SOBRE O FILME RUSSO O RETORNO, DE ANDREI
ZVYAGINTSEV
Ricardo Pinto de Souza
e a
máquina
do
mundo,
repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto
eu,
avaliando o
que
perdera,
seguia
vagaroso,
de
mãos
pensas.
Drummond, A
máquina
do mundo
Das muitas
formas de
amor a
que
me parece
mais
impressionante é aquela
que surge
por uma
obra de
arte.
Não permite o
gozo,
senão de uma
maneira
torta,
incompleta e
abstrata, e se na
vida
cotidiana os
alvos de
nosso
afeto
já
são
por
si uma
ausência
mascarada de
pessoas, o
objeto
estético é
ainda
mais
fugidio.
Não
conta
com
pele,
orifícios
ou
apêndices,
logo,
não é
palpável,
não pode
produzir aquelas
formas
mais distintas de
prazer
ou
dor.
Talvez dirão
que a
memória e a
fantasia
são
similares,
impalpáveis da
mesma
maneira,
mas estas
sempre se apóiam
em
nossa
vivência
concreta: lembramos
amorosamente de
pessoas
ou
coisas
que tocamos e retivemos
em
nossos
braços,
ou ao
menos
que desejamos
intensamente
que estivessem
conosco. É
diferente
com a
obra de
arte,
que constrói
sua
sedução mediada
por uma
distância
fundamental, incontornável e
frustrante ao
contrário da
distância
entre as
pessoas
que,
embora seja
também
irremissível, permite uma
ilusão de
proximidade.
Penso,
por
exemplo,
que
nunca conheci uma
mulher
como Diadorim,
mas
não
consigo
evitar uma
melancolia
difusa
toda
vez
que leio
Grande
Sertão,
um
sentimento
bastante
análogo a uma
paixão mal-curada. Da
mesma
forma, das
dores
que presenciei
ou sofri a
imagem da Pietà está
bastante
presente,
embora perceba
imediatamente a
estranheza de se
confranger
como
em
convívio
pela
figura de
um
cartão.
São raras essas
concessões da
vida
vivida a uma
vida sonhada
por
outros, e
certamente
cada
um poderá
enumerar
com
alegria
ou
desconforto
seus
próprios
afetos. No
meu
caso,
são
alguns
livros, algumas
músicas e
imagens,
alguns pouquíssimos
filmes. No
ano
passado tive a
graça de
poder
somar a
minha
lista
mais
um
exemplar dos
últimos,
ou seja, fui
afetado de
forma
radical e
irreversível —
isto
que chamo de
amor—
por
um
filme. Refiro-me a O
Retorno[1],
de Andrei Zvyagintsev. É
um
dom
imperfeito o
que
este
filme
me ofereceu,
eu pensei,
alguns
dias
depois
que
lhe assisti.
Tudo o
que vi foi
muito
intenso,
muito angustiado,
mas
também
normal,
vulgar. Ofereceram
para
mim uma
forma
rara de
prazer, a de se
apaixonar
por
formas, aquela
astúcia dos
bons
personagens de
nos
seduzir, e
logo
após
ter de
abandonar esta
freqüentação do
amor e
retornar a
mim
mesmo e a
minha
vida de
professor, o
trabalho, os
horários,
manter a
casa
limpa,
cozinhar.
Agora
eu
tento
retribuir o
dom recebido
com
este
aqui,
também
imperfeito, inchado de perplexidade.
Vou
contar a
história,
não acredito
que
isto atrapalhará
alguém
que deseje vê-lo.
São
dois
irmãos, Ivan, o
mais
novo, e Andrei, o
mais
velho. O
mais
novo enfrenta
seus
medos. A
cena
inicial é
um dos
rituais de
passagem
típicos da
adolescência: Ivan,
acompanhado de
seu
irmão e
amigos,
tenta
mergulhar de uma
plataforma, uma das muitas
estruturas mastodônticas e desertadas da
falecida
União
Soviética
que,
junto de uma
paisagem
solitária de
bosques e
lagos, compõe os
cenários do
filme. Ivan
fracassa
em
seu
salto,
não consegue
escalar a
plataforma, e, paralisado
pelo
medo, tem de
ser resgatado
horas
mais
tarde
pela
mãe. O
pai,
que há doze
anos desapareceu,
retorna.
Volta à
família
sem aviso e
sem
surpresa. Os
meninos
são acordados
pela
mãe,
que
lhes diz
para se vestirem,
que
seu
pai chegou. Esta
primeira
nota de
absurdo será
constante ao
longo do
filme, e
junto dos
planos e da
fotografia, de uma
luminosidade
solar e
ampla,
desconcertante se pensamos
em uma Rússia
labiríntica e
densa (dostoievsquiana,
talvez,
para
introduzir
seu
nome neste
pequeno
ensaio) leva-me a
concluir
que estou
diante de uma
fábula. É antológica a
cena
em
que os
garotos,
para se certificarem de
que a
mãe
não os está enganando, consultam
um
antigo
álbum de
família,
onde encontram o
retrato do
pai. Aquela
face
até
então
distante a
ponto de
não
existir
nem
como uma
memória
vaga de
repente está
diante deles,
encarnada.
