O PENSAMENTO POÉTICO EM ALBERTO CAEIRO

 

 

A Fernando Mendes Vianna, amigo sempre vivo.

 

 

Não são médicos que nos faltam, mas a medicina.

(Montesquieu, Meus Pensamentos )

 

Antônio Máximo Ferraz *

 

O senso comum parece não ter dúvida: pensamento e poesia são duas instâncias bem distintas. O pensar é tido como raciocinar, isto é, a atividade de um sujeito que, valendo-se da lógica, poderia chegar à verdade sobre as coisas. É o que aconteceria – assim se costuma supor – no discurso científico. A poesia, ao contrário, seria expressão dos sentimentos de alguém, uma atividade imaginativa, fantasiosa, que poderia até produzir coisas belas, mas sem compromisso com a verdade. Assim encarados, poesia e pensamento pertenceriam a domínios distintos, e até radicalmente opostos...

No entanto, se quisermos questionar mais a fundo, é preciso se deixar assaltar pela pergunta: será justo fazer assim tão pouco caso da poesia? Será que ela não tem nada a ver com a verdade, e a esta só se chegaria por via da lógica e da ciência? Não haverá pensamento na poesia e, ao mesmo tempo, poesia no pensamento? Haverá algum laço que as une mais originária e indefectivelmente? Com estas indagações em mente, convidamos o leitor a fazer uma caminhada com Alberto Caeiro. Ela não será longa, porque uma vida inteira não seria suficiente para ouvirmos tudo o que sua obra tem e nos provoca a dizer.

Neste percurso que com ele faremos há uma procura, porque não estamos andando ao léu. Toda “pro-cura”, como a palavra o diz, se dirige a uma cura. “A uma cura?”, alguém perguntará... Sim, de fato estamos no encalço de uma cura na caminhada com o poeta. “Mas de que cura se trata? Cura de quê? Alguém está doente?”, já se ouve outro perguntar... A cura parece pressupor uma doença, ou ao menos uma ferida. E isso seria um assunto para médicos, não para poetas...

 

A medicina como pensamento

 

Dificilmente se lembrarão os médicos, no seu labor cotidiano, de que o termo medicina vem da raiz indo-européia “ med- ”, que gerou palavras como “meditar” e “medicar”. As palavras não são rótulos das coisas ou meros instrumentos de comunicação. Elas carregam consigo a memória viva da linguagem como o espaço dentro do qual o homem existe e se mostra o mundo que lhe foi destinado. É na linguagem, e não com a linguagem que se dá a compreensão. Retirar o bolor que encobre as palavras, no seu desgastado uso habitual, é um exercício de retorno às origens da experiência que lhes viu nascer.

Como a raiz indo-européia indica, a experiência médica é originalmente um exercício de meditação e pensamento que se dirige a remediar o homem, mas não exclusivamente com o uso de teorias científicas e técnicas ou instrumentais aplicados à cura de enfermidades. Um médico que acha que medicar é somente aplicar técnicas, reduzindo o paciente a objeto de uma metodologia científica, se esquece de pensar o homem em um sentido mais vasto. Torna-se, assim – não há como o negar –, a pessoa mais perigosa do mundo: um cego repleto de “certezas” e com várias ferramentas nas mãos...

Em nossos tempos, a medicina está dividida em dois ramos: as disciplinas que se ocupam do corpo, e as disciplinas que se ocupam da assim chamada “psique”. Nem todos se dão conta de que esta cisão é o desdobramento de uma experiência do pensamento, que servirá de base, na Modernidade, à abordagem técnico-científica do real.

Desde que Descartes, no Discurso do Método , dividiu o real em res extensa e res cogitans – ou seja, “coisa material” e “coisa pensante” –, o corpo foi separado do pensamento e integrado ao universo das coisas materiais. Ele passou a ser entendido como similar a um engenho mecânico, e sobre viriam a incidir leis científicas necessárias e abstratas. Abstratas porque não se aplicam a este ou aquele indivíduo em particular, mas necessariamente a todos, de uma maneira geral. De outro lado, o pensamento se converteu no cogito cartesiano, que vem a ser o exercício de uma razão metodologicamente municiada. A razão, como lembra a etimologia, é uma medida: em latim, ratio . E esta medida se torna a metodologia analítica, que se guia pela compartimentalização da totalidade das coisas em idéias claras e distintas. Desta compartimentalização resultou a fragmentação da totalidade das coisas promovida pelas ciências, com suas diversas especialidades segundo o objeto sobre o qual se debruçam. É no quadro da intensa fragmentação do mundo contemporâneo que se coloca para o homem a premência da busca da interdisciplinaridade. Ela seria um caminho para reunir os cacos fragmentados da abordagem que a ciência faz da totalidade das coisas ou do real. [1]

O modo de encarar a totalidade das coisas inaugurada por Descartes – é preciso notar – remonta a uma experiência do pensamento ainda mais antiga. Ela vem da separação do real em dois mundos, efetuada pela tradição filosófica partir do platonismo: de uma parte, o “mundo sensível”, tomado como falso e aparente; de outra, o “mundo inteligível”, tomado como verdadeiro e essencial. [2] Desta cisão resultaram os pares dicotômicos em que ainda hoje transitamos – pares dicotômicos altamente esquizofrênicos, se nos permitem o uso de uma infeliz terminologia médico-classificatória... E isto não só no campo da medicina: todos transitamos dentro deste vocabulário que passou a condicionar o modo de encarar o real: matéria e forma, matéria e espírito, corpo e intelecto, desejo e razão, verdadeiro e falso, bom e mau, tomados como opostos e freqüentemente de maneira muito maniqueísta. Por isso, engana-se quem concebe que uma experiência de pensamento como a filosofia é algo distante da vida cotidiana... O que acontece é justamente o contrário: por estar demasiado próxima do percurso das realizações humanas é que dificilmente a notamos... Quem não conhece pessoas que reprimem os desejos, que supõem estarem associados ao corpo – e que por isso seriam maus –, em favor da razão ou do intelecto, que seriam a verdade a ser seguida? Assim vêem a sua vida transformada em um autêntico campo de batalha interior, uma dolorosa guerra civil dentro de uma pessoa só... Quem passa por isso só pode terminar doente, se não for capaz de dar um salto para fora da dicotomia...

Na Modernidade cartesiana – e, claro, também na medicina – o real é construído no espaço dicotômico da relação entre sujeito e objeto. Entretanto, não se pode perder de vista que o sujeito é um constructo da Modernidade. A relação mais originária não é a do sujeito contraposto aos objetos, mas a do homem entre as coisas, ou seja: esta coisa que o homem é, em meio a ou entre outras coisas que ele não é. O homem só pôde se investir na condição de sujeito a partir do momento em que se fez dotar de uma metodologia, isto é, de um arsenal científico-metodológico prévio com o qual passou a se dirigir ao real. [3]

Na forma típica do homem se relacionar com as coisas na Modernidade, elas são reduzidas a meros objetos. Assim abordadas, elas se tornam – assim parece – passíveis de medição e controle. E este é, de fato, o afã fundamental de nosso tempo: medir e controlar, das mais diversas formas, tanto a natureza quanto o próprio homem.

Entretanto, quando o homem – agora tornado sujeito – trata as coisas como objetos, elas não podem se mostrar no que são. E isto porque o sujeito já as determinou previamente, aplicando paradigmas segundo os quais elas hão de se comportar. Assistimos, assim, a uma das tônicas da Modernidade: o subjetivismo, que vem a ser a redução do real à atividade do sujeito. As coisas, em sua multiplicidade e diferenças concretas, são reduzidas a uma identidade paradigmática e abstrata. A alteridade – a diferença concreta não só entre as coisas mas também entre os homens em seus peculiares percursos de realização – é simplesmente negada e estigmatizada. Mas, infelizmente, em nosso tempo, parece ser mais fácil classificar do que pensar. Como dirá Caeiro:

 

Pensar incomoda como andar à chuva

Quando o vento cresce e parece que chove mais. [4]

 

Uma prática médica unicamente calcada na metodologia científica, que reduz o real a uma projeção do sujeito, esquece-se de que medicar é fundamentalmente pensar. E pensar, como nos lembra a palavra “penso”, que significa um conjunto de medicamentos ou curativos, é o cuidado com a ferida ou a doença, são os procedimentos que nos encaminham para uma cura. E se esquece também de que pensar não é só o raciocinar usando conceitos lógico-abstratos. Portanto, a cura não diz respeito só aos médicos. Eles, antes de serem médicos, são homens. A cura não é uma tarefa só para a medicina, principalmente como no Ocidente ela hoje se configura, calcada que está em uma metodologia analítico-subjetivista.

Nesta oportunidade, estamos procurando no diálogo com Caeiro a cura da maneira habitual de encarar poesia e pensamento, que as toma como antípodas. Esta não é, como se costuma dizer, uma indagação para “intelectuais”. Ou – pior ainda – para “especialistas na área”. Ela diz respeito a todos os homens, até porque dela decorre uma questão absolutamente fundamental: o sentido da verdade. Questão que nos afeta tão radicalmente a todos, das mais variadas maneiras – e isso de um modo tão cotidiano, tão silenciosamente presente em tudo o que dizemos ou fazemos, até quando nos calamos –, que mal dela nos damos conta... Trata-se de uma questão que se move dentro de nós e, ao mesmo tempo, dentro da qual nos movemos. Lembremo-nos que se mata e se morre pelo que a palavra verdade evoca. Que até se adoece ou se cura por querermos aceitar ou não a verdade...

