo modo, fonte de renda e perde sua razão de ser quando acorda transformado em barata certa manhã porque se torna inapto para o trabalho e não tem mais acesso ao capital. Ele perde, dessa forma, o vínculo familiar e sua importância diminui. No começo da narrativa, ele não cabe na cama, no final ele é varrido com uma vassoura.

Tanto em García Márquez quanto em Kafka, o sobrenatural é aceito, se naturaliza e é expulso da narrativa. Não há lugar para a diferença.

O anjo de García Márquez é uma demonstração de um processo de antropofagia no qual a cultura européia é deglutida, assimilada e, ao final, desconstruída para ser reanalisada e apresentada sob um novo prisma. Assim, a expressão poética do real americano(novo romance hispano-americano) trata o maravilhoso como parte da sua história que surge através das crônicas dos viajantes para a designação do ser da América, que aos olhos colonizadores era algo inapreensível racionalmente, tornando-se um modo particular de se falar da cultura americana: o Real Maravilhoso Americano.

Em “Cartas de Mamãe”, de Julio Cortázar, Luis e Laura vivem uma vida comum como qualquer casal numa metrópole. Eles saem da Argentina e vão morar em Paris, afastados da família depois que contraem matrimônio. Laura era noiva do irmão de Luis, Nico. Durante a doença de Nico, Luis e Laura se envolvem e se casam. Nico morre durante a lua-de-mel deles. A mãe de Luis e Nico permanece em Buenos Aires e se comunica com o filho através de cartas.

Essas cartas têm um caráter memorial, pois através delas Luis volta ao passado, à infância, à vida com a mãe e o irmão. E esse passado se mostra contínuo no recebimento das cartas regulares da mãe, invadindo e esfumando o presente que se apresenta como uma ruptura, devido à mudança de país e de idioma como uma tentativa de recomeço. As cartas da mãe trazem o outro, a figura do passado que volta, acionado pela memória e dando a Luis a sensação de “liberdade condicional”.

No entanto, em uma das cartas da mãe, o acontecimento insólito começa a se construir gradativamente na narrativa. Ele é, a princípio, uma troca de nomes, uma confusão da mãe na escritura da carta:

 

Era perfeitamente absurdo, mas estava lá. Sua primeira

reação, depois da surpresa, do golpe em plena nuca, como

sempre era de defesa. (CORTÁZAR, 2006:11)

 

Algum tempo depois, nas conjecturas de Luis, a confusão passa à senilidade

 

o nome estava colocado numa frase incompreensível e absurda,

em algo que não podia ser outra coisa além de um anúncio de

senilidade. (CORTÁZAR, 2006:13)

Diante da afirmação da mãe “Hoje de manhã Nico perguntou por vocês”, Luis pensa em apagar o nome do irmão e trocá-lo por Victor(primo) que, racionalmente, era quem poderia ter perguntado por eles. Por fim, decide jogar fora a carta.

Depois de algum tempo, Luis recebe uma segunda carta da mãe, na qual ela fala sobre

 

a provável ida de Nico à Europa:

 

 

... e então algumas reflexões melancólicas sobre o quanto

ela ficaria sozinha se Nico também fosse para a Europa como

parecia, mas esse era o destino dos velhos,... (CORTÁZAR, 2006:19)

 

Essa segunda alusão ao nome de Nico, novamente, faz com que a hipótese de senilidade se converta em loucura:

 

... passou duas horas num banco de jardim relendo a carta

de mamã, perguntando-se o que deveria fazer diante da

insanidade. (CORTÁZAR, 2006:19)

Luis decide mostrar a carta à esposa. Convencidos de que a mãe não estava bem, pedem ajuda ao tio Emílio para averiguar o que se passava com ela. O tio responde ao final de alguns dias que a mãe gozava de perfeita saúde, mas se dizia cansada por passar muitas camisas.

Alguns dias depois, Luis e Laura recebem uma terceira carta, na qual a mãe informa o dia, hora e estação da chegada de Nico, e eles se desesperam:

 

Pouco a pouco deslizou pelo sofá, e deixou que seu rosto

vestisse a inútil máscara das mãos unidas. Ouvia Laura

chorar, ... (CORTÁZAR, 2006:25)

No dia e hora marcados, Luis e Laura vão à estação, cada um separadamente, para comprovar se o homem descrito pela mãe era realmente Nico. O ápice da narrativa é a aparição de um homem na estação de trem que acusava semelhanças com o irmão falecido:

 

... Nico era canhoto como ele, tinha as costas um pouco largas, essa forma de ombros.

