Escrita em Espiral

 

Repetir repetir – até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo. [1]

 

É necessário começar sempre de algum ponto, mas não há o que justifique absolutamente a escolha desse ponto. Se tivermos alguma explicação, ela é antes uma seleção pessoal de acontecimentos que nos marcaram. Portanto, todo começo é um corte numa cadeia de acontecimentos e, por isso, só tem valor enquanto improvisa um recurso didático. Sendo assim, este texto apresenta-se como um recorte para falar do que ficou marcado em mim ao ler os poemas de Manoel de Barros.

O poema escolhido como epígrafe denuncia a apropriação de um começo que não é de minha autoria. O presente trabalho, enquanto exercício de crítica literária, só pode se realizar como discurso sobre um discurso do mundo: a poesia. Ele, por certo, não é o início como também não será o fim de uma falação sobre a produção poética de Manoel de Barros. Estamos diante de um já-dito e, assombrados pelo eco de outras falas, poderíamos perguntar: a que vem mais uma explanação sobre o assunto? Nesta ocasião, o que fazemos é dar continuidade ao movimento labiríntico de referências e citações. Nada é dito agora que não tenha sido dito antes [2].

A repetição é um dos artifícios que aparece na poesia de Manoel de Barros para lançar uma suspeita sobre o conceito de pleno, usado como base do senso comum. Sua produção literária está marcada pelo incômodo diante do idealismo expresso na noção de completo, cheio, absoluto, acabado... tudo que participa do paradigma da certeza. Em seus escritos, habitam imagens múltiplas e inacabadas que rasuram os modelos construídos e também reclamam o equívoco, a inutilidade e a inoperância que repousam nos seres. Elas se assemelham às “figuras do neutro”, listadas por Barthes [3], ao propor uma maneira de pensar livremente sem o despotismo camuflado nos gestos do cotidiano. O Neutro , sobre o qual discorreu Barthes no curso ministrado no Collège de France, não participa do paradigma da escolha arbitrária, em ter que se decidir entre isso ou aquilo; logo suspende o conflito elíptico que há por trás do sentido das coisas porque não se decide: o Neutro é o indecidível.

Nos textos escritos por Manoel de Barros manifestam-se várias figuras do Neutro . A primeira delas seria a própria escrita que não apresenta um sentido a ser consumido porque parece conjugar de uma só vez todas as possibilidades de escolhas (isso e aquilo); ou porque algumas vezes dá a entender que faz opção por alguma escolha não prevista no sistema (uma terceira opção dentro do sistema binário); ou então não faz escolha e emperra o sistema, uma vez que este é movido pela força de tensão entre os termos. Nos fragmentos destacados do livro Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave : “ De tarde a horas cheiram goma ” e “ O lodo prefere caranguejo de cabe lo” (pág. 59), pode-se notar a inoperância da escrita barreana que faz combinações nada previsíveis. Sobre esses exemplos cogitamos ser aglutinação de idéias distintas numa só sentença (algumas vezes a ausência da pontuação na composição dos versos sugere semelhante interpretação), ou a violação do sistema binário apresentando uma outra hipótese de construção, ou então a disposição aleatória de palavras num movimento sem começo nem fim, apenas interrompido.

Outras figuras do Neutro na poética barreana são os elementos da natureza e objetos que perderam a utilidade na sociedade, pois nenhum deles precisa marcar oposição para existir. Porém, as imagens do Neutro não devem ser associadas àquilo que não tem prestígio social, conforme nos lembra Barthes: “ O Neutro não corresponde obrigatoriamente à imagem pobre, essencialmente depreciada que dela faz a dóxa , mas pode constituir valor forte, ativo.” [4]. Em seu livro, O neutro , Barthes elenca valores como a “delicadeza”, a “tolerância”, entre outros, para construir seu pensamento.

Dentre tais imagens, destaco a da espiral, não porque seja recorrente nas poesias de Manoel de Barros, mas por ser transnominação de muitas outras. Além disso, a metáfora da espiral aponta para o descontínuo observado no modo com que o poeta desenvolve os textos.

