A ESPERANÇA EM SEU DEVIDO LUGAR

(um bocado em Jó, um bocado de Jó)

 

As coisas que não são nada são algo quando se as padece.

María Zambrano

 

Simone Weil afirma que o livro de Jó é de princípio ao fim, uma pura maravilha de verdade e autenticidade. A respeito da desdita, tudo o que se distancia desse modelo está manchado, em maior ou menor grau, de mentira (1995, p.63). E Kafka, tão influenciado por aquele livro, afirmou: todos os defeitos humanos são impaciência, uma prematura interrupção do metódico, um aparente rodear com uma cerca a coisa aparente (...) Existe dois pecados humanos capitais, dos que se derivam todos os outros: a impaciência e a preguiça. Pela impaciência os homens foram expulsos do Paraíso, pela preguiça não retornam a ele. Mas talvez haja só um pecado capital: a impaciência. Foram expulsos por causa de sua impaciência e não retornam por causa dela (2005, pp.39-40).

Aproximemos um pouco mais as palavras chaves supracitadas: desdita e impaciência. Segundo Leopardi a capacidade de prever os males (que nos animais não existe), as paixões, a insatisfação com o presente, a impossibilidade de saciar nossos desejos e todas as outras causas de infelicidade, faz de nós seres inevitável e essencialmente desditados, porque está inscrito em nossa natureza e é impossível de cambiar (2000, p.48). Assim para Leopardi a desdita do homem é análoga ao intervalo entre dois algarismos: a possibilidade de formulação de números entre 0 e 1 é infinita, mas limitada, assim a vida do homem parece um sem fim limitado. Mas tudo se complexifica porque o homem aprendeu a antecipar a sua morte (compreendida como limite) e a encheu de possibilidades, desse modo, sofre com um ainda não que o ronda, como um fantasma. O fantasma da morte é um daqueles que o homem tem que aprender a dar conta e na crença de que não tenha nada além dela, a morte vai se tornando pouco a pouco o limite e o fim do homem. Assim, ao cessar materialmente a vida passou a processar o espírito do homem, instalando uma confusão que santo Agostinho descreve da seguinte maneira: Desejas que ilumine o novo dia para que te avizinhe aonde não queres chegar! Dais aos amigos uma festa e, ao felicitar-te, os ouvem dizer: “Que tenhas muitos anos!” e tu os deseja também. Queres, pois, que venham muitos e muitos anos e não queres que chegue o último. Tuas vontades são opostas: queres andar e não queres chegar (1952, p.501).

Dito de uma outra forma: a morte é o que supostamente o homem não quer, mas é a ela que ele não se cansa de fazer referência. Em função disso Agostinho complementará: Os dias não são duradouros. Como pretendes ser com eles? Assim que não reprimo vosso desejo de alcançar a vida e os dias bons, antes lhe inflamo com todas as minhas forças. Buscai em boa hora a vida, buscai os dias bons, porém que sejam buscados onde podem ser encontrados (idem, p.503).

A fugacidade da vida é um sentimento que tem acompanhado o homem concomitantemente à afirmação do tempo. O que queremos dizer é que a vida não depende do tempo. Inicialmente com a vida somos postos num espaço, um meio ambiente que pode ser percebido através dos sentidos. Não temos necessariamente a sensibilidade do tempo, ao contrário, vamos percebendo modificações em nossa forma de apreender o nosso entorno. A fugacidade da vida, sentida mais ou menos intensamente, depende da referência concebida para a mesma. Os espaços não se modificam com tanta rapidez, pois para serem humanizados necessitam de esforço. Diferentemente, o tempo (sugere-se) não cessa, independe da interferência humana. Ninguém nega que ao nascermos rompemos o espaço. No relato da criação tratava-se de um lugar oferecido ao homem, mesmo na poesia épica é a capacidade e a habilidade para deslocar-se que se confunde com a vitalidade. É de um lugar que se trata quando se faz referência à terra prometida ou à ilha das bem-aventuranças. Fundar um lugar, contorná-lo de humano para proteger-se do inumano que toma a forma de tudo o que pode usurpar um lugar construído e constituído para se viver. Na mitologia grega Urano e Gaia são anteriores à Cronos e, o Deus dos hebreus não tinha nome, mas de qualquer maneira foi sentido como dos Céus, como Libertador, como o que É, muito antes de ser denominado Eterno.

Mas quando enfim o tempo foi tomando forma surgiu como devorador na Grécia, como fio que pode ser cortado por uma das Moiras etc. A luta contra o inumano no espaço não pôde mais ser comparada com a luta contra o tempo: o sofrimento (ou trabalho, ou jornada) no espaço alentava e alenta porque este não só pode ser cambiado (tomar a forma de um produto humano), mas também por permitir ao homem a percepção do espaço interferido: ao ferir minimamente o espaço o homem tem a impressão de que é capaz de feri-lo inteiramente, como uma flecha lançada no calcanhar do herói foi capaz de cessar sua carreira, ou como a pequena pedra que saída das mãos de Davi fez gigante tombar. Ou seja, o homem tem uma ilusão de domínio do espaço e quando se depara com um ambiente refratário, tenta usar o tempo a seu favor alegando que com o tempo aquele ambiente poderá ser dominado.