(CORTÁZAR, 2006:28)

Apenas por essa semelhança, Laura deixa transparecer uma expressão que Luis conhecia bem e ele conclui que era com o irmão que Laura tinha os pesadelos que já eram freqüentes:

 

...no rosto uma expressão que ele conhecia bem, o rosto

de Laura quando despertava do pesadelo e erguia-se da

cama olhando fixamente o ar, olhando agora sabia, olhando

aquele que se afastava, dando-lhe as costas, consumada a

vingança que a fazia gritar e debater-se nos sonhos. (CORTÁZAR, 2006:28)

 

À noite, Laura ao abrir a porta para o marido se comporta como se esperasse outra pessoa. Estaria esperando Nico? Vamos mais adiante. No desenrolar da narrativa, o narrador nos faz saber que Laura mentiu, dizendo que esteve em casa o dia inteiro e ele(narrador) sugere que a mesa seja servida para três. A seguir, as conjecturas de atos concretos como ir embora, fechar a mão e explodí-la na violência de um golpe e alusão ao possível ódio da mãe baseados apenas na semelhança traz à tona, novamente, a dúvida sobre o irmão. O comportamento de Luis se aproxima da loucura, conjecturando a presença do irmão em sua casa e a consumação do amor a três.

 

Talvez estivesse em outro cômodo, ou talvez esperasse

apoiado na porta como ele havia esperado, ou já se havia

instalado onde sempre havia sido o amo, no território branco

e morno dos lençóis onde tantas vezes havia acudido nos sonhos

de Laura. (CORTÁZAR, 2006:29)

 

Ao final da narrativa, a hesitação entre o natural e o sobrenatural permanece, e o que foi e o que poderia ter sido se entrecruzam em um pulsante momento em que não se consegue delinear o real. O real é o que sentimos ou o que acreditamos sentir, o que vemos ou o que supomos ver?

O diálogo final não se configura em uma resposta:

 

Quando levantou os olhos(acabara de escrever: mamãe), Laura estava

na porta, olhando para ele. Luis soltou a caneta.

- Você não achou que ele está muito mais magro? - perguntou.

Laura fez um gesto. Um brilho paralelo descia por suas faces.

-Um pouco – disse ela. - A gente vai mudando...

(CORTÁZAR, 2006:30)

 

A Linguagem Ambigüa(como dizê-lo de outro modo?)

A ambigüidade que se revela na tensão entre o natural e o sobrenatural se dá também na linguagem, na escritura do texto. O texto nos é apresentado por um narrador ambíguo. O narrador é apresentado na 3ª pessoa, mas depois, no desenvolvimento da narrativa, à medida que o tecido narrativo se torna cada vez mais tenso, a distinção entre a fala do narrador e a fala da personagem desaparece e passamos de uma instância a outra sem o percebermos, devido ao lapso de pontuação. O elo de ligação entre o eu e o outro é feito sem mediações, gerando a dúvida acerca da identidade do narrador. O caráter dual do narrador é uma constante no tecido narrativo e contamina todas as personagens.

Luis define a sua vida através de uma metáfora: “uma palavra entre parênteses, divorciada da frase principal e da qual, no entanto, é quase sustentação e explicação” . (CORTÁZAR, 2006:11). Mas essa palavra entre parênteses é exibida ao longo da narrativa como se fosse o outro, marcando a sua presença indelével. Esse outro é o seu duplo, aquele que está dentro da complexidade de sua constituição, esse outro que é, ao mesmo tempo, o seu oposto e complementar:

 

Ao descer do ônibus na rue de Rennes, perguntou-se bruscamente

(não era uma pergunta, mas como dizê-lo de outro modo?) por que

não queria mostrar para Laura a carta de mamãe. Não por ela, mas

pelo que pudesse sentir, desde que disfarçasse.( Não se importava muito

com o que ela pudesse sentir, desde que disfarçasse?) (CORTÁZAR, 2006:12)

 

Quanto ao fragmento “(não era uma pergunta, mas como dizê-lo de outro modo?)”, verificamos a recorrência deste tipo de questionamento em outro conto: “As babas do diabo”. Em ambos, o narrador/personagem manifesta sua incredulidade em relação à linguagem por concluir que as formas existentes são inúteis, são insuficientes para apreender a totalidade daquilo que deve ser dito:

 

Nunca se saberá como isto deve ser contato, se na primeira ou segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão de nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos rostos. Que diabo.” (CORTÁZAR, 1994, p.60)

Convém assinalar que, neste conto de Cortázar, a supressão da distinção entre narrador e personagem através da pontuação dá uma forma frenética ao texto, movimento à narrativa e uma inquietação gerada pelo fato de só termos a opinião de Luis acerca dos fatos, das atitudes da mãe, de Laura e do próprio Nico. A opinião de Luis é suspeita por carregar ciúmes, culpa, obsessão e um ar de mistério, já que se coloca sempre na posição de observador.