Como de cura se trata, estamos à procura de um benefício, de algo que nos faça um bem: que nos traga sabedoria e felicidade. Podemos ainda não ser inteiramente felizes ou sábios, porque esses não são fatos consumados, e sim permanentes processos de realização. A vida nos mostra a todo dia que só podemos tentar alcançá-las com um certo esforço e com alguma dose de sofrimento. Mas isso já é uma felicidade e uma sabedoria: começar admitindo que não somos inteiramente felizes e sábios. Porque isso nos põe a caminho. O sentido da felicidade e da sabedoria só se alcança ao longo da caminhada existencial. Estáticos, sequer poderemos almejá-las...

Vamos ao encontro de Caeiro com esta disposição de alma. Conversar com alguém que nos poderá dizer algo sobre poesia e pensamento, e, de modo intimamente relacionado, algo sobre a verdade. Que este diálogo nos proporcione um pouco mais de felicidade e sabedoria não só ao longo da caminhada com Caeiro, mas, sobretudo, que esta aprendizagem possa se incorporar à nossa existência no sentido pleno da palavra, ou seja, ganhar corpo em nossas vidas.

 

 

 

O que é dialogar com um poeta: o pensamento das questões

 

Chegamos ao lugar onde vive Caeiro, longe da grande cidade, em uma quinta no Ribatejo. [5] Ele mora em uma casa, instalada na parte mais alta de um monte no campo. Vamos dialogar com a obra de um poeta universal, e por isso queremos saber não só de onde provém esta universalidade, mas o que é dialogar com um poeta.

Como de resto acontece com qualquer grande obra, a universalidade da obra de Caeiro decorre do fato de ela ser uma realização que responde a questões que a antecedem. Questões que estão previamente colocadas para todos os homens. O que é o real? O que é o tempo? O que são a vida e a morte? Ora, o homem não tem o real, o tempo, a vida e a morte como se fossem propriedades suas, coisas de que ele dispõe a seu bel-prazer, simples objetos à disposição das determinações e imposições metodológicas de um sujeito. Pelo contrário, o homem, quando vem ao mundo, já se acha jogado dentro do real, acossado pelo tempo, ao ritmo da dança da vida e da morte. Ninguém escolhe nascer nem ter de vir, cedo ou tarde, de um jeito ou de outro, a encontrar a morte. Ninguém escolhe envelhecer. Ninguém escolhe surgir em meio ou entre a totalidade das coisas.

Por isso, questões como estas não podemos dizer que as temos . Melhor diremos que estas são questões que nos têm : elas nos foram destinadas. Questões são diferentes de problemas. Estes podem ter uma resposta definida, podem se encaixar em um conceito definido. Se alguém me pergunta quanto são dois mais dois, a resposta é clara: são quatro. Uma questão, ao contrário – se é uma autêntica questão –, jamais se deixa aprisionar em uma resposta definitiva. Ao responder e corresponder às questões essenciais que se ofertam a todos os homens, vamos ao mesmo tempo nos realizando, nos tornando quem somos em nossas identidades e diferenças. O “co-responder” é um “responder junto”, por isso vige no diálogo com as questões. Uma vez que elas nos antecedem; uma vez que já surgimos dentro das questões, o homem é delas uma doação. Originalmente, portanto, não é o homem quem pensa as questões; são as questões que nos pensam – até para que nos seja destinado pensá-las...

Dialogar com um poeta, assim, não é ouvir as suas opiniões pessoais nem saber de seus dados biográficos; ainda mais no caso de Caeiro – ele que, jamais tendo existido “em carne e osso”, nem por isso está menos vivo do que muitos daqueles que se supõem vivos... Tampouco é encaixar uma dada produção poética em características gerais de um período literário e todos esses demais procedimentos classificatórios infelizmente tão comuns, inclusive nos estudos de literatura. Como diz Heidegger, “a grandeza de uma obra consiste, na verdade, em que o poema pode negar a pessoa e o nome do poeta”. [6] Só os maus poetas é que dão o que supõem ser suas opiniões pessoais. [7]

A obra inteira de Fernando Pessoa, tanto a dele quanto a dos heterônimos, não expressa sua mundivisão, nem seus sentimentos ou opiniões. Pessoa, como diz o célebre verso “O poeta é um fingidor”, finge no sentido mais originário do termo: ele é o oleiro, aquele que trabalha com a terra – em latim, figulus , derivado do verbo fingere , que significa fabricar, plasmar, moldar figuras no barro. Os heterônimos são máscaras, mas – frise-se – não da subjetividade de Pessoa. Nem mesmo a poesia do assim chamado ortônimo é expressão de uma suposta subjetividade. Cada figura de sua obra, inclusive ele mesmo, é uma persona (máscara). No vazio das máscaras que são, entrevê-se a questão do nada, de que promanam todas as coisas, e da finitude, da terra, do húmus que somos: a palavra homem vem do latim humus , que significa “terra”. [8] O que move sua obra é fundamentalmente a questão do ser homem – do que é o homem – e de seus caminhos de realização. Dialogar com um poeta como Caeiro, portanto, é se tornar disponível para ouvir as questões que sua obra conduz, a experiência de sentido do real que se opera e se realiza na obra [9].

 

 

O pensamento poético como cura

 

Lá está ele, Caeiro, diante da porta. Ao nos aproximarmos, ele nos cumprimenta:

 

Saúdo todos que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo

Quando me vêem à minha porta

Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. [10]

 

Caeiro se dirige a todos, a toda humanidade, com o cumprimento gracioso do chapéu largo. Mas não uma a humanidade abstrata, entendida como um conjunto de homens cujas diferenças concretas são rasuradas e desconsideradas, e sim aos homens em sua humanidade, em seu ser-homem. Por este motivo ele pode se dirigir de modo caloroso a cada um de nós em particular, já que a poesia nos solicita uma experiência concreta de pensamento sobre a questão do que é ser homem. A ciência e a lógica, com suas leis genéricas e regras abstratas de um pensar que se supõe “correto”, produzem uma verdade abstrata. [11] Na poesia, ao contrário, nos é oferecida uma experiência com a qual concrescemos na ética do diálogo com as questões que a obra opera. Não somos capazes de dar respostas definitivas às questões, mas no diálogo com elas somos, cada um de nós, a partir do que nos foi destinado, convidados a uma experiência “re-generadora”, de retorno ao génos , à origem. A poesia, assim, é capaz de engendrar mais originários modos de perceber as coisas.

Por isso mesmo, p ensar não se reduz a raciocinar, estabelecer conceitos definidos e supostamente “corretos” a partir da interpretação do logos como lógica. A palavra logos é anterior à lógica entendida como as regras de um pensar “correto”. Logos vem do grego légo , que significa originalmente “colher”, “escolher”. Na colheita, na escolha, o homem entra em diálogo com as coisas. Não fica meramente conceituando subjetivamente o que elas são. Há outras formas de se relacionar com o real que não só o raciocínio lógico-abstrato. Há pensamento também no mito, na mística, no ocultismo, no esoterismo, no sagrado, nas religiões, na arte – muito embora a ciência queira, via de regra, negar a validade destas outras abordagens do real. E, como fonte primordial de todo pensamento, as potências da Vida e da Morte, de Éros e Thánatos , que regem todas as coisas em sua constante deveniência.

Assim, do mesmo modo como não se há de confundir pensar com raciocinar, não se pode confundir a poesia com o poético. O poético, derivado do verbo poiéin (agir, engendrar, criar), é ação que instaura não só as coisas, mas solicita ao homem a construção de sentido do que elas são. É a esta ação de instaurar e construir sentido do real que estamos chamando de realização . A ação originária é do real, daquilo que a partir de agora também passaremos a denominar de phýsis , termo pelo qual os gregos evocaram a manifestação das coisas em sua totalidade. A phýsis é aquilo que Caeiro chama freqüentemente, ao longo de sua poesia, ora de “Natureza”, ora de “Universo” e, nos versos abaixo, de “Terra”:

 

[...] a única casa artística é a Terra toda

Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. [12]

 

Em sua constante mutação, a phýsis já é ação. Ela muda, mas, ao mesmo tempo, de um modo transfigurado, persevera . [13] Morre uma árvore e nasce outra. Elas não são iguais, mas provém da mesma ação originária, que é a própria phýsis , o próprio real se manifestando. A phýsis agindo, se manifestando em seu constante devir, se doa ao homem como questão. Quem interroga prioritariamente não é, portanto, o homem, mas as questões, porque estas o atravessam e interpelam: o homem já está sempre colocado entre as coisas e, por isso, apenas corresponde às questões. Essas o “inter-pelam” porque o apelo prévio é do “entre” ( inter ), entendido como o vazio que se doa e apela o homem para a construção de sentido do real. O poético, a ação, também não é originalmente do homem, mas da phýsis , do real, da totalidade das coisas se mostrando e simultaneamente se encobrindo. Neste encobrir é que elas podem se oferecer como questão: se já soubéssemos o que é o real, não seria possível nem questionar nem efetuar realizações...

Uma obra de arte, como a poesia ou qualquer outra, corresponde às questões, operando a verdade como manifestação do sentido do real. O pensamento, quando é pensamento, é sempre poético, porque é ação que responde ao apelo das questões (por isso mesmo, a medicina só é medicina quando pensa). O homem só verdadeiramente age quando pensa, quando corresponde ao apelo das questões, e, neste corresponder – portanto neste diálogo –, desvela sentidos da totalidade das coisas, do real ou da phýsis .

