ÚTERO E COVA, MÃE E AMANTE. LEITURA DE “O VIÚVO”.

 

Evelyn Blaut Fernandes

 

Para o Renato.

 

Não vê a Morte

Como um ponto final:

Antes como dois pontos.

Talvez precedidos de reticências.

David Mourão-Ferreira. Jogo de Espelhos , CIX .

 

 

Além de professor universitário, cronista, ensaísta e tradutor , o também poeta, contista e romancista David Mourão-Ferreira (1927-1996) teceu uma obra que elege o amor como temática maior. Raramente felizes, às vezes trágicos e quase sempre solitários, o amor humano engloba, necessariamente, a paixão e a morte: “todo amor”, diz Octavio Paz, “incluindo o mais feliz, é trágico” (1994, p.101). Esta sentença talvez combine melhor com o romance Um Amor Feliz , mas assim também o é na coletânea Os Amantes e outros contos , reunião de novelas escritas de 1962 a 1974, da qual faz parte “O Viúvo”.

Esta novela narra o percurso de um advogado, de Lisboa, homem de meia-idade que retorna ao mesmo hotel onde havia estado há quase vinte anos. No presente da enunciação, Adriano chega a este hotel que fica à beira-mar, a um 23 de dezembro, onde pretende passar a véspera de Natal. Lugar ermo, de frente para a praia, há apenas o hotel no qual se hospeda, algumas poucas habitações e a casa dos Bandeira , o que destaca, sobretudo, um certo clima de estranheza marcado pelo despovoamento, pela paisagem lúgubre e apocalíptica. Na casa dos Bandeira, reside Rita, amiga da juventude, que será sua companhia para a noite de Natal.

Uma das grandes questões dessa narrativa trata-se, talvez, da trajetória de aprendizagem. Adriano é aquele que precisa descobrir seu luto. Depois de ter perdido a amante – e, por isso, se considerar viúvo –, este personagem precisa verbalizar a dor da ausência e só o faz um ano após a morte de Paula. Para além da ausência presente da mulher amada , Adriano vive um eterno encontro-desencontro com Rita, amiga d a juventude. Eles hão de se reencontrar, mas ainda não é o momento de haver um encontro amoroso entre eles, e é ela, figura lúcida, quem o faz perceber isso.

A morte é, possivelmente, a grande temática deste conto. Viúvo é aquele cuja cônjuge está morta, é aquele que sofre a morte da mulher amada. Um dos estranhamentos causados pela narrativa é patente, uma vez que a esposa de Adriano, Elsa, não está morta, mas sua amante, Paula. José Martins Garcia analisa:

Adriano (...) só ganhará estado civil à custa duma mentira: viúvo – é assim que se apresenta no registo do hotel e, graças a essa falsidade, declara a verdade correspondente ao seu estado de espírito. Onde está a verdade ? No cartão de identidade ? No sentimento de solidão ? ( 1980 , p. 180).

 

O viúvo é, pois, na narrativa de David Mourão-Ferreira, acima de tudo, aquele que sofre o vazio, a ausência do ser amado. Roland Barthes, no seu primoroso livro Fragmentos de um discurso amoroso , escreve:

Só existe ausência do outro: é o outro que parte, sou eu quem fica. O outro está em estado de perpétua partida, de viagem; é, por vocação, migrador, fugidio; eu sou, eu que amo, por vocação inversa, sedentário, imóvel, à disposição, à espera, plantado no lugar, em sofrimento...( 2003, p.35)