Esse estilo de escrever em fragmentos traz consigo a repetição, que é também um tema recorrente em sua poética. Fazer aparecer o duplo (o outro ainda velado), sugerido no verso pela palavra diferente , vale como artifício para expor as imperfeições do objeto apreciado por seu acabamento perfeito. Nesse caso, a ação de retornar é considerada indício da incompletude de algo, pois ainda contém qualquer coisa para ser dito. Sobre cada objeto aparentemente completo, gravitam hipóteses que, quando avistadas, interagem no modo de conceber a forma atual da matéria e a modificam. Assim, o emprego do adjetivo “atual” assinala o histórico e contextual de uma interpretação, a qual dura o instante em que se espreita. Por esse motivo, uma interpretação estará em constante “atualização” (processo), convocando sempre aquilo que se interpreta a testar as potências de ter (ou não) outros predicados, encontrar-se (ou não) num determinado estado no futuro.

Chamamos de potência o movimento inerente a todas as coisas, o que lhes permite mudança em outra coisa, ou na mesma enquanto outra. Daí, com a contribuição do pensamento de Aristóteles, podemos dizer que as artes são as potências do mundo; efetivamente, “são princípios organizadores de mudanças em outro ser ou no próprio artista considerado como outro” [5].

No poema citado anteriormente, a idéia de repetição aparece multiplicada no mesmo verso: primeiro, ela é sugerida pelo significado do verbo repetir ; uma segunda vez, materializando a idéia sugerida pelo verbo ao grafar logo em seguida, sem interrupção, o mesmo verbo ( repetir repetir – até ficar diferente ). Tal diferença pretendida pela duplicação das coisas é semelhante à sensação despertada pelo déjà vu : a estranha impressão de já ter sido visto ou presenciado um fato. Dobrar o objeto faz com que os olhos percorram todas superfícies em busca de algo que destoe entre elas, por duvidar da simetria perfeita. Quando tornamos a ver uma característica nos assombramos com o óbvio contido nela. Aquilo sempre esteve lá e, no entanto, por se apresentar claramente ao espírito, nunca lhe dedicamos atenção. Somente a repetição faz perceber o estranho que já existia – o óbvio.

Sobre o óbvio gravitam perguntas cujas respostas permanecem em aberto – “Por que disso?” . São interrogações que parecem tanger ao absurdo, pois a evidência de um fato suprime comentários e afasta a necessidade de esclarecimentos. Por que falar do que todos já sabem? É uma perda de tempo falar do óbvio. Nesse caso sublinha-se o símbolo ativo da inutilidade, do para nada, da inoperância...

No entanto, perguntar sobre aquilo que se apresenta como incontestável dá margem para suspeitar da naturalidade das coisas. O óbvio reclama o equívoco das interpretações fechadas e, nesse caso, diagnostica uma cegueira nos olhos sãos. Pois, se não o percebemos antes é porque acreditávamos na totalidade e permanência da imagem que temos de um objeto. Mas, ao notarmos o evidente, inicia-se o movimento de desmembramento da figura até perder a noção do “todo”. Debruçar-se sobre o pormenor desestabiliza o foco principal, “o centro das atenções”, porque cada detalhe atua como uma subtração ( –1 , menos um ) do inteiro, fazendo espalhar e dispersar até tirar do centro. Diante disso, torna-se suspeito o conceito de pleno (unicidade das coisas), quando outras percepções movimentam-se ao redor, ainda que não estejamos conscientes delas.

Toda repetição é uma celebração das formas finitas e transitórias. Para cada aparição, a surpresa de um desvelamento, uma notação diferente que se dissolve no instante, de modo que não podemos afirmar que o objeto é sempre o mesmo, idêntico. A incompletude é o que determina o retorno para dar continuidade e recomeçar mais uma vez. Por ser inacabada, a ação de pensar, por exemplo, pode recomeçar de qualquer ponto, numa agitação aleatória sem tempo para terminar. Dessa forma, expõe-se a precariedade dos pontos de referência: o início, o meio e o fim. O duplo rasura a ilusória coerência da unidade, esse pilar que sustenta nossas arrogâncias religiosas e filosóficas.

Para Manoel de Barros a incompletude é o traço predominante na composição do organismo humano e também dínamo de inconstantes movimentos. O estado de inacabamento desfigura a categoria social de sujeito porque inviabiliza a rotulação estereotipada. Não se pode classificar aquilo que escapa dos padrões de normalidade, restando ao corpo irregular a exclusão e isolamento. Conseqüentemente, não possuir um papel – uma função social – permite escapar da repetição servil imposta em cada circunstância pelas regras e finalidades, oferecendo um caráter polimorfo ( outros ) ao corpo inoperante. A incompletude, sempre vazada, é a qualidade que possibilita as várias maneiras de apresentar-se no mundo, sem concretizar nenhuma delas separadamente.

