SÓ O LITERÁRIO NÓ DA QUESTÃO

(AMPLIDÃO E CONFINAMENTO EM PEDRO PÁRAMO)

Hermenegildo Bastos*

 

Para quem lida com a literatura, com o imaginário, a questão que se coloca a cada página, a cada linha, é a sua historicidade inapelável. Isso, entretanto, se coloca de duas maneiras que podem ser, em alguns casos, antagônicas. A presença, numa narrativa da História é, ao mesmo tempo, a evidência da sua condição histórica e ânsia por dela se libertar. As narrativas evidenciam essas contradições, mesmo quando não é intenção do autor fazê-lo. Aqui também se define a dimensão política de uma obra. Entendo que o crítico, para estar à altura da obra que procura interpretar, deve rastrear os passos que se dão em torno deste ponto nodal. Cabe ao crítico fazer conexões, acompanhando o ritmo dessa duplicidade: a ânsia por se libertar da clausura do condicionamento histórico é também forma de evidenciar a historicidade, mas o antagonismo pode dar a ver mais do que se mostra à primeira vista. Em Pedro Páramo, Susana San Juan, que, segundo Rulfo, não é propriamente um personagem, [1] é o ponto em que a pertença e a ânsia se articulam.

Retomo aqui os estudos que venho desenvolvendo sobre representação na obra do escritor mexicano Juan Rulfo, [2] a partir agora de uma leitura dos fragmentos seis e sete de Pedro Páramo.

 

Fragmento 6

“El água que goteaba de las tejas hacía un agujero en la arena del patio. Sonaba: plas plas y luego otra vez plas, en mitad de una hoja de laurel que daba vueltas y rebotes metida en la hendidura de los ladrillos. Ya se había ido la tormenta. Ahora de vez en cuando la brisa sacudía las ramas del granado haciéndolas chorrear una lluvia espesa, estampando la tierra con gotas brillantes que luego se empañaban. Las gallinas, engarruñadas como si durmieran, sacudían de pronto sus alas y salían al patio, picoteando de prisa, atrapando las lombrices desenterradas por la lluvia. Al recorrerse las nubes, el sol sacaba luz a las piedras, irisaba todo de colores, se bebía el agua de la tierra, jugaba con el aire dándole brillo a las hojas con que jugaba el aire.

_ ¿Qué tanto haces en el excusado, muchacho?

- Nada, mamá.

- Si sigues alli va a salir una culebra y te va a morder.

- Sí, mamá.

“Pensaba en ti, Susana. En las lomas verdes. Cuando volábamos papalotes en la época del aire. Oíamos allá abajo el rumor viviente del pueblo mientras estábamos encima de él, arriba de la loma, en tanto se nos iba el hilo de cáñamo arrastrado por el viento. “Ayúdame, Susana.” Y unas manos suaves se apretaban a nuestras manos. “Suelta más hilo.”

“El aire nos hacía reír; juntaba la mirada de nuestros ojos, mientras el hilo corría entre los dedos detras del viento, hasta que se rompía con un leve crujido como se hubiera sido trazado por las alas de algún pájaro. Y allá arriba, el pájaro de papel caía en maromas arrastrando su cola de hilacho, perdiéndose en el verdor de la tierra.

“Tus labios estaban mojados como si los hubiera besado el rocío.”

-Te he dicho que te salgas del excusado, muchacho.

-Sí, mamá. Ya voy.

“De ti me acordaba. Cuando tu estabas alli mirándome com tus ojos de aguamarina.”

Alzó la vista y miró a su madre en la puerta.

- ¿Por qué tardas tanto en salir? ¿Qué haces aquí?

-Estoy pensando.

-Y no puedes hacerlo en otra parte? Es dañoso estar mucho tiempo en el excusado. Además, debías de ocuparte en algo. ¿Por qué no vas con tu abuela a desgranar maíz?

- Ya voy, mamá. Ya voy.

Fragmento 7

-Abuela, vengo a ayudarle a desgranar maíz.

-Ya terminamos; pero vamos a hacer chocolate. ¿Dónde te habías metido? Todo el rato que duró la tormenta te anduvimos buscando.

-Estaba en el otro patio.

-¿Y qué estabas haciendo? Rezando?

-No, abuela, solamente estaba viendo llover.

La abuela lo miró con aquellos ojos medio gris, medio amarillos, que ella tenía y que parecían adivinar lo que había dentro de uno.