David Mourão-Ferreira opera um duplo movimento que vai na contra-mão de uma tradição literária, na qual os viajantes são sempre figuras masculinas. Em primeiro lugar, porque, em “O Viúvo”, quem parte é a mulher. As mulheres são, na obra do escritor do século XX, figuras de importância primordial, que tomam parte ativa na vida e na morte, porque, para o poeta, “o amor é invariavelmente um compromisso lúcido entre dois seres” (Malheiro, 1980, p. 62), no qual a palavra máxima de ordem é cumplicidade. A mulher nunca é, lembra Vasco da Graça Moura, “um objecto, seduzido ou alienado em arroubo passional” ( 1978 , p. 13), mas lucidamente ativa, sedutora por excelência. Aliás, são todos, na narrativa, seres migradores, não existe Penélope no conto de David Mourão-Ferreira. T ambém Rita é ser viajante. A casa dos Bandeira é um lugar de veraneio, para onde Rita vai para passar a noite de Natal com a mãe, e com Adriano. Em segundo lugar, porque Adriano também é agente do verbo ir , mas numa outra dimensão: se a partida de Paula é irremediável, Adriano é o ser transitório por excelência. Ele parte não por ser caçador, mas porque perdeu a sua casa. Desabrigado, o que Adriano deseja é, talvez, o regresso ao útero, à casa original.

A viagem na qual Adriano embarca pode ser um percurso em busca do outro – “vim até aqui ... à procura do único ser vivo que conheço” – e , também, de si: esta é uma trajetória de aprendizado , um lento aprendizado de convivência consigo e com a ilusão da eternidade . Partindo de Lisboa, ele passa a vislumbrar uma paisagem em que a praia – lugar entre terra e mar – domina a cena; e mora em um hotel, lugar também transitório por excelência, ou antes, abrigo temporário. E é neste ambiente que Adriano poderá relembrar seu passado e entender que a reconquista de sua casa perdida não será mais possível.

A casa, conforme Gaston Bachelard, é o “nosso canto do mundo”; a casa abriga, protege, agasalha, é o refúgio do homem, é o lugar de bem-estar por excelência. Casa é lugar de permanência, de ficar, de ser. No entanto, Adriano é abrigado, na narrativa, em um hotel, morada que se aproxima de um porto ou de um barco – “Era como se houvesse passado a noite no bojo de um navio” (Mourão-Ferreira, 1974, p. 32-33) , lugar de passagem, abrigo de viajante para quem tem o céu como te lhado . Outro momento de transição da narrativa remete ao crepúsculo: transição do dia para a noite: noite – filha da Morte, que permite a reflexão e a nostalgia:

E há um ano ? Precisamente há um ano, mas um pouco mais tarde (já então as rasgadas janelas do bar do hotel se afogueavam, por entre a chuva do crepúsculo, com o revérbero das luzes de Lisboa...), há um ano, precisamente há um ano, tudo teria sido porventura diferente – se houvesse chegado a murmurar , a sussurrar, a arremessar, de qualquer modo, o nome de Paula. ( Ibidem , p. 40)

Crepúsculo vislumbrado por um homem que vive o entardecer da vida, Adriano é o ser transitório por excelência: homem de meia-idade – entre a juventude e a velhice, portanto –, saído de uma Lisboa inóspita, parte para esta paisagem em que se habita em hotel ou em navio que fica numa praia, apresenta-se como viúvo, não da esposa, mas da amante, e debate-se entre Eros e Thanatos. Um futuro não revelado na narrativa é projetado a todo momento a partir da conjunção entre desejo e necessidade: desejo de possuir o que deixou de possuir e necessidade de compreender que a perda é irreparável.

A surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos. (...) Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos. (...) Você viaja para reviver seu passado ? Você viaja para reencontrar seu futuro ? (...) Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá”. (Calvino, 1990, p. 28-29)

 

Não terá Paula, porque “ela morreu há quase um ano, num desastre de automóvel” (1974, p. 46) , diz Adriano que, em algum momento de lucidez, reconhecerá que “imagens de vários passados [...] já não voltam de maneira nenhuma”. Adriano não é apenas um homem que perdeu a mulher, mas é sobretudo órfão, aos olhos de Rita. Em verdade, a relação mãe-amante, que permeia o livro e que tem a sua representação em “O Viúvo” através da fala desta personagem, apresenta-se, pois, como uma relação de complementaridade e ambigüidade: pela voz de Rita, anuncia-se que Adriano “te[m] muito mais o aspecto de um órfão”.