Mas, devemos nos indagar: o que é próprio ao pensar? Ora, o pensar só é pensar quando é cura, quando é cuidado que corresponde às questões que constituem o ser homem. Correspondendo às questões, o homem se constitui em seu ser. O pensar como corresponder às questões deixa a coisa ser coisa, deixa o real ser real. O que eles são, não o sabemos, e por isso mesmo eles nos interpelam. Pensar como raciocinar é só medir, não é pensar, pois reduz as coisas a objetos, não permite que as coisas sejam .

No início destes escritos, nos perguntávamos sobre o laço que uniria poesia e pensamento. Agora, talvez, já possamos entrever algo a esse respeito. Poesia e pensamento se encontram na realização de sentido: sua fonte mais originária é o poético. Este é o laço mais originário que une indefectivelmente poesia e pensamento. A poesia, portanto, entendida como uma atividade literária, é apenas uma das realizações do poético – este, sim, a dinâmica que impulsiona todos os caminhos do homem em meio ao real e todas as suas possibilidades de realização. Por outro lado, nem sempre há poeticidade na poesia. Diríamos até que muito raramente o há. Como diz Caeiro:

 

E há poetas que são artistas

E trabalham nos seus versos

Como um carpinteiro nas tábuas!...

 

Que triste não saber florir!

Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro

E ver se está bem, e tirar se não está!... [14]

 

Assim, há que se diferenciar entre duas acepções que ao longo do tempo tomou a palavra pensar: de um lado, o pensamento lógico-conceitual, que parte de uma metodologia prévia. Esta forma de pensar – se é que assim ainda podemos chamá-la depois do que dissemos – não é pensamento como cura, como cuidado com o corresponder às questões que o real nos oferta. De outro, o pensamento poético, que é aquele fundado na ética do diálogo com o real dentro do qual o homem já se acha desde sempre imerso. Este modo de pensar, sim, vige no vigor das questões. E, como realizamos quem somos no corresponder a essas questões, ele se encaminha para a cura. O pensamento poético não procura definir o real, mas deixá-lo se ofertar como real, permitindo que as coisas sejam coisas.

A poesia é a formulação de imagens que respondem às questões e se repõem também como questões: a poesia se apresenta como imagens-questões. E isto não é uma definição, porque o apelo das questões jamais se deixa confinar em respostas exaustivas. A poesia fala por imagens que convidam o leitor à experiência de um pensamento dialogal. O pensamento também responde ao apelo das questões. Poesia e pensamento falam do mesmo, mas não necessariamente de modo igual. Entretanto, as diferentes maneiras de corresponder às questões são sempre emanações do mesmo. Este “mesmo” é o poético como ação originária do real se destinando no homem como linguagem. Linguagem entendida não como instrumento comunicativo, mas como logos – diálogo com as coisas – e memória. E memória, aqui, não há de ser tomada como “capacidade mnemônica”, mas como o percurso humano das realizações que são ofertadas originariamente pelo próprio real e que se inscrevem na linguagem. Estas realizações são “arrebanhadas” ou reunidas – como, aliás, o faz Caeiro, o “Guardador de Rebanhos” – pelo logos , isto é, pela própria linguagem como memória e diálogo com as coisas.

 

O pensamento no limiar do sentido do ser

 

Caeiro está diante da porta: “Saúdo a todos que me lerem, / Quando me vêem à minha porta”. E nos convida a atravessarmos a porta. Que porta é essa em que Caeiro nos espera? A porta referida do poema não é uma porta qualquer. Na poesia, jamais estamos no espaço habitual em que cotidianamente nos movemos. Aquela porta não é a porta empírica de todos os dias, mas uma imagem-questão. O universo da poesia é em tudo extraordinário, mas existe justamente para provocar o impensado do que se tornou ordinariamente pensado. A porta diante da qual está Caeiro, e para a qual convida a nos aproximarmos, é a do limiar da transformação no sentido do ser. Mas, o que vem a ser o sentido do ser? Expliquemo-nos.

Face à constatação de que as coisas mudam, mas também, de modo transfigurado, perseveram, surge a questão do ser. O que se pergunta nesta questão é a proveniência a partir da qual o real ou a totalidade das coisas são. A questão sobre o ser não se detém, entretanto, sobre este ou aquele ente particular – uma árvore, uma mesa, uma quimera, este ou aquele homem –, mas sobre a proveniência do real, da totalidade das coisas ou dos entes em geral. O homem está colocado dentro do real, e não diante dele, o que seria a atitude do sujeito contraposto às coisas, reduzindo-as a objetos. O homem é uma coisa entre outras coisas, é o ente que é em meio a outros entes que ele não é. Na imagem-questão de Fernando Pessoa, somos “uma carne inteligente, / Embora às vezes doente”. [15] Na de Álvaro de Campos, somos os “entes vestidos que se cruzam” nos passeios públicos. E, como os cães e os “carros que passam”, passamos não porque andemos – nós e os “cães que também existem” – de lá para cá, mas porque temos inscrita em nossa raiz a finitude... [16]

Pois bem: por certo que o homem não é a totalidade das coisas, mas, no seu modo de ser, há sempre uma compreensão geral do que as coisas em sua totalidade são. E isto já o dizia Aristóteles: “hé psykhé tà ónta pós éstin ” (“a alma do homem é, de certo modo, todos os seres, todos os entes que estão sendo”). [17] Assim, a palavra “ser” não é um mero verbo de ligação, como pretende a gramática. Esse enfoque já resulta do esquecimento da questão do ser. Quando dizemos “eu sou Antônio, ele é Caeiro, isto é uma mesa, aquilo é uma árvore”, estamos conferindo um sentido às coisas, um sentido ao real, ainda que não possamos definir nem o que é o real nem a sua proveniência, que é o ser. O ser é uma questão. Mas o fato de não poder ser definido não nos dispensa de por ele questionar. Muito ao contrário, por isso mesmo o exige acima de todas as outras questões. E isso porque, uma vez questionando o que é o ser, o homem é destinado a construir sentidos do real ao longo do tempo e, portanto, a se realizar em seu próprio ser. A questão do ser nada tem de abstrata, como o entende o senso comum: ela é “con-creta”, porque “con-crescemos” no vigor deste questionar.

Este é, portanto, o destino do homem: existir dentro do real, procurando a realidade – isto é, o ser, a essência do real (diríamos até, o “real verdadeiro”) –, mas alcançando sempre só realizações, ou seja, essencializações . Essência é diferente de essencialização. Aquela é estática, um fundamento permanente para além do real. A essencialização pressupõe o poético, isto é, a ação originária da phýsis ou do real que, se doando ao homem como questão, solicita-o a instaurar sentidos das coisas. E isto porque não sabemos o que é uma coisa, o que é o real, nem a sua proveniência: não sabemos o que é o ser. Se já soubéssemos o que eles são, a luta pelas realizações estaria acabada. O próprio homem acabaria, pois se tornaria um fato consumado. Mas não é assim, porque o homem é um constante processo de realização. E, se é processo, se é realização, o que se é ou se está sendo só se realiza e dimensiona a partir do que não se é ou não se está sendo: o sentido do ser provém do não-ser.

O real se nos mostra como fenômeno. Entretanto, ao indagarmos o que ele é, ele se retrái, se oculta. A verdade não é, portanto, aquilo que o sujeito predica sobre um objeto. Como diz Caeiro:

 

O Universo não é uma idéia minha.

A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.

A noite não anoitece pelos meus olhos,

A minha idéia da noite é que anoitece pelos meus olhos. [18]

 

A verdade é o real se manifestando, se doando e ao mesmo tempo se retraindo. É o que nos diz Heráclito: “ phýsis krýptesthai philéi ”. [19] Este fragmento é habitualmente traduzido por “a natureza ama se esconder”. Mas a tradução mais feliz poderia ser “aparecimento engendra ocultação”, uma vez que o termo phýsis não evoca o mesmo que “natureza” – pelo menos no sentido que modernamente a entendemos, como relação de causas e efeitos do mundo fenomênico. Phýsis é o mostrar dos entes em sua totalidade – mostrar que ao mesmo tempo encobre sua proveniência: o ser Esta é a questão do ser: a pergunta pela proveniência do real, pela proveniência das coisas em sua totalidade . O real se mostrando e se ocultando é mais do que um convite: é o que destina o homem a “des-ocultar”, na vigência do pensamento poético, sentidos do ser ao longo do tempo, isto é, ao longo das realizações da História. E História, aqui, não deve ser compreendida no ordinário sentido linear-causal de fatos acontecidos com uma suposta concatenação lógica – concatenação lógica que pressupõe uma metodologia que, via de regra, se converte em ideologia a serviço da sofística e da retórica na pólis –, mas como emanação daquela mesma fonte originária que é o poético, a ação do real que se destina no homem como o questionar e desvelar o sentido do ser. É isto precisamente o que faz Caeiro.

A porta diante da qual ele está é o limiar de uma nova e originária compreensão do sentido do ser. A “diligência que levanta no cimo do outeiro” traz a humanidade inteira, não só a nós que estamos conversando com ele agora. Ele nos convida a percebermos o real não só de uma nova e mais originária maneira, mas também mais feliz e mais sábia. Ele quer nos medicar pela ação do pensamento, ofertar-nos uma cura. Mas por quê? Por que essa necessidade de superação? De que doença padecemos?