-Vete, pues, a limpiar el molino.

“A centenares de metros, encina de todas las nubes, más, mucho más allá de todo, estás escondida tú, Susana. Escondida en la inmensidad de Dios, detrás de su Divina Providencia, donde yo no puedo alcanzarte ni verte y adonde no llegan mis palabras.”

-Abuela, el molino no sirve, tiene el gusano roto.

-Esa Micaela ha de haber molido molcates en él. No se le quita esa mala costumbre; pero en fin, ya no tiene remedio.

-¿Por qué no compramos otro? Éste ya de viejo ni servía.

-Dices bien. Aunque con los gastos que hicimos para enterrar a tu abuelo y los diezmos que le hemos pagado a la Iglesia nos hemos quedado sin un centavo. Sin embargo, haremos un sacrificio y compraremos otro. Sería bueno que fueras a ver a doña Inés Villalpando y le pidieras que nos lo fiara para octubre. Se lo pagaremos en las cosechas.

-Sí, abuela

-Y de paso, para que hagas el mandado completo, dile que nos empreste un cernidor y una podadera; con lo crecidas que están las matas ya mero se nos meten en las trasijaderas. Si yo tuviera mi casa grande, con aquellos grandes corrales que tenía, no me estaría quejando. Pero tu abuelo le jerró con venirse aquí. Todo sea por Dios: nunca han de salir las cosas como uno quiere. Dile a doña Inés que le pagaremos en las cosechas todo lo que le debemos.

-Sí, abuela.

Había chuparrosas. Era la época. Se oía el zumbido de sus alas entre las flores del jazmín que se caía de flores.

Se dio una vuelta por la repisa del Sagrado Corazón y encontró veinticuatro centavos. Dejó los cuatro centavos y tomó el veinte.

Antes de salir, su madre lo detuvo:

-¿Adónde vas?

-Con doña Inés Villalpando por un molino nuevo. El que teníamos se quebró.

-Dile que te dé un metro de tafeta negra, como ésta – y dio la muestra -. Que lo cargue en nuestra cuenta.

-Muy bien, mamá.

-A tu regreso cómprame unas cafiaspirinas. En la maceta del pasillo encontrarás dinero.

Encontró un peso. Dejó el veinte y agarró el peso.

“Ahora me sobrará dinero para lo que se ofrezca”, pensó.

-Pedro! – le gritaron –. Pedro!

Pero el ya no oyó. Iba muy lejos.” (Rulfo, 2003, pp; 74-76)”.

 

O fragmento seis inicia com uma sugestão lírica: a chuva espessa cai no telhado da casa e nas árvores do campo sacudindo os galhos; quando a chuva se vai, o sol lança luz às pedras. Não há sugestão de algo malévolo, nem se apresenta qualquer situação de pena, dor, medo, nem se alude a qualquer situação problemática. O leitor vê que se trata de um lugar no campo onde há galinhas e minhocas. O lugar, onde cabem dois quintais ou pátios, é grande. Por enquanto não há personagens nem ações. Há sugestões, contudo. O mundo é a natureza, mas uma natureza já plena de significados humanos. A chuva, como sabe o leitor de Rulfo, é um símbolo constante da lógica vital. As galinhas se alimentam das minhocas, e isso indica o movimento inexorável da vida. O sol bebe a água da terra. O equilíbrio se refaz.

Em seguida, um diálogo vem quebrar o equilíbrio da paisagem, um diálogo entre um muchacho (que está num espaço confinado, o excusado) e sua mamá. O diálogo é curto, mas dura o tempo suficiente para que a mãe admoeste o menino e lhe mande sair de onde está. Agora há personagens e ações; além disso, há um conflito que gira em torno do lugar onde se encontra o menino. Aí não se deve permanecer muito tempo. O excusado é um espaço de confinamento. É também perigoso, pois nele há cobras que podem morder o menino. Ao contrário das galinhas que se alimentam das minhocas como num gesto natural e de equilíbrio cósmico, as cobras são o desequilíbrio, e se associam ao mundo humano e a este lugar especificamente.

O diálogo, por sua vez, é interrompido por um texto entre aspas com forte carga lírica e que traduz uma visão de locus amoenus. São recordações de Pedro Páramo e aparecem no texto como uma espécie de revanche do menino Pedro Páramo confinado.

