dizer o ateliê
sebastião edson macedo *
dizer a experiência do ateliê de escrita não é tarefa incólume. esgotadas tentativas anteriores deram esgares de textos tão inúteis quanto se espera do risco com as apostas na criação literária. seja como for, essa tendência inicial do discurso sobre o ateliê já aciona no texto aquilo mesmo que se indicia como uma situação vária, interior ao processo da escrita, qual digo: da impossibilidade de se escrever sem uma exposição à própria escrita, por um lado, e por outro, da necessidade de um limite de risco a se correr com isto que se escreve.
tanto, porque a rotina de produção de textos, acontecendo mediante uma prescrição (que propõe o vôo autoral) e uma restrição (que limita o céu da escrita), instiga a consciência do trabalho condicionado, dentro do qual a autonomia e intenção individual precisam vislumbrar, durante o processo criativo, realizações que negociem com o descolamento da subjetividade, na medida em que partem desta para o horizonte do texto. quer isso dizer que o ateliê está procurando um pezinho para a re-problematizar, mais do que o papel do autor como categoria literária, o caráter de forjamento de que a subjetividade é passível. é assim que um sobrevôo por diferentes exercícios de estilo, antes de rarefazer em muito a unidade autoral ao denunciar a pluralidade de territórios discursivos, põe em ângulo crônico a arbitrariedade das marcas de enunciação veiculadas pelo texto em favor de uma resposta a dada proposição de escrita. direta ou diretamente, esse trânsito entre o que o autor pode escrever para aquilo que ele escreve acaba por resultar fundamental para o ateliê vivenciar os acomodamentos e as contaminações da subjetividade, pois é no trato com o que se realiza efetivamente, e sempre então no durante passando a posteriori, que se assume essa consciência do aparelho acionado pelo texto, na escrita, e na leitura idem, embora não seja esse o caso em que se detém.
se a exposição inevitável a essas primeiras questões cultiva, infelizmente discreta e tanto melhor paradoxalmente, uma des-domesticação da própria subjetividade, o contínuo do trabalho remonta a uma possibilidade de elipse do processo de referenciação, que fora a metalinguagem permite um sobrepor-se dos diferentes momentos de tentativa de escrita, como se houvesse uma permanente atualização dessa consciência do texto, refletindo-se na retomada de prescrições e restrições anteriores. de fato, o eco dos processos de criação se estendem, das propostas tardias de trabalho, sobre as vigentes, flagrando dobradiças que articulam verdadeiras placas de projeção teóricas, que posso entender como pelo menos duas: a ficção da origem do texto, ou a escrita como re-escritura; e a ficção da utilidade do texto, ou o limite como des-limite.
e entro então em considerações sobre a restrição aplicada à produção dos textos durante o ateliê. sendo ela uma fronteira que circunscreve as arbitrariedades construídas no autor, o processo criativo que já pode estar se vendo é chamado a fazer escolhas e assumir a perda de alguns horizontes, agora por conta própria. não se trata mais de acomodamentos entre querer e poder, através de um perfil enunciador forjado por sugestão prescritiva. trata-se, substancialmente, de o que dizer com esse perfil dentro de uma circunferência tão abstrata quanto absurda. e as realizações de texto, para respirarem melhor uma hipótese de liberdade talvez, situam sua escrita muito perto da linha instável de vigília desse limite, percorrendo-a não sem cochilar, os discursos possíveis das máscaras selecionadas. mais importante que isso, porém, é como as flutuações de entendimento e assunção desse limite denotam o grau de elasticidade na malha de intenções autorias, malha que a rigor é nada mais do que a liberdade tomada para si mesmo diante de uma regra.
qualquer forma, é a restrição, atuando a partir e dentro da prescrição, o que vai permitir, no processo de desdobramento das estratégias de escrita, outra consciência: de que é necessário que haja um limite para os horizontes do texto, uma vez que a falta dele tanto projeta no infinito prático e conceitual o acabamento do trabalho proposto, quanto desfaz a tenção entre sua utilidade e inutilidade, tendendo para qualquer pólo radicalizado de leitura, em que o útil perfeito não tem qualquer valor prático sociologicamente considerado, e o inútil completo nem sequer tem a função artística de apostar no próprio inútil.
é quase inacreditável que uma experiência aparentemente ingênua de produção de textos revolva conteúdos teóricos tantos e outros que aqui me poupo de desenvolver e listar criteriosamente. da mesma forma, é completamente ingênuo escrever que somente retomando-os é possível pensar nesta escrita sobre o ateliê. entretanto, retomo-os como o fiz no início: pela reversibilidade da consciência que me advém de todo o trabalho, afinal estou a escrever tanto um texto teórico quanto um texto de fala sobre falar o texto; e retomo-o pela necessidade de dar um fim a ele, que surge de uma proposta de testemunho crítico mas curiosamente sem qualquer restrição, livre e em prazo alargado, cujos horizontes se perdiam de vista. em vista disso, todas as tentativas de registro subjetivo não avançavam o suficiente para tocar os contornos dessa sugestão de escrita, já que esse contorno simplesmente não existia. foi preciso esgarçar uma prosa convulsa crente que havia nela considerações úteis ao debate do ateliê, quando na verdade só havia cochilos longe da linha teórica que havia decidido fazer constar. por um lado, retomo aqui, portanto, o pequeno legado particular dessa experiência, o que dá na boa memória de suas tensões, e por outro, sempre outro, o grande lado dessa tentativa de memória, que veio antes destas considerações porque era preciso arriscar todas as fichas numa inaudita escuta, e só depois poder dizer o ateliê, de uma hipóetese de incólume mão, o que também se dá através dos vãos de uma prosa gozosa, útil porque inútil, vaga, muda, talvez oracular.
23 de novembro de 2005
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