Não é assim com o tempo, a luta é incessante e interiorizada, não se sabe exatamente com quem se luta – o sem freio do tempo é a sua mascarada. Uma prescrição: é uma luta sem fim, mas limitada. É possível descansar do espaço nele, mas isso não se dá com o tempo no tempo, já que o tempo não descansa e, por conseguinte, não permite o descanso nele. Dele não existe descanso só evasão, de qualquer maneira será tempo perdido. A percepção espacial da vida criou a esperança de protegê-la, mas não necessariamente de eternizá-la; em contrapartida, a analogia da vida com o tempo desesperou e desespera o homem, pois ele sente a cada badalada a vida esvair-se até esvaziar-se.

A tragédia grega tem o tempo e seu fluir cortante como tema. Na Sagrada Escritura isto será enfocado nos livros sapienciais, particularmente, no livro do Eclesiastes e no de Jó. Contudo, este livro dá algumas pistas de como a paciência pode ser resposta à desdita e de que como a dor extrema ao suspender o tempo repõe a esperança no seu devido lugar – pois por incrível que possa parecer desvincula-a do tempo. Mas, esta não é uma variação simples porque nossa cultura nos brindou com jubilosas e penetrantes descrições que vinculavam diretamente a esperança com uma concepção de tempo tripartido em passado, presente e futuro onde aquela começa incidindo sobre este até esbarrar no passado (como numa dessas esteiras de academia moderna em que o atleta caminha sem sair do lugar como se estivesse indo para frente, mas se se distrai é carregado para trás) intensificando o desespero no coração de todo aquele que olhando retroativamente via o viço se perder com a passagem do tempo e a esperança transfigurar-se em nostalgia: o infortúnio é múltiplo. A infelicidade, sobre a terra, multiforme. Dominando, como o arco-íris, o amplo horizonte, seus matizes são tão variados como os desse arco e, também, nítidos, embora intimamente unidos entre si [...] Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as agonias que são têm a sua origem nos êxtases que poderiam ter sido . (1981, p.55) .

Angústia e lembrança, agonia e o poderia ter sido : este é só um exemplo de que na modernidade a luta contra o tempo no tempo intensificou-se, bem como, as tentativas de evasão. Neste caso é a nostalgia de um lugar perdido, mas sua retrospectiva se dá através de um ouvir dizer. Mas também ocorre o olhar prospectivo que busca no horizonte (a distância entre dois marcos) a dissolução da infelicidade, mas que se depara com o terroso da própria dissolução já que dissolver a infelicidade, nestes termos, é dissolver a vida. O passado guarda uma imagem qualquer de felicidade, diferentemente, o futuro guarda a morte: duplamente desditado por ter perdido algo e por estar prestes de se perder completamente, a vida vai se constituindo em perdição.

Façamos uma pequena variação e retiremos a morte como ponto futuro considerando que ela já não participa do tempo: numa vela que o vento sopra e a chama parece girar para manter-se, enquanto ‘gira' mantém-se, quando se apaga já não vela. Assim, se se considera que a vida tangencia a morte, a morte já não fará parte da vida e desse modo já não poderão ser comparadas. As pontes que os homens construíram para aproximar espaços foram pouco a pouco sendo utilizados como símbolo para ligar o tempo com (pois não se pode falar de tempo de vida e de morte, pois mesmo quando se menciona a vida após a morte não está comunicando que essa vida seja num outro tempo e, se denominada de eterna tampouco é ligação entre tempos, pois que o eterno não é temporal). Aqui não se trata de negar o temor da morte e tampouco de despreocupação com o “fim da carreira”, mas sim o de sinalizar que a morte não pode ser enfrentada, pois diante dela o homem petrifica-se como os mirantes de Medusa, ou encanta-se como os ouvintes das sereias: Cessemos de especular. Toda questão estribará, durante um momento, em saber se a morte põe efetivamente o ponto final em tudo. Mas , e se nosso coração não está formado senão pela resposta que não é dada? (1986, p.53). Personifica-se a morte na tentativa de arrefecer o impacto dela, empresta-se um rosto à morte no intuito de, ao materializá-la, poder feri-la, mas a nossa foice parece que não está nunca suficientemente afiada: o foi-se da morte é sempre mais cortante. De qualquer maneira, o homem insufla vida à morte trazendo-a para perto dele, saca-a do retiro que ela estava, puxa-a para o lado de cá da margem e todo esse movimento confirma que ela não é um fim já que agora está posta a um passo, que nunca será dado, depois do fim da vida: a morte é a vida posta fora, fora do alcance imediato da luz e do som. Se a morte estiver fora do alcance da vida e se só existir esperança enquanto se vive, a morte não será capaz de minar a esperança, por conseguinte, ela também não é o que provoca o desespero. É na vida que o homem desespera e por ela. E assim enquanto há vida, há esperança e desespero.