No poema a seguir, a incompletude configura uma das grandes qualidades do ser. Ela desperta o prazer pelo efêmero e o tédio pelo costumeiro; além disso, guarda a maior riqueza humana: a liberdade de vir-a-ser. Na fala de Marilena Chauí, encontramos ajuda na difícil tarefa de descrever a liberdade apreciada por Manoel de Barros: “ser livre, diz Aristóteles em várias de sua obra, é ter o poder de dar a si mesmo seu próprio fim e ser para si mesmo o próprio fim” [6].

 

Biografia do orvalho [7]

 

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado.

Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre

portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que

compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,

que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.

Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.

 

Decalco no texto uma frase escrita por Deleuze que deve nos auxiliar na arrumação destes pensamentos: “começar significa eliminar todos os pressupostos” [8]. O início é resultado de escolhas arbitrárias de um ponto referencial e norteador para começar a enunciação, que como tal deve se esquivar do estado delirante do pensamento. Como em qualquer seleção, há uma oposição de termos, o que torna imperativo a preferência por um em detrimento de outro, o qual deverá ser esquecido. O conceito de origem sustenta-se na idéia de causalidade absoluta atribuída a todos os fenômenos, na existência de um centro de onde deriva todos os acontecimentos e ações.

Mais uma vez, foi usado o artifício da citação, deixando transparecer, ainda que inconsciente, a mise-en-abîme do pensamento. Assinalar as referências, em nossa sociedade, além de dar credibilidade ao texto, pode ser lido como uma atitude motivada pela vontade de depuração do discurso – esta fala é minha, aquela de outro. Nesse caso, tal gesto assemelha-se ao processo de decantação cujo resultado visa à separação de uma mistura, ignorando o caráter “polifônico” – entrecruzamento de informações culturais que são ditas sem ser pronunciadas.

Decantar o texto para contemplar sua “pureza discursiva” reflete uma sociedade que impõe o conceito de plenitude (sinônimo de acabamento) para exercer o controle. Pois a força controladora só age sobre o que está previsto dentro de um padrão comportamental pertencente a um sistema binário: isso ou aquilo. Logo, o inacabado inviabiliza o trânsito dessa força porque o próximo estágio (se houver) está entregue ao acaso.

As reflexões tecidas até aqui problematizam a estrutura pautada no início-meio-fim, revelando sua fragilidade diante de constatações “óbvias”. Poderíamos perguntar, por exemplo, onde está o começo de um livro. A resposta seria dada sem hesitação: no prefácio ou na introdução. Porém, as duas partes que antecedem qualquer texto não constituem a causa primeira, porque um prefácio, como sabemos, é escrito depois de pronto o livro, assim como a introdução e o sumário. Ao atentar para a marcação trivial do livro fica exposta a utopia da origem e provoca a perda de sua pertinência no sistema de referências. Nesse momento, vem à tona uma idéia expressa pelo filósofo alemão Martin Heidegger: O que é mais digno de ser questionado é o mais óbvio de tudo. [9]

A literatura radicaliza as marcações fixas e esboça estância do provisório. Por meio do esforço de uma arrumação inusitada de palavras conhecidas, o conteúdo é deslocado do centro, deixando-o vazio, de modo que todas as hipóteses de significação caibam nele. Com a perda das referencialidades, passamos a criar livremente associações de idéias, sem nos preocupar com a coerência. No poema que segue, compreendemos que, para MB, a coerência é no mínimo duvidosa. Vejamos:

Infantil

O menino ia no mato

E a onça comeu ele.

Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino

E ele foi contar para a mãe.

A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo?

É que o caminhão só passou renteando meu corpo

E eu desviei depressa.

Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.

Eu não preciso de fazer razão. [10]

 

Com podemos ler, a despreocupação com a ordem dos acontecimentos permite fazer experiências com elementos estranhos entre si, sem com isso pretender provar algo, pelo simples prazer de ver nascer o diferente. Experienciar as coisas para espreitar furtivamente o outro não idêntico que se agita dentro delas. Mas, assim como o tato, o paladar, a audição e a visão, toda experiência só existe por efemeridade. A experiência é uma estação.

Relembro aqui os ensaios escritos por Otávio Paz para incorporar neste discurso algumas de suas contribuições. A Outra Voz , título do texto que dá nome ao livro, é uma metáfora construída para falar de um não-idêntico latente na poesia:

 

 

sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é desse mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas [11].