 

Da amnésia da questão do ser

 

Face à decisiva questão sobre o ser, isto é, sobre a proveniência a partir da qual as coisas em sua totalidade são – o que equivale a questionar sobre o que persevera em meio a tudo o que muda –, o mito indicava que era a saga dos deuses e dos homens. O que perseverava, portanto, era a própria palavra ( mýthos , como se sabe, quer dizer “palavra”) que narra e ritualiza esta saga que é manifestação do sagrado como força epifânica instauradora de mundo – mundo entendido como a totalidade das complexas relações entre o homem e o sentido das coisas. Os mitos se apresentavam como imagens que se repunham como questões. Por isto, ainda hoje e sempre serão vigentes, pois não se deixam aprisionar em conceitos definidos. Quando indagamos o que a imagem-questão tutelada pelo mito quer dizer, ela se retrái. E, nesta retração, somos solicitados a construir sentido. Na construção de sentido, o mito e a arte se encontram: eles são emanações do poético se doando como questões. E trazem não só a memória viva das realizações humanas através dos tempos, mas o sentido do que o homem é no presente e suas possibilidades de realização futuras. O mito e a arte guardam as possibilidades do que o homem foi, é e será. Como diz Pessoa, “o mytho é o nada que é tudo”. [20]

Entretanto, ao longo do percurso do pensamento ocidental, a questão sobre o ser – a questão sobre o que persevera em meio à deveniência da totalidade das coisas – degenerou em uma resposta substancial, isto é, em algo que, como o nome diz, está posto em baixo ( sub ) do real em seu constante devir, permanecendo firme e imutavelmente de pé ( stáre ) . Em Platão, o que permanece é a idéia, oposta ao mundo sensível, tomado como corruptível e por isso aparente; em Aristóteles é a substantia , que se opõe aos accidens – isto é, os “acidentes”, as qualidades não essenciais das coisas; na teologia supranatural do medievo, deus é o fundamento permanente do qual o mundo sensível é apenas uma cópia; na Modernidade, este fundamento permanente se converte no sujeito cartesiano, o qual serve de base para a projeção da realidade feita a partir da metodologia prévia. As épocas históricas são certamente diferentes, mas no âmago não há solução de continuidade na tradição onto-teo-lógica, pois o ser é tomado por uma substância estática e imutável, colocada para além ( metá ) da phýsis . Daí o termo “metafísica”, cujo sentido original do metá , que queria dizer “entre”, viu-se transformado pela tradição em “além”.

Mas, neste passo, é legítimo que alguém pergunte: os mitos e o sagrado também não procederiam de modo semelhante, ao estabelecer um transcendente para além do que se costuma chamar de “realidade imanencial”? Seremos obrigados a discordar, pois não nos parece que os mitos e o sagrado possuam originariamente esta dinâmica de realização. Os que entendem deste modo já estão presos, a nosso ver, às determinações da tradição metafísica na compreensão tanto do fenômeno mítico quanto do que é o real: os termos “transcendência” e “imanência” já pertencem a um jargão metafísico que deixa transparecer a cisão do real ou da totalidade das coisas em dois mundos. O que o mito como manifestação do sagrado projeta não é um transcendente para além das coisas. É um sentido ou uma pluralidade de sentidos que uma “co-letividade” realiza no seu estar entre a totalidade das coisas ou entre aquilo que os gregos chamaram de phýsis . Trata-se de uma metafísica no sentido mais originário e autêntico do termo: o metá de metafísica como “entre”, não como “além”. O homem se move dentro do real, procurando a realidade – a proveniência do real, o ser – mas fadado sempre só a realizações. E o mito é uma realização, uma essencialização, que provém justamente do fato de jamais sabermos o que são as coisas, só as “des-velarmos” dialogalmente. Elas, quando indagadas, se retraem, se velam. E, nesta retração, o real se destina no homem como apelo à construção e desvelamento do sentido do ser. O mito responde a este apelo que provém da mesma dimensão originária que é o poético: a ação originária da phýsis ou do real se doando como questão. A palavra mítica, portadora do sagrado como experiência originária de fundação de mundo, é imagem-questão que responde ao apelo das questões que constituem o ser homem. Logo não se deixa aprisionar em definições, no sentido de “por fim” às questões às quais ela responde. Todos os mitos, de todas as religiões, de qualquer tempo, são realizações, são respostas ao apelo previamente colocado pelo real, justamente porque não sabemos nem o que é o real nem a sua proveniência: o ser.

A metafísica ocidental, entretanto, ao se configurar em tradição, estabeleceu respostas sobre o sentido do ser que fecharam e terminaram por esquecer a questão. O que era questão, portanto convite à pergunta, se converte em resposta substantiva. O ser é entificado, confundido com um ente, identificado com uma coisa, substantivado. A tradição metafísica esquece-se da diferença ontológica: o fato de que o ser não é um ente. O ser, ao contrário, e mais originalmente, é a proveniência a partir da qual os entes são. E esta é uma questão, não um ente. Neste sentido, o ser não é nem transcendente nem imanente. Ele não é um ente transcendental que subsiste para além das coisas (como no idealismo platônico) nem é uma essência ou substância no interior das coisas (como no realismo aristotélico). Por ser uma imagem-questão, o mito não poderia dar fundamento à lógica como um pensar “correto” e silogístico, e isto o difere radicalmente da tradição filosófico-metafísica. Resta a pensar o quanto a lógica não provém, ela mesma, de uma fulguração mítica que terminará por praticar um parricídio...

Do grandioso berço filosófico grego emanou a questão sobre o ser. Mas que depois vem a ser esquecida no processo de realização e constituição da metafísica. Esse esquecimento não é atribuível propriamente nem a Platão, nem a Aristóteles, pois estes viviam no vigor da questão do ser. Quando Aristóteles se pergunta sobre o que é o ente ( tí tò ón; ), ele não está se indagando sobre o que é um ente em particular, mas o ente em geral. O que ele questiona, portanto, é “a proveniência graças à qual o ente é”, ou seja, a origem, o ser dos entes. Se aqueles pensadores se perguntavam sobre o ser dos entes, era porque não sabiam o que ele era, pois tudo o que se pode vir a saber é doação do que ainda não se sabe. A tradição filosófico-metafísica ocidental é que promoveu o esquecimento da questão. [21]

O esquecimento da questão do ser, mediante o estabelecimento de um fundamento substancial que se mantém para além da phýsis , negando-a em sua constante deveniência, foi o que permitiu à tradição metafísica a conversão do logos em lógica, como um pensar abstrato, “correto” – na acepção de “verdadeiro” – e instrumental. [22]

No âmbito da lógica, a verdade seria a adequação entre o juízo humano sobre as coisas e a essência substancial que o homem projeta sobre as coisas. Veja-se que curioso: trata-se do homem estabelecendo um fundamento abstrato e substancial para além das coisas, para além da phýsis . E dizendo, em seguida, que a verdade é a adequação entre o que ele predica sobre as coisas e este fundamento abstrato e substancial por ele mesmo projetado. Neste sentido, o pensamento lógico, como se vê, é inteiramente tautológico. Ele não é pensamento, pois só é capaz de repetir a pressuposição de que ele mesmo parte . O pensar da tradição metafísica e filosófica não deixa o real ser real, a coisa ser a coisa e, por isso mesmo, acaba se esquecendo sobre a questão do sentido do ser. Em face da tradição filosófica, chegará Caeiro a dizer que “os filósofos são homens doidos” [23], e isto porque:

 

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
[24]

 

O ver como cura do pensamento representativo

 

Caeiro nos propõe que recuperemos a questão sobre o sentido do ser, superando o entendimento do que é o real fornecido por mais de 2.500 anos de tradição filosófica. Com este intento, o poeta-pensador joga constantemente com os sentidos do ver e do pensar. Ele nos diz:

 

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa. [25]

 

Que “ver” será esse de que nos fala o poeta? Certamente não é uma mera função visual ou um olhar perdido para as coisas. E este ver, efetivamente, não se opõe ao pensamento poético. O pensar contra o qual o ver preconizado por Caeiro se opõe é o pensar como representação. O que é um pensar representativo? É aquele que apenas “re-apresenta” as categorias de um pensar conceitual sobre as coisas. No pensamento representativo, a verdade está na dependência do que o homem diz que as coisas são, não no que elas são . Abordando-as conceitualmente, com as categorias de um pensar lógico-abstrato, as coisas não se mostram, são silenciadas. São as idéias que o homem tem das coisas que prevalecem sobre as coisas. O pensar representativo não se abre para a ética do diálogo, apenas se confina no monólogo. É contra este pensar, que na Modernidade se fundamenta nas certezas do sujeito metodologicamente aparelhado determinando a verdade do que seja o objeto – mais ainda, reduzindo as coisas a meros objetos –, que se opõe Caeiro. Contra o pensar da vasta trama conceitual fundada na lógica, o poeta propõe o ver, que não é o da visão ordinária, mas o da abertura para o extraordinário abrigado pela poesia. Por isso, também nos dirá o poeta:

 

O meu olhar é nítido como um girassol. [26]

 

O girassol volta-se para o sol, mas não pensa representativamente o que é o sol. Dirão: “Mas é lógico! Um girassol não pensa...”. Entretanto, perguntaremos: se o que é próprio ao pensar é a cura, não procurará o girassol a sua cura quando se volta para o sol? Afinal, cada ente que vive sofre da sua própria “doença”... E, portanto, necessita e procura pela cura que lhe serve, por sua própria cura – “própria” no sentido do que lhe foi destinado... Demais disso, nessa imagem do girassol – e não à toa – o que está em causa não é o girassol, mas os caminhos do ser homem nos seus percursos de realização. O girassol do poema, voltando-se para o sol, alude ao mitologema platônico da caverna. [27] Mas, diferentemente daquele cavernícola que, em meio a outros que vivem na obscuridade, se volta para o sol procurando com a intelecção dialética um eidos – isto é, uma idéia abstrata e genérica para além das coisas –, Caeiro exercita no ver e no olhar o pensamento poético, deixando o real ser real, o sol ser o sol, com seu calor dispensador de vida e de morte. O ver e o olhar, em Caeiro, são pensamento poético. Por isso, também nos dirá o poeta:

 

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... [28]

 

O ver significa estar em presença das coisas, deixando-as se manifestar, aparecerem como fenômenos. “Estar doente dos olhos” é ficar projetando as categorias humanas lógico-abstratas sobre as coisas, conseqüentemente impedido de exercitar um pensamento dialogal, que deixe a coisa ser coisa, que permita que ela se mostre. Mas, neste mostrar, ela também se oculta, porque não sabemos o que é uma coisa. [29] É a partir desta ocultação que somos convidados a exercitar o pensamento poético, a conferir sentido ao real, a se abrir para a questão do ser. Na Modernidade, esquecidos da questão do ser, ficamos murados na trama conceitual metafísica. Caeiro, exercitando o pensamento poético, quer nos curar desta cegueira.