O trecho entre aspas é uma interpolação no sentido conceituado por Boixo.[3]  Pedro Páramo adulto, e já perto da sua morte, se recorda da sua infância ao lado de Susana San Juan. Ele aparentemente se dirige a ela. Na verdade, porém, o “tu” a quem se dirigiriam os enunciados é um tu fantasmal como tantos outros e em tantas outras ocasiões de Pedro Páramo. Outro dado que vale a pena reter é que as interpolações se sobrepõem à narrativa; assim, temos, além do narrador Pedro Páramo das interpolações, um narrador em terceira pessoa. O que lemos é, pois, uma narrativa comentada. Esse jogo de planos narrativos – narrativa em terceira pessoa, discurso direto e comentário à narrativa – funciona de maneira a estabelecer a ambigüidade, mas também, e paradoxalmente, de maneira a desqualificar as diversas vozes do mundo representado e concentrar a atenção na obra mesma, na sua produção.

Observei em outro ensaio (Bastos 2004) que essas interpolações se configuram como verdadeiros poemas árcades. Elas são marcas da presença excessivamente literária da tradição e se encaminham, assim, num sentido oposto ao ideal rulfiano de “escribir como se habla”. No ensaio citado, assinalo esta que pode ser a grande contradição da obra de Rulfo: o choque (mais ou menos estilizado) entre a “ficcionalização da oralidade” e o confinamento do escritor numa tradição literária de que ele não pode escapar, embora se empenhe nisso.[4]

Essa contradição ganha proporções significativas. Os “poemas árcades” destoam do personagem que tem as recordações, afinal Pedro Páramo em nada lembra um personagem com veleidades literárias.[5] Essas interpolações (outro tipo de espaço confinado, embora projetem a amplidão do locus amoenus) são marcas do autor.

Ao mundo do autor, por contraposição ao mundo representado no texto, Bakhtin (1978) chama mundo representante.  Esses dois mundos são rigorosamente separados, mas são indissociáveis um do outro. Encontram-se em ação recíproca constante, havendo entre eles trocas ininterruptas. Bakhtin chama essa ação de cronotopo criador em torno do qual se dá a troca entre obra e vida.

O autor (sua atividade), nós o encontramos fora de sua obra enquanto homem que vive sua existência biográfica, mas o encontramos também na obra, embora do lado de fora dos cronotopos representados. Segundo Bakhtin, temos dois acontecimentos: aquele que nos é contado na obra e aquele da própria narração. Enquanto leitores, nós participamos deste último. Esses acontecimentos se desenvolvem em momentos e lugares diferentes. Ao mesmo tempo, porém, eles são inseparáveis e estão reunidos num único acontecimento que pode ser designado como a “a obra na sua plenitude acontecimental”. (Bakhtin, 1978, p. 395).

Há um tempo que representa e outro que é representado. Mas aqui, segundo Bakhtin, surge um problema: a partir de que ponto espaço-temporal o autor considera os acontecimentos que ele representa? Ele o faz a partir de sua época contemporânea inacabada, encontrando-se ele mesmo sob a tangente da atualidade da qual ele nos dá a imagem.

A contemporaneidade do autor compreende, antes de qualquer coisa, o domínio da literatura, não apenas a contemporânea no sentido restrito do termo, mas também a do passado que continua a viver e a se renovar no presente. A relação do autor com as diversas manifestações da literatura e da cultura tem um caráter dialógico. A percepção do mundo do autor, ele nos dá através de um personagem, do narrador ou do autor-substituto, ou ainda, diretamente sem intermediário.

Como encontramos Rulfo em Pedro Páramo? De várias maneiras, mas entre elas uma tem importância especial para este ensaio: na maneira como o autor se insere na obra acrescentando aos temas e problemas tratados pela obra o tema da escrita, a literatura como acontecimento e acontecimento vivido como problema em torno do qual gira o romance.

Os temas, símbolos e arquétipos da tradição ocidental como também da indígena, as técnicas requintadas da fragmentação, da ambigüidade do ponto de vista, da diluição de tempo e espaço, tudo isso é literatura, sim, mas é mais que literatura porque é o problema da literatura tomado e vivido como coisa mortal para o autor.