Trata-se de um o utro que será sempre um estranho, um desconhecido, visto que será sempre o último a se manifestar num anacronismo de desvelamentos. Podemos, então, pensar o outro como expressão do “mais um” contido dentro das coisas. Melhor seria falar no plural: os outros. Depois de descoberto o mais um, há mais um, mais um, mais um...

Esse outro (o mais um) se manifesta na dispersão da linguagem, quando os signos se desdobram num leque de significados contraditórios. Somente ao olhar do observador distraído, desligado temporariamente das regras e convenções, é que a ligação postiça entre significado e significante mostra sua fragilidade.

Na poesia de Manoel de Barros, o enfoque não está na palavra, ou melhor dizendo, na significação. Existe maior preocupação com a construção, o visual obtido com o arranjo inusitado de palavras. A preciosidade de seus poemas reside na improvisação de formas ou combinações de uma maneira insólita, pela qual se descobrem mundos desconhecidos ou se exploram zonas ignoradas no conhecido. Ao enveredarmos na literatura barreana temos a impressão de que, por um instante, o mundo tal como o percebemos deixa de existir.

Quando admiramos algo que nos seja estranho, formulamos de imediato uma frase parecida com: “isso me lembra...” , desencadeando um movimento de analogias com as informações que nos são familiares. Tal formulação faz explorar aquilo que já era conhecido e descobrir novos horizontes, novas possibilidades de interagir com determinados conteúdos. Excursionar, sair arbitrariamente do trajeto, instaura a confusão do sentido (deixar que um móvel parta de um ponto A em direção a um ponto B; aqui, no caso, o móvel seria a palavra com objetivo de fazer chegar a uma idéia), o que possibilita rever e transver o mundo, na crença de que ele possa ir além de conceitos e regras. Daí, esbarrarmos na poesia de Manoel de Barros com as figuras que nos remetem à deriva, ao acaso, ao devaneio ... num movimento de aporia, sem início e sem fim. Ao contrário, revela o desejo de estar antes do início e depois do fim.

O movimento aleatório de que tratamos, sem trajeto pré-escrito porque não divulga nem partida nem ponto de chegada, traz à baila a imagem da espiral presente na natureza: o furacão, o cosmos, o redemoinho das águas... Como fenômeno da natureza, o movimento da espiral trapaceia com a noção de referencialidade, cuja função é programar um acontecimento. O ponto de referência abafa o efeito da surpresa. Pedimos um ponto de referência porque não queremos errar o caminho e ter surpresas desagradáveis.

Uma observação feita por Derrida a propósito da programação de um evento, sublinha que o que está sendo pensado aqui já foi pensado antes:

 

 

“mas nada pode programar que alguma coisa aconteça, pois aquilo que está no programa não acontece, anula-se na sua previsibilidade, não tem força de evento” [12]

 

Conjugada com as idéias colocadas anteriormente, o pensamento formulado por Derrida contribui para ressaltar o poder contido no acidental – o não previsto – capaz de romper as referencialidades e devolver ao homem a capacidade de surpreender-se com o mundo. A gratuidade do pensamento dispersa funcionalismo e pragmatismo instaurados pela lógica controladora.

Acaso, fortuito, divagação, excursão... são alguns temas que aparecem repetidamente na poesia de Barros como “motores” de sua dicção poética, cuja continuação depende da sorte. Tais movimentos aleatórios são percebidos na quebra do paralelismo sintático e semântico acusando a agramaticalidade da frase. O esfacelamento da gramática apaga as marcações e referencialidades que asseguravam uma leitura objetiva e inteligível. Esse tipo de construção ensaia o descompasso entre as palavras e fluxo do pensamento, devolvendo ao pensamento a liberdade vertiginosa com que nos surpreende.

Assim, o desenvolvimento de sua obra simula uma escrita labiríntica: não há como seguir reto por ausência da linearidade; há uma sucessão de fragmentos que se intercortam e improvisam diferentes aberturas, por onde se inicia o movimento paradoxal de perder-se para melhor conhecer, sair do curso e experienciar.