A oposição que Caeiro efetivamente realiza é entre o ver como pensamento poético e o pensar como representação. E esta oposição a própria etimologia o explica: “ver” se dizia, em grego, ideîn . Com a cisão entre “mundo sensível” e “mundo inteligível”, ideîn se converteu em idéia, concebida como projeção de um fundamento substancial abstrato e genérico para além da phýsis . Para que isto ocorresse, a phýsis não só já teve de ser separada em dois mundos, mas ela mesma, como questão que se doou aos pensadores originários ou fisiólogos – os pensadores anteriores a Sócrates, que meditaram sobre a phýsis e sua proveniência – teve de ser esquecida. Ao esquecimento da phýsis corresponde o esquecimento da questão do ser, do que é o real, do que são as coisas: atribuindo um fundamento estático para além da phýsis , o que era uma questão que provocava o pensamento se converte em uma resposta substancial. O poetar pensante de Caeiro, como visto, tem um desdobramento ético: quando Caeiro nos diz que “O mundo não se fez para pensarmos nele / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...”, o poeta substitui o juízo representacional do verdadeiro contraposto ao falso, típico da lógica, e do certo contraposto ao errado, típico da ética, para repor a manifestação do pensamento poético como éthos , isto é, a morada do homem, no mesmo sentido do que proclama Hölderlin: “ Dichterisch wohnet der Mensch auf dieser Erde ” (“Poeticamente habita o homem esta Terra”). O homem é uma doação do poético, que é o real agindo e se doando a ele como questão sobre sua proveniência, isto é, o ser. É na prévia doação do ser que o homem pode constituir mundo e instaurar a “morada poética” que lhe foi destinada. Então, diz-nos Caeiro:

 

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos... [30]

 

O que quer nos dizer o poeta com esta afirmação? Que ele não pensa a partir do fundamento estático da tradição metafísica, na qual se baseia a trama lógico-conceitual em que nos achamos imersos. A verdade deixa de ser judicativa para se converter em manifestativa. Ela é o próprio real se manifestando e se ocultando: a verdade é a não-verdade eclodindo e agindo. Diz ele:

 

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. [31]

 

Note-se que Caeiro não afirma que fala sobre a Natureza, mas na Natureza. Nesta preposição há toda uma mudança de postura em relação à tônica da Modernidade. Ele não fala como se estivesse “fora” da Natureza, e pudesse objetivá-la como um sujeito: ele fala já imerso no real, dentro e em meio ao real que a todos se doa e do qual somos todos doações. A Natureza não é definida conceitualmente, a partir de uma metodologia subjetivista prévia. É uma postura muito diferente da funcionalização, controle e instrumentalização da Natureza efetuadas pela Modernidade, e esses também são males que Caeiro quer nos ajudar a curar. Ele afirma peremptoriamente que não sabe o que é a Natureza, ou seja, que não conhece nem o que ela é nem a sua proveniência. Há uma dimensão ontológica no que ele afirma: ele se abre para a questão do ser, isto é, do que é o real, do que são as coisas, do que é a Natureza, do que é a phýsis , recuperando a meditação/medicação dos pensadores originários. Entretanto, a partir do que não se sabe, do que está latente, abre-se a potencialidade do vir-a-saber, que nos põe em processo de realização. Assim como o ver é doação do não-visto, o saber é doação do não-sabido, e o patente é doação do latente –, do mesmo modo o ser é doação do não-ser, e o ente doação do não-ente. O que não é ente não é nada. Mas, não nos esqueçamos da diferença ontológica: o ente é o que não é o ser. Se o ser não é um ente, e este é aquilo que é ou está sendo, então o ser não é, porque, se fosse, seria ente. O ser é o nada que se doa como latência das possibilidades de realização que se tornam patentes. [32] Como nos diz Caeiro:

 

Eu nunca passo para além da realidade imediata.

Para além da realidade imediata não há nada. [33]

 

Do pensamento como desvelo

 

Caeiro propõe, assim, a pedagogia da aprendizagem em lugar da pedagogia do aprendizado. O que caracteriza a pedagogia moderna é a determinação conceitual das coisas que se consuma na reprodução de um aprendizado abstrato já consabido, passível de doutrinação, reprodução e ensino. O poeta, ao contrário, propõe a aprendizagem como realização, como dinâmica pela qual a ação do poético nos interpela a nos transformarmos na construção de sentido em diálogo com as coisas. A aprendizagem vige na aventura pelo desconhecido e pela travessia. Para que ela ocorra como ação poética regeneradora, é preciso deixar que as coisas se mostrem, sem judicar subjetivamente o que elas são. A verdade, em Caeiro, não é o juízo metodológico mas manifestação, como evoca a palavra grega alétheia , formada da partícula negativa alfa e do nome da deusa Léthe – deusa que personificava o esquecimento e o rio que envolvia o reino dos mortos. Alétheia pode ser traduzida, assim, por “des-velamento”, ou seja, o processo pelo qual algo que está velado se manifesta. Mas, nessa manifestação , ainda assim continua se velando, se retraindo. Quando abordamos conceitualmente as coisas, não demonstramos desvelo por elas, porque elas não podem se mostrar, se doar, se oferecer a um pensamento como cura. Ficamos apenas judicando e predicando o que são as coisas, mas elas mesmas não se mostram. Caeiro, ao contrário, propõe a verdade como desvelo para com as coisas . Por isso ele dirá:

 

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos. [34]

Guardar um rebanho é ter por ele desvelo, cuidado, deixar que ele seja o que é. Como alguém que rega uma planta, mas não fica o tempo todo a manipulando, controlando, podando, o que poderia até prejudicá-la e levá-la ao estiolamento – como, aliás, o faz a metodologia que, com seu “cuidado” excessivo, se revela não cuidado, mas sede de controle. Caeiro, ao contrário, é o guardador de rebanhos porque reúne no logos como colheita e diálogo poético a memória da phýsis , ou seja, a memória do pensamento sobre a questão do que é o real e a sua proveniência: o ser. O que está em rebanho está “re-unido”. Os entes em sua multiplicidade, nas diferenças do que cada um é, estão “re-colhidos” e “re-unidos” no logos não como lógica, mas como e em diálogo. Nesse diálogo, as diferenças do que cada um é são dispensadas por uma fundamental proveniência, que é o ser, o qual se doa ao homem como questão que o incita aos múltiplos percursos de realização. Por isso, dirá Heráclito:

 

Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um. [35]

 

Deste modo, os pensamentos de Caeiro, que são o rebanho, não estão em oposição ao ver por ele tão preconizado. Porque esse pensamento de que fala o poeta não é conceitual, racional, representacional, mas poético. Caeiro procura deixar as coisas serem o que são, o rebanho ser rebanho. Daí ele afirmar que seus pensamentos “são todos sensações”:

 

E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. [36]

 

Na trama conceitual metafísica, as sensações são contrapostas ao pensamento. Mas essa contraposição já decorre da interpretação filosófico-metafísica do real. Originariamente, pensar é curar, mas se converteu, a partir da cisão da phýsis em mundos sensível e inteligível, e da conseqüente entificação do ser estabelecida pela tradição filosófica, em raciocinar de modo lógico. Esta cisão, entretanto, é o homem quem estabelece, não é a phýsis , porque ela em si mesma não está cindida: ela é ou está sendo. Lembremo-nos do que diz Heráclito quando ausculta o logos : “tudo é um”. A referida separação igualmente se estendeu ao que se costuma conceber por sentir, o qual, derivado do radical indo-europeu “ sen(t/s) ”, significava não somente “perceber através dos sentidos, experimentar uma sensação ou sentimento”, mas também “conhecer, estar alerta e consciente, experimentar, pensar”. Antes da trama lógico-conceitual se impor, sentir não se opõe a pensar. Essa oposição só há no âmbito da tradição metafísica, pois sentir não é somente aquilo que se conhece com o exercício dos cinco sentidos. Sentir é pensar poeticamente, e pensar poeticamente é sentir. Em Caeiro, não há oposição entre pensar e sentir nem entre pensar e ver. Sucede que esses são vistos mais originariamente: o pensamento é encarado como pensamento poético, aquele que permite que o real se manifeste, não uma definição conceitual. Por isso ele pensa “com as mãos e os pés, e com o nariz e a boca”: seu pensamento é poético, fundado no éthos do diálogo com as coisas. E é principalmente concreto, corporificante, ou seja: o pensar deve se incorporar à existência como um todo em sua caminhada de realização, e não ficar aprisionado aos ditames de uma razão lógico-abstrata. Ficar preso à determinação racional do pensamento como medida e representação da realidade é estar doente dos olhos, e desta doença Caeiro também quer nos curar.