Ela exige
que
não haja estranhamento, e
em
outra
cena antológica, senta-se à
mesa, reparte a
comida, permite
que os
garotos bebam
vinho, avisa
que sairão
para
um
passeio,
para
pescar. Há
um
carro (oh!
um
carro!) e o
pai é
duro
durante a
excursão —
cada
vez
mais
para o
interior.
Força os
jovens
até
seus
limites, obriga-os, às
vezes de
maneira
odiosa, a
superar
suas
forças. Andrei
tenta
aceitar e
ser aceito
pelo
pai, e a
cada
momento reafirma
sua
satisfação e
aliança
com o
estranho. O
irmão
mais
jovem,
em
contrapartida, exige a
cada
instante
que o
pai se explique.
Este, é
preciso
dizer, demonstra
afeto
por
baixo de
sua
dureza, e à
medida
que empurra
brutalmente
seus
filhos
para
fora da
infância, vai se revelando. Zvyagintsev,
quando instado
por
um
jornalista a
fornecer uma
interpretação
para o
filme, declara
que
ele é uma “jornada
metafísica da
mãe
para o
pai”, o
que parece
bastante
coerente
diante de todas as
referências psicanalíticas da
obra,
mas
que soa
um
pouco
irônico,
quase mal-criado, aos
meus
ouvidos.
Talvez seja o
tipo de
resposta
que
Machado daria
caso pudéssemos
perguntar a
ele se Capitu traiu
ou
não
Bentinho.
A
verdade é
que,
como
qualquer
obra de
arte, O
Retorno tem uma
opacidade
essencial, o
que o põe ao
lado das
narrativas
como a de Psamíades,
que Heródoto, Montaigne e Benjamin tiveram
tanto
prazer
em
contar e
recontar: há uma
resistência a
um
sentido
último, e nisto
também a
arte é
vizinha do
amor. Seria
perfeitamente
possível
traçar uma
trama de
interpretações
possíveis,
mas,
para
além do
óbvio, estaríamos
em
território de
ninguém,
ou no
território do
pessoal e
intransferível, o
que é o
mesmo. Daí
que seja
necessário
eu
me
referir
que Ivan e Andrei provavelmente
não
são
nomes
neutros
para
qualquer russo
culto, e
por
mais
comuns
que possam
ser, se relacionam
imediatamente a Os
irmãos Karamázov. O
que
sempre
me intrigou nesta
pequena
bíblia
profana é o
quanto, do
alto de
todo
seu
cristianismo desesperado, Dostoiévski se
preocupa
em
afirmar a
necessidade da
morte do
pai. O
assassinato é culpável e
trágico,
mas
inevitável na
medida
em
que as
promessas (e
cobranças)
feitas
pelo
pai Karamázov a
seus
filhos
vão se revelando
mais e
mais vazias e absurdas, e
também
porque o
pai,
que deveria
ser o
veículo e
catalisador destas
promessas, se revela
antes
como
um
demônio
incendiário do
que
como
um demiurgo
bondoso. Estas
promessas de
felicidade
que os
pais
nos fazem, e
que erramos e
nos rasgamos tentando
cumprir,
não
são
elas perversas o
bastante
para
que o
Grande Inquisidor adquira uma
face
humana? E
todos
nós,
pequenos inquisidores,
talvez possamos
ser perdoados ao flagelarmos de
novo e de
novo
nossos
próprios
Cristos.
Por
outro
lado, o
amor é
um
grande
acontecimento, e deveríamos
ter
condições de protegê-lo
contra
nós
mesmos,
já
que é das poucas
coisas
que
nos permite
retornar ao
momento
zero,
quando
nos descobrimos
entre o
céu e a
terra.
Uma
outra
forma de
apresentar a
questão é perguntando:
para
onde regressamos
após o
amor? Dante foi o
único a
imaginar
um “depois” do
retorno de Ulisses, e
este
abandona de
novo a
casa buscando o
fim do
mundo.
Penso
que
para
nós,
que
não somos
mitos, a
realidade é
ainda
mais infernal: retornamos ao
convívio
com as
pessoas,
talvez
um
pouco
mais
sábios,
mas necessariamente
muito
mais
pobres. No
filme
isto fica
dolorosamente representado todas as
vezes
que o
pai exige
que os
filhos se movam
para
frente e
para
além,
indiferente ao
desejo dos
garotos de permanecerem
onde estão
agora, obrigando-os a
cumprir
um
itinerário
secreto
que
ele conhece,
mas
não
seus
filhos.
Este é
um
símbolo
poderoso da
autoridade
legítima:
ir
para
algum
lugar
que sabemos
que está
lá,
mas
que
não sabemos
quando está, o
que
torna
nosso
movimento possivelmente confuso e
necessariamente
frustrante.
Por
mais
perigoso
que seja
afirmar
isto, a
justiça de
um
destino
não reside
exatamente na
felicidade prometida,
mas
sim na
promessa
mais
simples de
sua
presença.
