“Nascidos em bordéis”:

o artista revoltado e o intelectual engajado

 

Por Patrícia Iorio [1]

 

Embora a sociedade de massa e a economia de mercado se esforcem para igualar os homens — tratando-os como meros consumidores e padronizando seus desejos —, a desigualdade social desafia a retórica do progresso e se impõe pela teimosia. Insiste em se colocar em nosso caminho, borrando de sangue e de dor o cenário prazeroso forjado pela publicidade. Rebelde aos caprichos da era da estética e ao ideário salvacionista da globalização, a desigualdade oferece imagens de horror e violência na ilusão de nos inspirar compaixão, indignação, talvez revolta e desejo de mudança. Mas, na efemeridade do aqui-e-agora instaurado pelo fim das utopias, ainda haveria lugar para futuro?

No momento pós-moderno, a fluidez da ambigüidade, o labirinto da multiplicidade, a permeabilidade entre fronteiras e conceitos, e a confusão entre o Mesmo, o Outro e o Duplo têm provocado a rebeldia dos diferentes, têm levado a “voz do Absolutamente Outro” a pronunciar “a proibição da representação”, como diz Rancière. [2]Por outro lado, o presenteísmo de um tempo lento (de instantes eternos), mais simultâneo que sucessivo, sem utopias a sinalizar o caminho para um futuro melhor, tem feito ressurgir a experiência trágica da constatação de que a realidade caminha a despeito da vontade dos sujeitos, de que vivemos marcados pela fatalidade, pela fortuna e pelo destino.

O contraste cada vez mais exposto entre riqueza e pobreza, entre dominador e subalterno, e entre consumo e miséria grita a diferença, dá visibilidade ao anônimo e traz à tona narrativas que subvertem o discurso hegemônico da arte e da estética. Mais que reproduções técnicas do real, o cinema e a fotografia avançam sobre o território da arte na medida em que se debruçam sobre o anônimo, o qualquer um ? tema que a reviravolta pós-moderna passa a reconhecer como arte. No momento em que as câmeras desviam o foco da história dos acontecimentos para voltar-se à história dos costumes, ao relato das massas, das “testemunhas mudas”, o cinema e a fotografia, como antes fizera a literatura, se inscrevem na lógica da revolução estética que eleva à condição de arte os “gritos e ficções da cena pública” [3]. Como diz Rancière,

Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes íntimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes de ser científico. [4]

Neste contexto em que o anônimo e o diferente reivindicam sua voz e dispensam representações; em que o agora desdenha do futuro e das utopias que apontavam para um mundo melhor; e em que as desigualdades sociais embaçam a imagem publicitária da satisfação globalizada; que papel estaria reservado para o intelectual e o artista na pós-modernidade? Como romper o limite da mercadoria e do consumo para conteúdos que se arriscam a promover transformação e libertação? Como oferecer resistência quando o destino se insinua inevitável? Que contribuições podem oferecer a razão e o sensível na emergência das idéias?

O documentário “Nascidos em bordéis”, filme de estréia dos diretores Ross Kauffman e Zana Briski, produzido na Índia em 2004, explora o real e o possível no universo tão violento quanto invisível dos filhos de prostitutas do bairro da Luz Vermelha de Calcutá. Lá, estão presentes a condenação e o enfrentamento do destino, a arte como libertação, o artista como um ser revoltado, o desvelamento da auto-percepção, a técnica como mediadora do olhar, e a cultura da mercadoria como uma realidade inescapável. Sem apresentar rupturas estéticas, o filme marca o contraste entre o olhar profissional captado pela câmera cinematográfica dos diretores e o olhar inocente das crianças que pela primeira vez empunham uma câmera fotográfica. Cinema e fotografia dialogam para apresentar o novo: a realidade que agora se revela mutável.

O documentário “Nascidos em bordéis” é resultado de um projeto pessoal da fotógrafa inglesa baseada em Nova Iorque Zana Briski. Seu interesse pela Índia, mais particularmente pela violência experimentada pelas mulheres indianas, levou-a, em 1995 a produzir um ensaio sobre o infanticídio feminino. Três anos depois, Briski estava de volta para dar início ao seu projeto de fotografar e filmar as prostitutas de Calcutá.