Em Caeiro, a metafísica assume aquele sentido mais originário. Não o fundamento estático para além da phýsis , mas o estar entre as coisas. A metodologia, entendida como arsenal prévio com que se abordam as coisas, se converte em método, o caminhar entre as coisas. Caeiro é interdisciplinar no sentido do “entre”. E este “entre” não é um “espaço físico” entre as coisas, mas o vazio, o nada ou a abertura que possibilita o diálogo a partir da qual os diferentes entes que são se constituem em suas identidades e diferenças concretas.

 

Da incorporação da sabedoria e da felicidade

 

Foi por isso propusemos aqui uma caminhada com Caeiro: ele, como um médico no sentido ótimo e etimológico do termo, propõe-nos o exercício do pensamento como cura e libertação da trama conceitual lógico-metafísica, de modo a nos reabrirmos à questão do ser em diálogo poético com as coisas. Mas não nos enganemos: “isto exige”, lembra-nos o poeta, – “tristes de nós que trazemos a alma vestida” (vestida de conceitos) –, “um estudo profundo”, uma verdadeira “aprendizagem de desaprender”. [37] Afinal, a tradição metafísica é multissecular, e está entranhada na linguagem que, como memória, pensa em nós – a despeito do que supõe o homem moderno que converteu a linguagem em instrumento e a si mesmo em sujeito. Por isso, nos diz o poeta:

 

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.


Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
[38]

 

Ao ansiar por ser este “animal humano que a Natureza produziu” – que a phýsis , que o real em sua ação originária produziu –, Caeiro deseja liberar-se da determinação advinda da tradição metafísica do que seja o homem, tomado como “animal racional” ou “sujeito pensante”, na acepção daquele ente que é dotado de razão como medida lógico-abstrata. Apesar de reconhecer que lhe “pesa o fato” dos conceitos que “os homens o fizeram usar”, o que Caeiro sabe que deve sentir – e que todos nós de algum modo já sabemos na vida concreta – é que, como diz Manuel Antônio de Castro, “não é a razão conceitual que determina a realidade, mas que é o pensar das questões que configura todo saber que constitui o ser-humano”. [39]

Abrindo-nos para o poético como ação do real que em nós se doa como diálogo corporificante com as coisas, poderemos nos libertar do triste, paralisante e doente consolo metafísico da projeção de uma substância estática e abstrata por detrás ou para além da deveniência da totalidade das coisas. Poderemos igualmente medicar-nos com um pensar que é cura da doença de estarmos murados pela trama conceitual metafísica: esta é a doença de que a Modernidade padece. Lembremo-nos do que diz Angelus Silesius: “Não pertences ao todo se fixo é o teu ser”. [40] E também, de modo mais ontológico, poderemos nos entregar ao pensamento poético como cura da ferida de sermos húmus, de sermos terra e finitude.

Deste modo nos será dado ingressar em um patamar superior da sabedoria – a sabedoria trágica. Não o trágico vulgarmente entendido como evento catastrófico, mas como pensamento poético advindo da questão da finitude radical que envolve todas as coisas. Esse saber é aquele já expresso por Ésquilo na peça Agamêmnon : o páthei máthos , que evoca a aprendizagem pelo páthos , isto é, pelas paixões, por um sentir que é pensar as questões que nos constituem em nosso ser. O homem não se põe no seu ser a partir do que racionalmente pensa, mas pelo que sente como pensar corporificante. Como disse Rousseau, “não se começou por raciocinar, mas por sentir”. [41] Por isso mesmo o corpo, a despeito da determinação metafísica do real que está na base da medicina moderna, não está separado do pensamento. Pois o pensamento poético já é corpo, e o corpo não é matéria, mas pensamento poético. Corpo é pensamento, e pensamento é corpo. [42] Como diz outro grande Fernando, o poeta-pensador Fernando Mendes Vianna,

 

O corpo é sábio,

é da terra e para a terra, por isto é sábio.

Sê humilde perante o corpo sábio, pois o corpo

pensa de acordo com as raízes mais profundas .

Não façais de vossos corpos, corpos mortos como essas grandes âncoras

solenes e imutáveis que prendem os barcos ao cais.

Crê no teu corpo, mesmo que não o entendas.

O corpo é a suprema poesia, a grande síntese,

a poesia de nascer, de viver, do amadurecer, do morrer.

O corpo corporifica,

em um corpo, todas as coisas mais diversas

– assim como uma ponte reúne em seu trajeto

passageiros vindos de pontos variados. [43]

 

A ponte que reúne na identidade a diversidade dos “passageiros vindos de pontos variados” é o logos como diálogo próprio ao pensamento poético, o qual se abre para a dinâmica das realizações que nos constituem concretamente em nosso ser-homem. E a sabedoria trágica de sermos “da terra e para a terra” é um penso que se aplica procurando a cura e o cuidado com a ferida de sermos húmus, finitude, de sermos uma doação da dança de Éros e Thánatos , de sermos pensamento poético que corporifica e se incorpora nas nossas trajetórias de realização. Mas é também a partir da finitude que a todas as coisas envolve, do não-ser, do nada, do vazio entendido como fonte de doação – e não meramente um esvaziamento de perspectivas como se passa freqüentemente na agitação da vida moderna –, que nos é ofertada a possibilidade de nos realizarmos em nossas identidades e diferenças. De nos tornarmos quem somos. Pois vida e morte estão inextricavelmente ligadas. Como não somos estáticos, existimos vivendo e morrendo a todo instante. Vida e morte são um e o mesmo. Como diz Heráclito, “caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”. [44] Por isso mesmo, a morte não é um término, no sentido de esgotamento. Ela é um telos , o cumprimento da plenitude das potencialidades daquilo que, a partir de sua proveniência, se realiza, se mostra e fulgura na ocultação. A morte é luminosa no seu velamento e grávida de vida. Como diz Pessoa:

 

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não ‘stás morto, entre ciprestes.

.....................................................

 

Neófito, não há morte. [45]

 

Compenetrados do saber concreto e corporificante de sermos húmus, poderemos também almejar ser mais felizes, no sentido mais originário do termo, que é o da fecundidade. Estas duas palavras advêm da mesma experiência poética, expressa no radical latino “ fec -”, que dará origem a félix , (felicidade), femina (mulher) e foetus (feto ou mulher grávida). A mulher, a Terra-Mãe, o feto são promessas de fecundidade e felicidade. Só é fecundo o que morre, pois a vida é doação da morte, e a morte está enamorada da vida. A fecundidade vem do vazio, do nada, daquilo que justamente a tradição metafísica se negou a pensar, porque esteve sempre a buscar a cura da finitude de todas as coisas no consolo metafísico do fundamento estático e abstrato – fundamento que foi capaz de gerar a lógica, mas não a felicidade... E isto é o contrário do que faz Caeiro, que justamente medita e nos medica no pensamento da finitude, do que é o real e de sua proveniência: o ser.

“Pro-vocados” pelo que nos diz o poeta, isto é, “trazidos à presença da voz” que opera em sua obra, poderemos – quem sabe? – fazer das nossas vidas a saúde pela aventura das realizações. Uma aventura que é ventura, em tudo diferente da doença... Realizando um pensar corporificante, concreto, que atua em nossas vidas, e que assume o nada não como desconsolo, mas como fonte de doação, talvez possamos dizer com Caeiro:

 

E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo... [46]

   

Bibliografia

 

 

ARISTÓTELES. De anima . Livro Gama.

 

CASTRO, Manuel Antônio de. “Caeiro pensador”. Ensaio inédito, 2006.

 

ÉSQUILO. Agamenon . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

 

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem . Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

 

________________. Sobre a essência da verdade: a tese de Kant sobre o ser . São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.

 

________________. Heráclito: a origem do pensamento ocidental : lógica : a doutrina heraclítica do logos. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1998.

 

HERÁCLITO. Os pensadores originários (Tradução de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski). Petrópolis: Editora Vozes, 1991.

 

PESSOA, Fernando. Obra poética . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

 

________________. Obras em prosa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

 

PLATÃO. A República . São Paulo: Nova Cultural, 1997.

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas . Campinas: Editora UNICAMP, 2003.

 

SILESIUS, Angelus. A mediação do nada . (Tradução Hubert Lepargneur e Dora Ferreira da Silva). São Paulo: T. A. Queiroz, 1986.

 

VIANNA, Fernando Mendes. Marinheiro no Tempo . Brasília: Thesaurus, 1986.

 

* Doutorando em Teoria Literária na UFRJ. O vertente artigo se insere em um contexto mais amplo, o da pesquisa de doutorado em realização na Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada “A mascarada trágica do teatro pessoano”, sob orientação do professor Manuel Antônio de Castro.

1.Utilizaremos aqui as expressões “as coisas”, “a totalidade das coisas” ou “o real” de modo equivalente, e isto em atenção à memória da linguagem consignada na etimologia: lembremo-nos de que a palavra “real” vem de “coisa” – em latim, res .

2.Muito embora no mitologema da caverna ( A República , Livro VII) Platão efetivamente empreenda a referida separação, não se pode a ele atribuir o que estamos chamando de “tradição filosófica” advinda do platonismo. A obra de Platão é monumental, ambígua e multívoca, e deixa entrever o vigor com que as questões foram ali tratadas. As escolas e epígonos, atuando através dos séculos, é que serão os responsáveis pela conversão em tradição de uma das possíveis respostas à inquietante questão sobre o que são o real e a verdade.