A simbologia da linha reta aparece no imaginário coletivo aludindo à certeza ou exatidão – como revela o significante da palavra (cor) reto , sinônimo de certo ou exato. Por oposição, o traço sinuoso simboliza a dúvida e a incerteza. No entanto, a reta garante rapidez e praticidade para atingir um determinado ponto, o que implica na valorização do fim em detrimento do meio, e com isso o esquecimento do trajeto. Enquanto o caminho sinuoso dificulta o instantaneismo e oferta a contemplação desbravadora do percurso traçado. Destarte, a dúvida, tal como aparece nos poemas escritos por Manoel de Barros, mantém seu conteúdo em estado latente, numa constante repetição, experienciando todas as hipóteses ainda que não guardem relações diretas com o mistério. O duvidoso é aquilo que não pode ser esclarecido sem a pena de ser destruído e, por isso, é o que não acaba de acabar.

 

 

Desenho de Millôr Fernandes para o livro Retrato do Artista Quando Coisa ..

Desse modo, a espiral oferece uma imagem com a qual podemos fazer analogias com a poesia barreana, pois ensaia o movimento inacabado do mundo. Tal como a poesia, a espiral aponta para uma etapa anterior ao começo e posterior ao fim. As palavras do escritor Osman Lins podem nos ajudar a perceber melhor essa aproximação:

 

“Vereis, ao primeiro olhar, que a espiral não nos transmite uma impressão estática: parece-nos, antes, vir de longe, de sempre, tendendo para os centros, seu ponto de chegada, seu agora; ou ampliar-se, desenvolvendo-se em direção a espaços cada vez mais vastos, até que a nossa mente não mais a alcance. A verdade é que, se a secionamos nas extremidades, arbitrariamente o fazemos; fazendo-o, guardando-nos na loucura. Nem a eternidade bastaria para chegarmos ao término da espiral – ou sequer ao seu princípio. A espiral não tem começo nem fim.” [13]

 

Ao fazer notar que qualquer ponto de sua extensão já ocupou, em algum instante, a posição de centro, o movimento espiralado permite associações com a rede de pensamento tecida até aqui. Na alternância de posições de um ponto, percebemos que a coisa sobre a qual refletimos é singular, mas as possibilidades de aparecerem no mundo são inúmeras. Desse movimento é gerado um eixo de intertextualidades que seria a base do livro infinito proposto por Mallarmé: o não fechamento, a infinitude, a obra aberta; o que não acaba de acabar; todos os livros num só.

Pensar sob a metáfora da espiral possibilita retornar ao pensamento puro pelo qual podemos conhecer uma existência sem limites, “sem a química do civilizado”. Como vimos até aqui, os inventos de Manoel de Barros dão relevo aos fatores estruturais encontrados no ato do jogo: várias possibilidades de arranjos com os elementos envolvidos; a precipitação do acaso; uma finalidade em si; esquecimento temporário do mundo...

Os poemas escritos por ele esbarram nas idéias barthesianas de “trapaça salutar” e “logro magnífico” com o código lingüístico, uma vez que não se pode fugir dele ou negá-lo. Em qualquer desses gestos, o código ainda estaria presente ou como causa da fuga, ou como objeto negado. Uma de suas estratégias é usar a repetição desprogramada até cansar a percepção automatizada para depois fazer aparecer o diferente – o mesmo como um outro. Em outras tentativas de diálogo com a poesia barreana, serão tematizadas outras possibilidades de manifestar essa liberdade de pensamento, como a imagem poética.

1. BARROS, Manoel de. O livro das Ignorãças. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. pág 13

2.Nullum est i a m dictum, quod non dictum sit prius. [Terêncio, Eunuchus, Prologus 41]

3. BARTHES, Roland. O Neutro . São Paulo: Martins Fontes, 2003

4. Idem, Ibidem. (pág. 431)

5.Aristóteles . Metafísica , “Livro IX”. RS: Editora Globo, 1969. pág 197

6.Chaui , Marilena . Introdução à Filosofia: Dos Pré-socráticos a Aristóteles . Vol. l. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pág. 328

7.Barros , Manoel de . Retrato do Artista Quando Coisa. 3ªed. Rio de Janeiro: Record, 2002. pág.79

8. DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition . Epiméthée,PUF,1968. pág. 225

9. HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências . Petrópolis, RJ: Vozes. p 183

10. BARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo . Rio de Janeiro: Record, 2001. p29

11. PAZ, Otávio. A outra voz .”A outra voz”. São Paulo: Siciliano, 1984. [p.142]

12.Bennington , Geoffrey. Jaques Derrida por Geoffrey e Jaques Derrida. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p23

13. LINS, Osman. Alvalovara . Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986. p 16-17

 

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