No ensaio anterior já citado, dizia que o autor se insere na obra, insere o seu próprio drama, a obra como acontecimento da sua própria vida. O problema de escrever. O ideal rulfiano de “escribir como se habla” está travado pela tradição literária. Que os “poemas árcades” surjam ligados ao espaço do confinamento, embora projetem a amplitude do lócus amoenus, isso parece ser significativo.

Tempos e espaços diferentes e até mesmo (ao menos à primeira vista) antagônicos. Dois cronotopos, o do sítio, que é o presente da história, e o das recordações, que é o presente da narrativa. Ao primeiro está ligado o muchacho Pedro Páramo, ao segundo, o adulto Pedro Páramo. Assim considerados, porém, não deixam ver o que talvez seja o mais importante aí: a contraposição amplidão/ confinamento. A amplidão está no sítio (no presente da história), mas também nos trechos que chamei “poemas árcades” (no presente da narrativa); o confinamento, por sua vez, está no excusado (presente da história), mas também na limitação textual que sofrem as recordações, que são, portanto, interpolações ou inclusões, isto é, nos próprios “poemas árcades”. Vendo assim, convém entender a contraposição como interna ao ato mesmo da escrita. Isso, entretanto, ainda não resolve tudo porque o ato da escrita não diz respeito a Pedro Páramo e sim ao autor. 

2

Há alguma coisa de cômico ou farsesco nesses fragmentos. O leitor perceberá o tom proposital disso. Ao leitor se impõe o trabalho de unificar uma disparidade. A cena do excusado se choca com o tom elevado dos trechos entre aspas que identificamos como sendo as recordações de Pedro Páramo centradas em Susana San Juan. A seguir o mundo dos personagens na sua faina diária conduz a atenção do leitor para o mundo não solene das coisas pobres e baixas. O propósito é o de chocar o leitor que não sabe inicialmente se se penaliza com o sofrimento do sujeito das recordações ou se acompanha o ritmo da narrativa em direção ao mundo baixo e vulgar.

O excusado (ou casinha, ou quartinho no Brasil) é um lugar reservado para necessidades fisiológicas. É aí que Pedro Páramo se isola, segundo ele para pensar e pensar em Susana San Juan. É um espaço de confinamento, um espaço fechado, reservado, não usado ordinariamente, recortado do espaço maior que é o sítio. Ao mesmo tempo, porém, o espaço do escusado permite ao muchacho Pedro Páramo que dê asas à sua imaginação e, dessa forma, vá além do espaço do sítio projetando-se num mundo sem limites. Nesse sentido, pode-se dizer que o sítio é também um lugar de confinamento e que, de modo paradoxal, é menor que o excusado. [6]

O presente da história é o da ação centrada na vida do sítio, na faina da sobrevivência, na exposição dos instrumentos de trabalho, na convivência de Pedro Páramo menino com sua avó e sua mãe, na visão da rota do comércio que leva o menino até a venda de Inés Villalpando. Mas tudo isso está no passado de quem narra. A voz que diz “Pensaba en ti, Susana.” não é de Pedro Páramo menino, mas de Pedro Páramo adulto. Esse fala de outro tempo para o qual aquelas ações são passadas.

A lembrança do adulto é marcada pela dor e é com esse ponto de vista que as cenas do passado são narradas. Alguém, distante de si mesmo no tempo, rememora seu passado e o faz chegar até o leitor contaminado pela dor do presente. Este que narra – Pedro Páramo adulto – analisa a história e acentua alguns significados que provavelmente não se evidenciavam para o menino, sua mãe e os demais. A compreensão desses fatos se oferece ao leitor.

Oferece-se, então, ao leitor a duplicidade de dois cronotopos, [7] um de Pedro Páramo menino, outro de Pedro Páramo adulto. Bakhtin observa que nos limites de uma única obra podem-se observar inúmeros cronotopos. Na pluralidade, há, entretanto, um que recobre o todo, sendo este então predominante.

As inter-relações entre os diversos cronotopos têm um caráter dialógico. Esse diálogo, porém, não pode penetrar na imagem representada, nem em nenhum dos cronotopos. Ele entra nos mundos do autor e dos leitores, mundos que também são cronotopos.