3. O termo epistemologia, ligado a epístasis , que significava a ação de se contrapor a algo ou alguém, inclusive no âmbito bélico, deixa entrever o que anima a metodologia: a abordagem do real por um instrumental que o sujeito utiliza para enfrentar os objetos. Por isso, escolhemos nos valer da expressão “sujeito contraposto aos objetos” para designar a relação metodológica, e o termo “homem entre as coisas” para designar a relação mais originária. Esta vem a ser método, não metodologia. Parece-nos fundamental diferenciá-los: “método” vem de metá (entre) e de hodós (caminho), e significa, portanto, “o caminho que concretamente se perfaz entre as coisas”. A metodologia já é uma derivação e uma modificação daquela relação mais originária. Esta modificação pressupõe, antes de tudo, a conversão do sentido original de logos , que é essencialmente dialogal, em lógica, concebida como as regras de um pensar abstrato, silogístico e que se supõe “correto”, isto é, “verdadeiro”.

4. PESSOA. Obra poética , p. 203.

Aqui nos parece necessário um comentário: a negação da alteridade conduz, nas mais diversas formas de relacionamento humano, a uma inegável e por vezes violenta estigmatização. Entretanto, algo será mais sintomático a respeito desta constatação do que o caso do assim chamado “louco”? Para se rotular alguém de “demente”, no âmbito das “ciências da psique”, usa-se o paradigma prévio e dicotômico do que é normal e do que é anormal, do que é doente e do que é são. Isto é feito no âmbito de um afã classificatório que visa às medidas terapêuticas e de controle – medidas psicanalíticas, psiquiátricas, químicas ou de confinamento. Mesmo a psicologia e a psicanálise, que não chegam a recorrer à “camisa-de-força química” no tratamento, como o faz a psiquiatria, se esquecem das diferenças concretas entre as pessoas quando partem de uma metodologia prévia para tratar dos pacientes. Tais ciências pretendem aplicar esta ou aquela teoria geral e abstrata para dar conta da multiplicidade dos caminhos humanos concretos de realização. O psicólogo, psicanalista ou psiquiatra que ficam presos à epistemologia ditada por uma teoria científica, qualquer que ela seja, desconsideram que a verdade é um processo dialogal, e que tem de levar em conta o outro em sua concretude e diferenças. Se alguém crê ser Napoleão, sem o ser, será taxado de louco. Dirão: “Ele não é Napoleão, ele é José. Se ele não sabe quem é, é um perigo para a sociedade e para ele mesmo”. E daí já é um passo para o manicômio (o sucedâneo das prisões, só que para “dementes”, não para “criminosos”). Eu, no entanto, que me suponho Antônio Máximo, nem por isso posso afirmar que sei quem sou. Até porque não sei o que é “ser”, já que o “ser” é uma questão, não uma resposta definida. E, apesar disso, estranhamente ainda não fui internado... Como diz Álvaro de Campos, no poema “Tabacaria”, “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? / Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!” (PESSOA. Obra poética , p. 363).

E, já que chegamos a tocar no deveras interessante assunto da loucura, não podemos nos esquecer de O Alienista , de Machado de Assis, nem da Enfermaria nº 6 , de Anton Tchekhov , obras que expõem a total ambigüidade entre o que é louco e o que é são. As “ciências da psique” se esquecem de que psykhé significa originalmente “sopro de vida” , e a vida e o real jamais cabem e se esgotam em classificações. Classificações que estão, aliás, normatizadas e positivadas pelo “CID – Código Internacional de Doenças”, o qual mais se assemelha a um Código Criminal com seus tipos penais (para as “doenças da psique”, construídas pelo discurso médico, consultar especialmente o Capítulo V, de F00 a F99). Lembremos, aqui, de uma outra frase de Montesquieu, em suas Cartas Persas – ele que não entendia pouco de leis: “ Les Français enferment quelques fous dans une maison, pour persuader que ceux qui sont dehors ne le sont pas ” (“Os franceses fecham alguns loucos em uma casa para fazer crer que os que estão do lado de fora não o são”).

5. Ricardo Reis informa-nos algo sobre o poeta: “Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa a (...) de abril de 1889, e nessa cidade faleceu, tuberculoso, em (...) de (...) de 1915. A sua vida, porém, decorreu quase toda numa quinta do Ribatejo (?); só os últimos meses dele foram de novo passados na sua cidade natal. Ali foram escritos quase todos os seus poemas, os do livro intitulado O Guardador de Rebanhos , os do livro, ou o quer que fosse, incompleto, chamado O Pastor Amoroso , e alguns dos primeiros, que eu mesmo, herdando-os para publicar, com todos os outros, reuni sob a designação, que Álvaro de Campos me sugeriu bem, de Poemas Inconjuntos ” (PESSOA. Obras em prosa , p. 115).

6. HEIDEGGER. “A linguagem”, in A caminho da linguagem , p. 13.

7. Duvidamos, aliás, que sequer haja o que se costuma chamar de “opiniões pessoais”... E isto porque quem fala, prioritariamente, não é o homem e, sim, a linguagem, a qual desde sempre já transporta, quando o homem nela se investe, sentidos do real: não temos a linguagem, ela é que nos tem . Por isso mesmo, o homem só fala quando “co-responde” às questões que o real previamente lhe oferta. Aí sim, pode-se dizer que o homem não só fala como “con-cria”, ou seja, “cria em diálogo com as questões”. O homem só fala quando concria. Mas, neste caso, a fala não é dele, na acepção de lhe pertencer exclusivamente. A fala é do diálogo, da linguagem como logos , entendida como reunião das diferenças, e jamais confundida com esta ou aquela língua: a linguagem é a origem e a identidade das diferentes línguas. Da fala da linguagem é que provém as concepções de real de uma coletividade histórica – concepções transportadas e inscritas na linguagem como memória das realizações de sentido. O termo “coletividade” ( cum-legere ) promana do radical “ leg- ”, que tem o sentido de “colher” e também dará origem ao termo logos . E uma “co-lheita” (em que também está presente o radical “ leg -”) só pode acontecer no diálogo com as coisas. Deste modo, até mesmo o que parece ser a mais arraigada “opinião pessoal” é no fundo o que chamaríamos, de um modo um tanto redundante, de “colheita dialogal”. Ou, talvez melhor, de um “co- logos ”. Por isso mesmo, Pessoa, mesmo quando escreve sob seu próprio nome, jamais poderia dar “opiniões pessoais” ou expressar seu modo de ver as coisas: quem fala originariamente em sua poesia é a linguagem.

Demais disso, o que é uma “pessoa” nem nós nem ninguém o sabemos. Sabemos apenas que uma pessoa é , que é um ente, que está sendo, mas não sabemos o que é “ser”. A pessoa é um constructo que se realiza a partir da prévia doação das questões. Como o termo “pessoa” vem de persona , que queria dizer em latim “máscara”, e toda máscara é vazia por dentro, o que somos não se define. O que chamamos de “pessoa” é um constructo e uma permanente questão que se doam a partir do próprio vazio da máscara. É este vazio que parece ser, antes de tudo, a proveniência dispensadora das identidades e diferenças concretas desta construção que é o homem.

8. Entendemos que as máscaras da obra pessoana encenam distintas posições sobre o sentido das coisas, consumando a poética da despersonalização que lhe é tão característica. É justo dizer em relação à sua obra – e a coincidência de nomes aqui não parece ser casual – que em Pessoa a persona tomou o lugar da pessoa. Como diz a máscara Fernando Pessoa, “Dizem que finjo ou minto / Tudo o que escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / com a imaginação. / Não uso o coração” (PESSOA. Obra poética , p. 165). O poeta não mente nem finge no sentido de dizer mentiras. O sentimento consumado em sua poesia não é o que ele mesmo como “pessoa” sentiria e, sim, o ato de criar figuras que se diriam escultóricas ou personagens ( personae , máscaras) de um teatro. Ele plasma alteridades, mesmo quando escreve sob seu próprio nome, pois não sente com o coração, mas com a “imaginação”, isto é, com a “ação de criar imagens” que se convertem em questões. E este “labor imaginativo” tem um sentido profundamente ético, pois constitui e afirma as alteridades ao invés de negá-las, como o faz o subjetivismo moderno que reduz as diferenças concretas a uma identidade abstrata.

9. Lembremo-nos de que a palavra “obra” vem do radical indo-europeu “ op- ”, que gerará em latim opus (obra) e operare (operar), e tem o significado de “produzir em abundância”, especialmente os frutos da terra. Operar é deixar algo aparecer, em plenitude, a partir de sua proveniência. Exatamente como uma planta que se mostra em sua plenitude a partir da semente. O que as diferentes obras de arte operam são os múltiplos sentidos do real, não porque haja mais de um real, mas porque são variados os caminhos de realização que o homem empreende em meio ao real, a partir de sua proveniência, o ser. Isto o deixa entrever Caeiro, nos versos acima já citados, agora tomados em um sentido mais profundo: “Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais ”. Apenas parece que chove mais quando o vento cresce, mas na verdade não chove mais, porque a chuva é a mesma. O pensamento próprio de cada diferente obra de arte traduz o “incômodo” de sermos homens, a dor de sermos húmus, finitude. Mas as diferentes obras provêm daquilo que é sempre o mesmo, embora não se realizem de modo igual. E este mesmo não parece : ele é ou está sendo, constantemente se doando nos múltiplos caminhos de realização que os homens empreendem em meio ao real. Como diz Aristóteles, tò òn légetai pollakhõs : “o ser ou o sendo se dizem de muitas maneiras”, isto é, a proveniência do real, o ser ou o que está sendo se mostram e se dizem de variados modos.