Apesar da ilegalidade da prostituição na Índia, as autoridades não a reprimem, e mais de sete mil mulheres e meninas trabalham como prostitutas em Sonagachi, a maior e mais pobre área de bordéis de Calcutá. No bairro da Luz Vermelha, se a degradação humana chegou a níveis intoleráveis para estas mulheres, a situação é ainda pior para seus filhos, que nascem condenados a um destino inescapável: tais crianças, por condição de nascimento, são colocadas num sistema de castas no qual a mulher é obrigada a assumir a prostituição como forma de ajudar no sustento da família e pagar por sua criação. Em incontáveis cubículos escuros e sujos, num amontoado de objetos, gentes e ratos, vivem meninos e meninas de todas as idades que não têm alternativa senão esperar na porta ou brincar no telhado enquanto suas avós e mães trabalham. Muitas ficam responsáveis pela cobrança dos clientes ou pelo comércio de bebidas. Além disso, ainda cabe às meninas fazer limpeza na “casa” de outras prostitutas e retirar do único poço local a água para o abastecimento do bordel.

O filme, todo narrado pela fotógrafa, começa com uma explicação sobre um desvio de rota: depois de muita negociação com proprietários dos bordéis, cafetões, policiais, políticos locais e o sindicato do crime organizado, Briski consegue autorização para morar no bordel e fotografar as prostitutas, mas acaba se envolvendo com as crianças e, sensibilizada com o destino delas, decide ensinar-lhes fotografia.

Munidas de câmeras 35mm, as mais simples do mercado, “tia Zana”, como é chamada carinhosamente pelas crianças, reúne o grupo em uma sala improvisada e lhes ensina os rudimentos da fotografia: luz, enquadramento, composição, ponto de vista. A idéia não é propriamente ensinar; Briski espera proporcionar aos filhos de prostitutas uma oportunidade de olhar a realidade com seus próprios olhos (e não com os olhos da tradição local) e expressar o que vêem através da fotografia.

No filme, as aventuras das crianças são intercaladas com cenas dos prostíbulos colhidas por câmeras escondidas e depoimentos pessoais dos alunos, colhidos já no final da experiência, quando estavam sedimentados os laços de confiança com a professora. Neles são apresentados os lares das crianças, suas relações familiares com a mãe e a avó, seu trabalho quase escravo, suas reflexões sobre a vida nos bordéis e suas aspirações.

Em dois anos de aulas de fotografia, a experiência com as crianças nascidas em bordéis acaba ultrapassando os limites da área da Luz Vermelha em passeios fotográficos que proporcionam aos alunos o conhecimento de outros lugares e realidades. Acaba extrapolando também a proposta de libertação através da arte, já que Briski se engaja na luta para encaminhar seus fotógrafos a uma instituição de ensino de Calcutá, invariavelmente um internato.

“Nascidos em Bordéis” ganhou o Oscar de melhor documentário em 2005, categoria que lhe rendeu também o prêmio do National Board of Review e dos Los Angeles Film Critics. Foi eleito ainda o melhor documentário pelo júri popular no Sundance Film Festival, em 2004.

 

briski: a intelectual engajada

Como fotógrafa, Zana Briski está engajada no uso da arte para a denúncia social. Quer dar visibilidade (esta categoria tão importante nesse mundo de imagens) à realidade invisível e violenta do ser humano. Escolhe como foco as mulheres e, por extensão, as crianças. Como cenário, a Índia. Como método de trabalho, o exílio: Briski se muda de Nova Iorque para o distrito da Luz Vermelha e fica morando com as prostitutas durante alguns anos.

Muitos dirão tratar-se de mais uma investida arrogante do ideário imperialista (Briski é inglesa de origem) sobre uma cultura subalterna. A trajetória de sucesso do documentário em mostras competidoras de cinema parece confirmar sua vocação para esta estética humanitária-salvacionista tão cara ao mercado das emoções superficiais, as “emoções-pipoca”.