3

Nestes e em vários outros momentos de Pedro Páramo – na verdade, na obra de Rulfo como um todo -, a mescla de estilos alto e baixo é uma constante e uma determinante. A teoria da mescla de estilos (Stilvermischung), elaborada e trabalhada por Auerbach em suas obras (entre outras, Auerbach, 1971), funciona como um conceito de unidade da Literatura Ocidental. A Literatura Ocidental sintetiza o estilo elevado da tradição grega e a tradição hebraica do estilo baixo. O primeiro põe em cena personagens elevados na escala social; no segundo dominam os personagens das camadas baixas ou personagens postos em situações prosaicas ou cotidianas. Na Literatura Ocidental esses estilos se mesclam, mas sem anularem suas diferenças.

Há de se perguntar como se pode falar de Literatura Ocidental a propósito de textos como esses de Juan Rulfo em que entram elementos não ocidentais como a tradição indígena e onde a tradição ocidental é apropriada de modo, pode-se dizer, em princípio desvantajoso.

Na perspectiva crítica aberta por Antonio Candido e que teve continuidade em Angel Rama, Antonio Cornejo Polar, Roberto Schwarz e outros, a literatura brasileira e a latino-americana em geral se define em termos do choque entre modelo estrangeiro e matéria local.

A reunião do estilo elevado das recordações de Pedro Páramo adulto com o estilo baixo próprio ao ambiente e aos personagens populares tem uma qualidade peculiar na literatura latino-americana. O estilo das recordações não é somente elevado, é precioso, passadista e até mesmo kitsch.[8] Tem traços de arcadismo, na sua referência à natureza edênica. Ora, a natureza do espaço do sítio é tudo menos edênica. Aí o leitor depara com a escassez e a necessidade. Deve-se trabalhar para sobreviver. E trabalhar em condições pesadas e lastimáveis.

O estilo elevado tem algo de forçado e alheio. É como uma tradição postiça que, entretanto, não pode ser descartada. Para um escritor como Rulfo, cujo lema era “escribir como se habla”, cujo ideal era aproximar-se o máximo da oralidade, não deixa de ser uma contradição significativa. Essa oralidade é próxima de personagens em situações corriqueiras e banais ou mesmo chulas (como em “Anacleto Morones”, por exemplo) ou de personagens cujas situações trágicas são emolduradas por um contexto vulgar e baixo (como em “Talpa”, por exemplo).

Se os estilos se mesclam sem anular suas diferenças, quer-me parecer que nos fragmentos estudados o estilo baixo, num primeiro momento, assimila o elevado e o explica. Em seguida, bem observadas, as situações vulgares e corriqueiras não se explicam apenas como coisas pontuais e totalmente imanentes, ainda que puxem e arrastem o significado do texto para baixo e para a imanência mais declarada. Vejamos como isso se dá na continuação do fragmento sete.

No fragmento sete, enfim o muchacho sai do excusado e se oferece a sua avó para “desgranar maiz”. A avó lhe responde que este trabalho já está feito. Ralha com ele que se defende dizendo que estava vendo chover, com o que volta a referência à natureza e o lirismo recobra sua força. Reforçando a necessidade de que o muchacho se ocupe em algo, a avó lhe manda limpar o moinho. Outra vez o texto lírico, entre aspas, interrompe o diálogo: a voz lírica diz que Susana San Juan está acima de todas as nuvens, na imensidade de Deus, lá aonde não chegam as palavras. O tom e, mais do que o tom, a evocação é árcade-romântica: a amada confunde-se com a natureza, é a linguagem além das palavras, e a natureza é divina. A voz lírica é prisioneira da dimensão terrestre e não pode alcançar a amada. Antes, quando eram jovens e estavam juntos se identificavam com esse universo, faziam parte dele em condição semelhante aos seres naturais.

Entretanto, no espaço do sítio se desenvolve uma outra história. O muchacho não pode limpar o moinho porque este tem uma peça quebrada. A avó lhe diz que vá à venda de Inés Villalpando comprar a peça quebrada. Como pagar? Que ele diga à Dona Inés Villalpando que a peça será paga com a colheita. O muchacho encontra a mãe que lhe pede que compre outras coisas. Diz-lhe que pegue dinheiro no vaso que está no corredor. Ele encontra um peso e pensa que agora lhe sobrará dinheiro para o que for necessário. Vai saindo quando alguém lhe chama Pedro, Pedro, mas ele já ia muito longe, não podia ouvir.

A avó se lamenta que o sítio onde agora moram é pequeno, que já não é aquele onde moravam e onde havia grandes currais. A avó faz referência ao pouco dinheiro, às despesas feitas com a morte do avô e ao erro deste em mudar-se do espaço mais amplo para a casa atual.