10. PESSOA. Obra poética , p. 204.

11. É o que faz a biologia e também a tradição filosófica quando definem o homem como “animal racional”. O zóon lógon ékhon de Aristóteles, entretanto, não deve ser compreendido como “[o homem] é o animal possuidor de razão, ou racional”, porque isso já parte de uma interpretação do logos como ratio – medida abstrata. Logos , uma vez que significava “colher” ou “reunir”, tem sentido essencialmente dialogal. Portanto, o zóon lógon ékhon será mais bem compreendido como “[o homem] é o vivente do diálogo”, em que o genitivo diz tanto o que o homem possui quanto aquilo de que ele é uma pertença: o homem só tem logos (linguagem) porque isto que é o homem é uma doação prévia do logos . E este – o logos – não há de ser entendido como abstrato: ele é o diálogo dispensador da dinâmica de realização das identidades e diferenças concretas.

12.Op. cit. , p. 222.

13. Usamos o verbo “perseverar” em lugar de “permanecer” – o que soaria mais usual – para evitar a noção de que algo perdura fixo, imóvel e imutável no devir da phýsis .

14.Op. cit. , ibidem .

15.Op. cit ., p. 585.

16.Op. cit ., p. 364.

17. ARISTÓTELES. De anima . Gama 8, 431, b 21.

18.Op. cit. , p. 238.

19. HERÁCLITO. Diels-Kranz, fragmento 123.

20. Op. cit. , p. 72.

21. O esquecimento da questão do ser transparece nas peripécias da linguagem como memória. De fato , a palavra grega ón foi traduzida no latim por ens , que viria a dar em português no termo “ente”. Nesta tradução , prevaleceu o caráter substantivo do ón . Entretanto , ón , em grego , não tem sentido somente substantivo , mas também verbal : ón significa “sendo”, é o particípio presente do verbo eimi , cujo infinitivo é éinai , ser. Por isso , Heidegger precisa que a indagação sobre o ser dos entes equivale às perguntas : “o que é isso , dentro e através do que algo é ‘ ente '? O que caracteriza como tal o ‘ ente ' que ‘está sendo'?” ( Heráclito: a origem do pensamento ocidental : lógica : a doutrina heraclítica do logos, p. 71). Na citada mudança de sentido transparece o cerne da tradição metafísica: a entificação do ser, a sua substantivação. O que era uma questão em aberto se transforma em uma resposta sobre a qual se edificam a metafísica e a razão ocidental – esta fundada na acepção de logos como ratio (medida), não mais como “colheita” e “diálogo”.

22. Tão abstrato e instrumental que, em nossos tempos, até se globalizou. A globalização advém da tradição filosófico-metafísica: em seu cerne, ela provém desta experiência do pensamento ocidental que, a partir da lógica, se desdobrará na era da técnica e da ciência, as quais cada vez mais se estendem por todo o globo. Portanto, não nos parece desacertado afirmar que a globalização é, de certo modo, o mundo se ocidentalizando...

23.Op. cit ., p. 219.

24.Op. cit ., p. 217.

25.Op. cit ., ibidem .

26.Op. cit. , p. 204.

27.A República , Livro VII.

28.Op. cit. , ibidem .

29.O senso mediano supõe saber o que é uma coisa. Diz-se: a coisa é o que é real, é o que existe “verdadeiramente”. E se perguntamos porque a coisa existe “verdadeiramente”, a resposta será: é porque ela é real. Essa forma de pensar é tautológica, pois apenas intercambia os termos, mas com significado idêntico, logo não explica o que é a uma coisa, o que é o real...

Ou então, diz ainda o senso comum: a coisa é o que é real, querendo com isso significar que tem “consistência material”. A concepção mais dominante de coisa é a de que ela é “matéria enformada”, uma matéria com determinada forma. Por exemplo: esta pedra de granito, que tem tal aspecto exterior (aspereza, brilho e reentrâncias) e é constituída de uma determinada matéria (granito, e não mármore). Não percebemos, entretanto, que tal maneira de determinar a coisa já parte das causas material e formal estabelecidas pela ontologia antiga. A forma que esta pedra tem e matéria de que é feita são encaradas como as causas que a levam a ser ela mesma, esta pedra de granito, não outra pedra. O que ela é, a sua essência, é entendida como o que determina que ela seja uma pedra, e não outra coisa – uma árvore por exemplo. As causas formal e material estariam, portanto, na dependência de uma outra causa mais originária: a essência da pedra, a “pedridade” da pedra. Nenhuma pedra é exatamente igual à outra, mas estariam unificadas por uma comum identidade que faria com que elas sejam pedras, e não outras coisas. Esta identidade, chamou-a Aristóteles de tó hypokéimenon (literalmente, “o que subjaz”, “o que está posto ou deitado embaixo”), traduzido para o latim por substantia .

Sucede que, se quebramos a pedra em duas, trinta ou infinitas partes, e até se a esmigalharmos, não encontraremos nenhuma substantia , no sentido de algo que subjaz à pedra sustentando-lhe a existência. A substantia é na verdade a projeção de uma identidade abstrata que congrega as diferenças concretas de cada diferente pedra. As diferenças concretas são entendidas como meros accidens (qualidades não essenciais na determinação da coisa). Assim, a própria concepção de matéria e forma na determinação do que é uma coisa está na dependência de uma prévia concepção do ser como substantia .

Entretanto, o ser não é um ente: ele é a proveniência graças à qual os entes são. Por isso, o ser é uma questão, não uma resposta substancial. Não sabemos o que é o ser de uma coisa, apenas podemos desvelar-lhe o sentido. A coisa se mostra como fenômeno, mas se oculta em seu ser, logo não sabemos o que é uma coisa, não sabemos o que é o real. Sabemos apenas que ele é ou está sendo, quando, como fenômeno, simultaneamente se mostra e se retrái.

Para uma discussão muito mais rica do que aqui poderíamos efetuar sobre esta questão, conferir o ensaio “A coisa”, de Heidegger, em que as concepções sobre o que é uma coisa, efetuadas desde a ontologia antiga até a era da ciência, são amplamente passadas em revista.

30.Op. cit. , p. 205.

31.Op. cit., ibidem .

32. Afirma Heidegger: “Ser não pode ser . Se fosse (ser) não mais permaneceria ser, mas seria um ente” ( Sobre a essência da verdade: a tese de Kant sobre o ser , p. 95).

33.Op. cit. , p. 237.

34.Op. cit. , p. 212.

35. HERÁCLITO. Diels-Kranz, fragmento 50. In Os Pensadores Originários (tradução de Emmanuel Carneiro Leão), p. 71.

36.Op. cit. , ibidem .

37.Op. cit. , p. 217.

38.Op. cit. , p. 226.

39. CASTRO, Manuel Antônio de. “Caeiro pensador”. Ensaio ainda inédito que tivemos o privilégio de ler, e ao qual devemos riquíssimos esclarecimentos sobre as relações entre o poetar-pensante de Caeiro e o pensar-poético de Heidegger.

40. SILESIUS. Viajante querubínico .

41. ROUSEAU, Emile. Ensaio sobre a origem das línguas , p. 105.

42. Interessante notar como a medicina moderna trata o fenômeno da assim chamada “somatização”. Como no subjetivismo moderno o corpo não passa de matéria, e estaria separado do “pensamento”, acredita-se que pensamentos sofridos, patológicos (de páthos , “paixão”), irracionais, “desceriam” da mente para o corpo, expondo suas marcas. O termo “somatização” quase sempre é usado para designar manifestações nosológicas, pois não se ouve falar que alguém somatizou uma enorme felicidade...

Entretanto, haverá algo mais revelador da totalidade que são corpo e pensamento concreto do que todos os “sinais” que uma pessoa emite, em qualquer circunstância – acordada ou dormindo, parada ou andando, calada ou falando, ou simplesmente sendo? Tais “sinais” ( sema ) se fazem ver no corpo ( soma ), e são a manifestação visível da “dança” e da “música” da existência como sentir que é pensar corporificante. Por isso chega a dizer Álvaro de Campos: “Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça!” (PESSOA. Obra Poética , p. 380). O poeta sabe que o pensamento não está na “psique” ou na mente, separado do corpo, mas é desde sempre já corpo, coração, paixão e sentimento. O que chamamos de corpo, em todas as suas movimentações e “sinais”, é a visibilidade que se mostra daquilo que veladamente já somos e estamos sendo, isto é, o nosso ser. Felicidade e tristeza só se tornam visíveis no corpo – sejam como júbilo, êxtase, tédio, angústia, medo, feridas etc. – porque o pensamento nunca esteve nem jamais está separado do corpo. Por isso mesmo, o que a medicina chama de “somatização” não provém da fissura do pensamento racional que subitamente deixou as paixões “invadirem” o corpo, nem se restringe a manifestações de ordem nosológica. A “somatização” é processo constante, que nos manifesta por inteiro: ela é pensamento concreto e corporificante em que está em jogo o desvelar e o desvelo da totalidade do que somos, o sentido geral dos nossos percursos de realização.

43. VIANNA. Excertos do poema “Oratório do Corpo” in Marinheiro no Tempo , p. 236.

44. HERÁCLITO. Diels-Kranz, fragmento 60. In Os Pensadores Originários (Tradução de Emmanuel Carneiro Leão), p. 75.

45.Op. cit. , p. 162.

46.Op. cit. , p. 204.

 

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