Talvez seja demasiado simplista nos deixar convencer pela lógica do desencanto que de tudo desconfia, como se não houvesse mais lugar para os arroubos da subjetividade ou para o desgoverno da vontade. Se o impulso obrigatório da visibilidade faz tudo parecer auto-promoção, e se toda ação contra a miséria e a opressão cai na vala negra do assistencialismo, de que nos servem a denúncia e o engajamento? Não seria o ceticismo a desculpa racional para a acomodação?

Se para Gramsci qualquer pessoa pode ser um intelectual [5], Briski com sua câmera certamente se enquadraria em um dos graus de complexidade em que um intelectual desempenha sua função:

(...) no mais alto grau, devem pôr-se os criadores das várias ciências, da filosofia, da arte, etc.; no mais baixo, os 'administradores' e divulgadores mais modestos da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumulada. [6]

 

Em algum lugar nesta escala está prevista a função intelectual desempenhada pela professora de fotografia dos filhos das prostitutas que, em seu espontaneísmo educador, se faz agente da sociedade civil na práxis da arte como instrumento de libertação.

Nesse ponto, Briski aproxima-se da idéia de intelectual defendida por Said, numa adaptação das definições de Gramsci para as condições do capitalismo tardio. Para o autor palestino-americano, a luta central do intelectual é contra a miséria humana e a opressão — uma luta que sai dos gabinetes, não se ausenta dos debates, não se esquiva no silêncio cauteloso, levanta questões no âmago de qualquer atividade e se compromete a “representar todas as pessoas e todos os problemas esquecidos ou varridos para debaixo do tapete”. Indiferente às cobranças de autoridade ou especialização, o intelectual público de Said é um agente social, um indivíduo capaz de representar, encarnar e articular uma mensagem, uma visão, uma atitude, filosofia ou opinião para e a favor de um público [7].

Categoria pouco vista nestes tempos de “rebeldes sem causas” e alvo fácil de críticas, o intelectual público não deixa a política para os profissionais da política: como profissional das ciências ou das artes, intervém no espaço público, fora de seu campo de atuação, para defender idéias, valores e causas na tarefa própria do cidadão.

O intelectual público é alguém que favorece o ver antes da ação.

A iniciativa inicial de Briski não era tirar as crianças dos prostíbulos. As aulas de fotografia seriam apenas uma oportunidade de proporcionar, pela lente da câmera, uma perspectiva para ver fora da tradição trágica dos destinos imutáveis, um olhar diferenciado sobre a realidade em que viviam.

Briski desempenha então o papel do professor como intelectual. De acordo com Sarlo [8], é próprio da atividade intelectual do professor questionar o que “parece inscrito na natureza das coisas” com o objetivo de mostrar que “as coisas não são inevitáveis”. Segundo Sarlo, a “desnaturalização” daquilo que oprime os indivíduos é a forma pela qual o intelectual expressa seu compromisso político.

 

avijit, o artista revoltado

Ao contrário das oito crianças envolvidas no projeto de Briski, Avijit, de 11 anos, já chegou artista. Sentado no chão do quarto onde vive com a avó prostituta e o pai drogado, ele desde muito pequeno projetava em papel a vida fora dos bordéis. De sua paleta já quase sem tinta, pintava as cores do mundo que lhe chegava pela tevê: telhados vermelhos, árvores em diferentes tons de verde, gente em trajes ocidentais e céu azul. A alegria de suas pinturas e a beleza de seu traço renderam-lhe inúmeros prêmios, medalhas que a avó coleciona orgulhosa num armário abarrotado de coisas.

“Eu gosto de desenhar porque quero expressar o que tenho em mente. Quero expressar o meu pensamento usando as cores”, diz o pequeno artista. As cores e formas do pensamento de Avijit não estão em Sonagachi; elas projetam um mundo que só ele vê, o mundo melhor que só é possível em sua mente.