Mas
sem a
felicidade, o
que
mais pode
ser
este
destino? E a
família
finalmente
chega a
seu
destino: uma
ilha,
em
que o
pai desenterrará uma
caixinha e a esconderá no
pequeno
bote
que levou os
três
até
lá. O
resto é o
desastre: o
pai acaba discutindo
com Andrei e
lhe dá
um
tapa. Ivan,
que
vinha sendo humilhado e maltratado
pelo
homem,
finalmente explode e o
ameaça
com uma
faca,
para
depois
fugir.
Chega
até uma
torre (desafiando
seu
medo de
altura; na
torre o
jovem
toca o
céu,
cercado de
horizontes
por
todos os
lados)
apenas
para
ver
seu
pai,
que o procurava,
morrer
em
um
acidente ao
tentar alcançá-lo. Os
irmãos
são
obrigados a
carregar o
cadáver do
pai
até o
bote e
remar de
volta
para a
costa. A
um
instante de resgatarem o
corpo,
já no
continente, vêem o
barco se
afastar
lentamente da
praia, afundando
com o
cadáver e
com o
pequeno
tesouro
que, de
resto,
nem sabiam
que
fora resgatado,
sem
direito a
luto.
Gostaria de
arriscar uma
última
obviedade,
agora
política.
Talvez O
Retorno seja uma
alegoria
sobre o
fim do
comunismo, a
perda de uma
herança
poderosa,
rica e
autoritária, o
sentimento de
desamparo
que o
povo russo possivelmente sente.
Isto
tudo
eu pude
saber, soube
com o
cérebro,
que serve
bem
para
isto.
Mas
este
golpe de
perceber naqueles
garotos
obrigados a
carregar o
cadáver do
pai
meu
próprio
rosto,
todos
nós, e
ser
obrigado a
assistir à
velha
narrativa da
esperança (o
retorno: Ulisses,
Cristo,
Buda, a
memória de
meus avós, de
certos
afetos,
tudo
isso é a
matéria do
sonho),
que
eu irresponsavelmente chamava de
utopia,
pois
não concebia
seu
peso
nem
que deveria chamá-la de ‘sentido’,
ver
isto afundando e
mesmo
assim os
garotos
em
pé,
este foi
meu
dom
imperfeito. Recebi uma
visão, aquela
família reunida
que avançava
firme
para
um
destino,
mesmo
que às
vezes
ele
não fosse perceptível. Tive esta
visão arrancada,
quando a
família se perde de
novo,
volta
para uma
solidão
que deverá
ser redimida
não se sabe
como.
É
um
lugar
comum da
psicanálise
afirmar
que
quando
nos apaixonamos é
porque projetamos no
outro
aquilo
que amamos
em
nós
mesmos. Prefiro
pensar
que a
coisa se dá
exatamente ao
contrário: amamos
aquilo
que
não está
em
nós, e
que
portanto dói, e
que
por
um
instante
nos permite
sair de
nossa
própria
miséria postando-nos
em
um
além de
si.
Após o
amor é
que retornamos a
nós
mesmos. E se as
promessas
não
são realizáveis, a
ausência de
promessas é possivelmente a
pior
obscenidade
que
um
inferno dos
homens
poderia
imaginar.
Em
algum
momento disto
que chamamos de
humano, o
meu
tempo
só multiplicado
por
todos os
outros,
talvez
eu possa
ver a
família reunida de
novo,
como
um
dom renovado.
Eu completaria
meu
presente.
Resumo:
Comentário
sobre o
filme russo O
Retorno (2003), de Andrei
Zvyagintsev , apresentando
alguns
temas
que o
diretor explora. O
filme narra o
reencontro de
um
pai afastado há doze
anos
com
seus
filhos
adolescentes, as
tentativas de reconciliação e os
conflitos de uma
relação
difícil e marcada
pela
incompreensão
mútua. Tenta-se
oferecer uma
leitura da
obra
que
leve
em
conta os
aspectos
psicanalíticos,
estéticos e
políticos
que
ela mobiliza,
como a
referência a Dostoiévski, à
extinção da
União
Soviética e à
crise das
utopias.
Palavras-chave: Cinema
pós-soviético; Estética; Dostoiévski; Psicanálise.
Abstract:
We make
a comment on the Russian film O
Retorno
(2003) from director Andrei Zvyagintsev. The
movie tells the reunion of a father and his
teenagers
sons
after an absence of twelve years, their attempt of reconciliation and its
difficulties, showing the conflicts of a tough relationship, in which mutual
misunderstanding is the master tone. We consider the psychoanalytical,
aesthetical and political aspects of the work in our understanding of the
movie, such as the reference to Dostoievski, to the extinction of the Soviet
Union and to the crisis of the
utopia.
Key words: Post-soviet cinema;
Aesthetics; Dostoievski; Psychoanalysis.
[1]
Zvyagintsev, Andrei (dir.). O
Retorno. Rússia, 2003.