O homem teme o seu lugar e não o tempo, pois é num lugar que ele retirava sua esperança como sua desdita. Seu lugar tem seu contorno. Quando se lhe retira o que ele se afeiçoa, ele sofre. Quando perde de vista o que um dia ele avistou, ele sofre, pois vida se confunde com as coisas que ele agrega. De igual maneira quando segregado não pode agregar, criar seu entorno, quando a vida lhe contorce e o decompõe antes mesmo do passo que não poderá ser dado então desolado ao se perder da vida não sabe mais o que pode esperar (só não pode ser a morte, pois ninguém espera o que não pode encontrar). De qualquer maneira, sua espera tem a ver mais com um lugar do que com o passado e o futuro, numa insistente tentativa de recuperar-se no presente, pois é no presente que ele padece. Sonhar com um futuro é insuficiente, pois este sonho pode estar tão distante da realidade quanto a vida está da morte. Lembrar de um lugar que já foi perdido é tão consolador quanto alguém que pergunta a outro como ele deixou cair no chão o único copo com água que eles tinham para matar a sede. É o presente que se quer recuperar, é o presente que se quer de presente, mas para isso deverá antes de tudo ter paciência, como nos esclarece Luis de Leon: esperança , de quem nasce a paciência, que não é outra coisa senão uma larga esperança ( 2005, p.90).

Repitamos, não é a morte que intensifica o desespero, mas a vida que suscitada ou pressentida como fluir incessante, como tempo, faz nascer um canto como o de Leopardi: La speme che rinasce in cul giorno. Dolor mi preme del passato e noia del presente, e terror de l'havvenire (2000, p.297). Ou como o de Jó: Perdi la esperanza, no viviré más (2005, p.155). Mas, como árvore que mesmo seca pode se recuperar se toca o chão úmido, o sofredor não perde a esperança quando banhado pela água da vida, pois assim não se acabará - para a Escritura esperança é não acabar-se de todo (idem, p.255). Contudo, se a esperança confundir-se com o futuro, como já dissemos, estará mal posta e se converterá em desesperação, pois em verdade só aumentará as expectativas e a possibilidade de fanatismo e como afirma Lessing o fanático obtém freqüentemente justas visões do futuro, porém é incapaz de esperar esse futuro (1990, p.643).

O tempo é levado em consideração, mas não deve ser a referência, porque a urgência dele agita e precipita. A esperança e o lugar, o lugar da esperança é todo aquele em que ela está e todo aquele que ela deve ocupar para acrescentar e assentar um sentido para a vida. Que seja oferecida luz ao desditado para que gravidade se converta em gravidez: a única força capaz de vencer a gravidade é a energia solar. É esta energia, que desceu sobre a terra e foi assimilada pelas plantas, a que permite a estas crescer verticalmente de baixo para cima. (...) Não podemos buscar esta energia solar, devemos limitar-nos a recebê-la. (...) Ela é a imagem da graça, que descende enterrando-se nas trevas de nossas almas más e constitui a única fonte de energia que contra resta a gravidade moral, a tendência ao mal. O trabalho do agricultor não consiste em ir buscar a energia solar, nem sequer em captar-la, senão em dispor tudo de modo que as plantas a recebam nas melhores condições possíveis para assimilar-la e nos transmitir. (...) Da mesma forma, não podemos fazer mais esforço pelo bem que dispor nossas almas para receber a graça; e a energia necessária para esse esforço nos é proporcionada pela própria graça . (1995, p.26.).

Desvincular a esperança do tempo, desconfiar de toda promessa que lance para frente o objeto como se ele pudesse um dia ser alcançado. A decepção será tão constante como o fluxo do tempo e desse modo o ‘esperançoso' se ferirá com o próprio projétil que lançou adiante que logo estará diante, para ser um ante, para enfim se o projétil não lhe atingir o peito, se constituir em lembrança, e nesse ‘novo' momento ele dirá: “olha meus sonhos ante riores”. E renegará a vida por tê-la confundido com o tempo. O extremo da esperança referida ao lugar seria a utopia, mas ela não se realiza e isso já está previsto. Os utópicos sabem da impossibilidade desde o início de se construir pontes entre um lugar e um não lugar. Contudo, a esperança não é nem ilusão, nem impossibilidade. O que impera nesta espera é operar. A irrefreável decisão de que algo pode ser feito para enfraquecer a desdita alheia pelos mais diversos meios, vias, pontes e dutos dentre os quais, a palavra: uma palavra arbórea promissora de sombra (1997, p.13).

 

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