Vejamos como a nuance do ânimo de Luis se altera no decorrer da narrativa: a vida conjugal do casal sofre alterações ao longo da narrativa. Com a primeira carta, que não foi mostrada à esposa, há uma mudança nos sentimentos de Luis.

Primeiro os ciúmes

 

Não, não se importava muito. (Não se importava?)

Mas a primeira verdade, supondo que houvesse outras por

trás, a verdade mais imediata por assim dizer, era que se

importava com a cara que Laura faria, com a atitude de Laura.

(CORTÁZAR, 2006:12)

 

depois a desconfiança

 

Ele a sentia distante outra vez, quem sabe se o que olhavam juntos

já não era a mesma coisa para os dois, mesmo que comentassem o

filme na rua ou na cama. (CORTÁZAR, 2006:16)

 

e traição implícita

 

Laura continuava sem mencioná-lo,e ele atinha ao seu silêncio por

covardia, sabendo que no fundo esse silêncio ofendia pelo que

continha de recriminação, de arrependimento, de algo que começava

a se parecer com traição.” (CORTÁZAR, 2006: 17)

 

E finalmente, a dúvida sobre a existência do sobrenatural

 

Não porque fosse necessário, quem se importava se Nico

estava vivo ou morto? (CORTÁZAR, 206:17)

 

O ato de nomear é definido no conto como “os verdadeiros fantasmas”. O nome de Nico, que desencadeia o sobrenatural na narrativa, é silenciado pelas personagens. Mas ressurge nas linhas da carta da mãe “numa frase incompreensível e absurda”, sem mediações. A partir de sua nomeação, o fantasma invade a narrativa e povoa a vida das personagens principais.

Mas esse elemento fantasmático, esse íncubo, não se mostra em plena luz, nem tampouco temos acerca dele uma explicação plausível, racional para o evento. O conto termina tão tenso como começou. Mas não é só isso. Cortázar segue um caminho diverso daquele proposto por Todorov.

 

Cortázar define seu modo de escrever contos fantásticos:

Em mi caso, la sospecha de outro orden más secreto y menos comunicable,

y el fecundo decubrimiento de Alfredo Jarry, para quien el verdadero estu-

dio de la realidad no residía em las leyes sino en las excepciones a esas

leyes, han sido algunos de los principios orientadores de mi búsqueda per-

sonal de uma literatura al margen de todo realismo demasiado ingenuo.

(CORTÁZAR, 1994:368)

 

Assim, Cortázar propõe que a literatura não seja uma sucessão de fatos previsíveis e instaura o fantástico no cotidiano, no mundo moderno, conferindo a ele contemporaneidade e nos apresenta o fato para depois dissipá-lo ante nossos olhos e fazê-lo renascer oscilante, hesitante. E gera em espaços intersticiais sua escrita, uma realidade da ficção, um espaço aberto ao leitor

 

Mucho de lo que he escrito se ordena bajo el signo de la excentricidad,

puesto que entre vivir y escribir nunca admití uma clara diferencia; si

viviendo alcanzo a disimular uma participación parcial em mi circuns-

cia, em cambio no puedo negarla em lo que escribo puesto que precisa-

mente escribo por no estar o por estar a medias. Escribo por falencia,

por desconsolación; y como escribo desde um intersticio, estoy siempre

invitado a que otros busquen los suyos y miren por ellos el jardín donde

los árboles tienen frutos que son, por supuesto, piedras preciosas.

(CORTÁZAR, 1977:32)

 

fazendo dessa narrativa uma obra fantástica do início ao fim.

 

 

Referências Bibliográficas

CHIAMPI, Irlemar. Introdução ao Realismo Maravilhoso , Ed. Perspectiva, SP, 1980.

CORTÁZAR, Julio. As armas secretas , ed. José Olympio, 2006.

CORTÁZAR, Julio. Obra crítica . 2 ed., Alfaguara, Buenos aires, 1994.

ENTREVISTA a Miguel F. Roa, Alejo Carpentier tras diez años de silencio, ABC, Madri,

2 fev, 1975, 30.

MARQUEZ, Gabriel García. A incrível história de Candida Erendira e sua avó desalmada .

Ed. Record, 1972.

 

LOVECRAFT, H.P. Supernatural Horror in Literature , Dover Publications, New York,

1945.

 

PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. O outro modo de mirar: uma leitura dos contos de Cortázar ,

São Paulo, Martins Fontes, 1986.

 

PENZOLDT, Peter. The Supernatural in Fiction , Londres, Peter Nevill, 1952.

SARTRE, J.P. Situations I , Gallimard, Paris, 1947.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica, Ed. Perspectiva, SP, 1970.

VAX, Louis. L´art et le Littérature fantastiques , PUF, Paris, 1960, p.120.

 

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