“Os desejos agora são recordações”, diz-nos Italo Calvino no bonito livro As Cidades Invisíveis . Se o desejo é falta, presença da ausência, a memória é a presença de uma ausência eleita, presente em pensamento e em objeto de desejo no fetichismo. Neste sentido, o par de luvas dado por Paula a Adriano pode representar , no conto, objeto de fetiche e a presença da amante morta. Talvez, por isso, um pequeno presente se chame lembrança, para que o outro evoque pelo objeto um eco da presença daquele que se foi. Talvez, por isso, alguns corações disparam “quando tem o seu cheiro dentro de um livro” [1], quando mergulham uma madel e ine numa chávena de chá, ou quando calçam e descalçam, incessantemente, as luvas que a Paula lhe dera.

Por obra de um devaneio ou de um ideal, o desejo de se unir ao outro se funde ao desejo de estar no outro. Deste modo, numa aliteração, as luvas estão aparelhadas às palavras “viúvo” e “vulva”, gerando um eco cíclico. Assim, a relação mãe-amante, neste conto, adquire uma forma concreta por meio das luvas: é através dessa peça que o desejo de estar com o outro se funde ao devaneio de estar no outro, podendo, neste sentido, ser uma representação metonímica do corpo da mulher amada. Se as luvas são o que Paula deixou de herança, são elas que permitem uma continuidade, unindo o estar ao lado das luvas ao estar dentro delas: no abraço das mãos e na penetração na luva. Desta forma, ao lado dela – da luva que representa Paula –, Adriano seria amante e viúvo, e dentro dela, filho e também morto.

Assim, Paula seria mãe e amante numa relação não visceral – claro está –, mas metafórica. Se a mãe é aquela que dá a vida, e a amante é quem oferece “ la petite mort”, é, portanto, no momento do amor, que vida e morte unem-se e sucedem-se com os corpos amantes. Para dizer com Freud, o retorno uterino – o útero materno, o primeiro alojamento [2]; para dizer com Bataille, a continuidade dos corpos –

Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Não aceitamos muito bem a idéia que nos relaciona a uma dualidade de acaso, à individualidade perecível que somos. Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duração desse perecimento, temos a obsessão de uma continuidade primeira que nos une geralmente ao ser. ( 1987 , p. 15)

 

“O Viúvo” é, pois, um texto que manipula a confluência de Eros e Thanatos, da angustiante consciência que é preciso adquirir de que somos seres mortais, de que carregamos em nós a morte, que somos seres descontínuos, e que a continuidade é possível se houver união com o outro. Até porque, diz Edgar Morin, o amor entre homem e mulher é um prolongamento da união do bebê com sua mãe:

O mamífero nasce na separação, mas, em seus primeiros tempos, vive numa união quente com a mãe. A união na separação ou a separação na união é justamente o que vai caracterizar o amor, não mais entre mãe e progenitura, mas entre homem e mulher. A relação afetiva, intensa, infantil com a mãe vai se metamorfosear, se prolongar, se estender entre os primatas e os humanos. ( 2002 , p. 19)

 

Octavio Paz vê na mulher “a fonte perene, a vulva abissal, a montanha mãe, nosso começo e nosso fim” ( 1994 , p.32), e afirma mais adiante: “a morte é a mãe universal” ( ibidem , p. 130), o que é outra forma de dizer o retorno uterino de Freud, a continuidade dos corpos de Bataille ou a correspondência entre nascimento, amor e morte de David Mourão-Ferreira. Assim, em “O Viúvo”, a luva é “vulva abissal”, útero e templo, mas é também cova, lugar de encontro com a morte ou com a morta. As luvas são o que Paula deixou como herança.