Quando Briski põe em suas mãos uma câmera fotográfica, ele descobre um outro veículo para sua arte e uma Sonagachi que precisa ser vista. O olhar duro, triste, revela não só a dor das crianças que, pela violência, são obrigadas a amadurecer antes da hora, mas a angústia do artista que se sabe maior que seu tempo: “Eu queria ser médico; então quis ser artista. Agora quero ser fotógrafo. Não há uma coisa chamada ‘esperança' em meu futuro”.

Suas circunstâncias de vida parecem mesmo não credenciá-lo para “essa coisa chamada esperança” — muito menos parecem reservar-lhe qualquer futuro.

O orgulho pelo sucesso de suas fotos e a alegria por seu reconhecimento como artista parecem apenas fazer parte de um roteiro trágico que prepara a dor que não se pode explicar nem expressar em cores. Avijit não chora diante da notícia da morte da mãe. Mais que a perda afetiva de alguém que só existia no retrato, a intuição lhe avisava sobre a violência do destino nos bordéis. Talvez nem tenha chegado a saber que sua mãe fora queimada num “acidente” forjado por seu rufião. Avijit apenas se deixa sucumbir pela angústia que lhe corrói a vontade de tudo. Não estuda para os exames do colégio, falta às aulas de fotografia, deixa os rolos de filme fora da câmera.

Mais do que deprimido, o pequeno artista está revoltado. Como sugere o ensaio de Camus [9], o homem revoltado é aquele que diz não: ele nega alguma coisa porque antes ele afirma algo que lhe é negado. A revolta, então, é positiva, ativa, se dá em favor de princípios que transcendem o indivíduo, que reclama valores comuns a outros homens: frente a um mundo repleto de absurdos, a revolta, em vez de romper com limites, afirma o direito do homem e estabelece os limites da opressão. Avijit sempre fez de sua arte um instrumento da revolta contra a violência, a injustiça e a falta de esperança da invisibilidade da vida de mulheres e crianças condenadas ao vermelho angustiante dos bordéis. Mas a morte da mãe havia degenerado seu espírito revoltado em um espírito ressentido, e Avijit agora experimenta a negação absoluta, a aniquilação total, o niilismo.

 

a título de conclusão

A despeito da padronização exigida pela lógica da sociedade de massa, o filme segue indiferente à estética do documentário tradicional. Tanto quanto na arte das crianças, a autonomia se dá pela espontaneidade e pelo afeto. Talvez esteja aí a inovação de “Nascidos em Bordéis”: sem rupturas ou grandes saltos estéticos, apenas introduz a subjetividade no reino da racionalidade documentarista. Enquanto filme, repete o valor consagrado no projeto humanitário sincero: impõe-se como uma brecha que deixa entrever um horizonte de esperança na revisão crítica da tradição. É como a foto de Avijit. O menino poderia apenas ter enquadrado a janela suja do bordel com a luz de fora enchendo o interior de um amarelo triste. Mas não. O pequeno artista escolheu dar um passo atrás e abrir o foco apenas o suficiente para deixar ver a réstia de luz limpa e brilhante que passava pela fresta da porta entreaberta.

referências

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado . Rio de Janeiro: Record, 1999.

GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas . São Paulo: Martins Fontes, 1978.

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível . Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.

Said , Edward. Representações do Intelectual . Trad. Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 .

SARLO, B. Escenas de la Vida Posmoderna : Intelectuales, Artes y Videocultura en la Argentina . Buenos Aires: Ariel, 1999.

Williams , Raymond. Tragédia Moderna . São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

www.kids-with-cameras.org

 

 

1. Patrícia Iorio é aluna do Curso de Doutorado em Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Jornalismo pela Southern Illinois University, em Carbondale, IL, EUA.

2. Jacques Rancière, 2005, p. 42.

3. Idem., p. 49.

4. Ibidem.

5. Gramsci, 1978, p. 346.

6. Idem, p. 349.

7. Said, 2005, pp. 29-30.

8. Sarlo, 1999.

9. Camus, 1999.

 

voltar