A mulher parece ser, portanto, na obra de David Mourão-Ferreira, a que reúne em si Eros e Thanatos. É ela que, ambígua e ambivalente, conflui princípios opostos e indissociáveis, porque é através dela que se percebe que o tempo é efêmero, mas que o amor pode ser eterno: amar é também morrer para renascer através da mulher amada.

Em A Poética do Espaço , Gaston Bachelard, por meio de um discurso poético-filosófico, desenvolve um bonito texto sobre a casa como abrigo. E ntretanto, também é possível aludir à função primeira da casa que é a tentativa de imitar ou de substituir o aconchego materno antes do nascimento. O útero, acolhimento desejável, não é prisão perpétua, mas refúgio, abrigo que só a mulher pode oferecer .

Se há um ciclo na narrativa de David Mourão-Ferreira, ele se apresenta concretizado imageticamente nas luvas. Adriano passou toda a narrativa calçando-as e descalçando-as incessantemente e, ao fim do conto, Rita perceberá: “são essas as luvas que a Paula te ofereceu. Vê-se bem pelo modo como lhes pegaste...” (1974, p. 64). A luva, peça do vestuário que se adapta ao formato da mão e dos dedos, é utilizada contra o frio, e também como proteção. Parece que acaba sendo isso: Adriano é alguém desamparado, desprotegido e metafisicamente impotente. As luvas equivalem, neste texto, à representação metonímica de Paula em amante e mãe. Unir-se sexualmente ao outro remete à amante; estar dentro do outro refere-se à mãe. Esta imagem alude diretamente ao calçar (penetrar, morrer) e descalçar (sair, nascer) as luvas que operam também como abrigo definitivo do fim (cova) ou do recomeço (útero). Desta forma, a memória de Paula é tornada objeto e é através deste objeto que a sua ausência se faz presente, o que indica, sobretudo, um ciclo entre morte e vida.

A mulher é o fim do homem”, disse Novalis. Para David Mourão-Ferreira, ela será também casa e templo, vida e morte, mãe e amante. Se para Camões, o amor é a união dos contrários inseparáveis, e para Vinicius de Moraes, chama-se eterno o que é temporal, para David Mourão-Ferreira, “o amor é uma das repostas que o homem inventou para olhar de frente a morte” ( Paz, 1994, p.117).

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

 

•  BACHELARD, Gaston. A poética do espaço . São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

•  BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso . São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

•  ­BATAILLE, Georges. O erotismo . Porto Alegre: L&PM, 1987.

•  CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis . São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

•  FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização . Rio de Janeiro: Imago, 1997.

 

•  GARCIA, José Martins. David Mourão-Ferreira: a obra e o homem . Lisboa: Arcádia. 1980.

 

•  KEHL, Maria Rita. “O desejo da realidade”. In: NOVAES, Adauto (Org.). Desejo . São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

•  MALHEIRO, Helena. David Mourão-Ferreira ou ‘a secreta viagem' . Lisboa: Oficina do Livro, 2001.

 

•  ______ . ‘Os Amantes' ou a arte da novela em David Mourão-Ferreira. Lisboa : IN-CM , 1980.

 

•  MORIN, Edgar. Amor, Poesia, Sabedoria . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

•  MOURA, Vasco Graça. David Mourão-Ferreira ou a mestria de Eros . Lisboa: Brasília, 1978.

 

•  MOURÃO-FERREIRA, David. Jogo de espelhos . Lisboa: Editorial Presença, 2001.

•  ______. Obra Poética 1948-1988 . Lisboa: Editorial Presença, 2001, 4ª edição.

•  ­­­______. Os Amantes e outros contos . Lisboa: Livraria Bertrand, 1974.

•  ______. Um amor feliz . Lisboa: Editorial Presença, 2002, 15ª edição.

•  PAZ, Octavio. A dupla chama. Amor e Erotismo . São Paulo: Siciliano, 1994.

1. 

Vambora , Adriana Calcanhoto .

2.A passagem referida na íntegra é a seguinte: “A escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa para moradia constitui um substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade” (FREUD, 1997, p. 110-111).

 

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