O estilo elevado das recordações de Pedro Páramo aponta para um espaço que está além do humano: “...donde yo no puedo alcanzarte ni verte y adonde no llegan mis palabras.” (p. 75) Este espaço infinito se contrapõe ao espaço do excusado, o do confinamento. Contrapõe-se, mas ao mesmo tempo se projeta a partir dele, porque é lá que Pedro Páramo menino pensa em Susana San Juan. Esta é ao mesmo tempo a amplidão e o confinamento.

A leitura nos leva a formular uma pergunta com duas entradas. Primeira: qual a relação entre o espaço dos “poemas árcades” e a casa que a abuela lamenta ter deixado? Segunda: que sentido tem a contraposição entre o sonho de Susana San Juan (que é o mesmo dos “poemas árcades”) e o mundo mercantil para onde o menino Pedro Páramo decididamente caminha abrindo uma rota de transição entre o feudalismo e o capitalismo?

Aquilo de que se lamenta a abuela não é somente a perda da casa mais espaçosa onde havia currais, mas também o fim de uma época. A transição para outra época causa-lhe e a todos inúmeros transtornos. O sonho de Susana San Juan se configura como um poema árcade, isto é, ele é um sonho literário, literariamente elaborado, vivido e sofrido. A época que se vai tem existência literária. O sonho é literário, confinado pelas aspas, seccionado do fluxo da narrativa.

O mundo representado de Comala é uma unidade. As relações mercantilizadas entre os personagens, de parentesco e de trabalho, pessoais e familiares, o meio ambiente, os meios de produção, a estrutura de poder baseada na posse da terra, a ação de engano e embuste da igreja, as ilusões e os desejos, tudo isso que nos chega através das vozes e dos murmúrios gravados nas pedras, nas paredes, nos quartos e nas ruas, tudo isso compõe a unidade de uma formação social. Mas é uma unidade desconjuntada. Sem deixar de ser uma unidade, contém no seu interior o desencontro próprio de um momento de transição para o capitalismo. Infra-estrutura e superestrutura estão em desacordo. Há alguma coisa em mutação. A história caminha, mas caminha pelo lado mal, como disse Marx. O símbolo dessa mutação é Susana San Juan.

A literatura faz parte desse mundo da escassez e da necessidade evidenciado pelos personagens na sua luta pela sobrevivência. As relações são já as do mundo mercantilizado, regidas pelo dinheiro. Susana San Juan não está fora disso. Pelo contrário: é um lugar onde essas relações se formulam de maneira ao mesmo tempo lírica e cruel. À sua maneira é o literário nó da questão não literária.

 

 

Bibliografia:

Auerbach, Erich. Mimesis, A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: EDUSP, 1971.

Bakhtine, Mikhaïl. Formes du temps et du cronotope. In: Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978.

Bastos, Hermenegildo. Dos criminosos e seus relatos. Negatividade e aporia em Juan Rulfo. In: Cerrados, n. 15, ano 12, 2003.

Bastos, Hermenegildo. “Tu sabes cómo hablan raro allá arriba, pero se les entiende”. Mentira y método en las voces de Susana San Juan. In: Reliquias de la casa nueva. (La narrativa latinoamericana: el eje Graciliano-Rulfo). No prelo.

Boixo, José Carlos González Boixo. Introducción a Rulfo, Juan. Pedro Páramo, edição citada.

Perus, Françoise. En busca de la poética narrativa de Juan Rulfo (oralidad y escritura en un cuento de El llano en llamas). Poligrafías, 2, 1997.

Rulfo, Juan. Juan Rulfo examina su narrativa. In: Toda la obra. Edición crítica. 2ª ed. Madrid; París; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, Colección Archivos, 1996.

Rulfo, Juan. Pedro Páramo. Edición de José Carlos González Boixo. Madrid: Ediciones Cátedra, 17ª ed., 2003.


 

* Professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UNB.

[1] - Reproduzo a seguir parte da entrevista que Rulfo concedeu aos estudantes da Universidad Central de Venezuela em 13 de março de 1974:

Pregunta: ¿Podría hablarnos un poco de Susana San Juan? J. R.: Eso no es un personaje… Pregunta: ¿No es un personaje? J. R.: Digo que nos es un personaje que pueda yo ahora ubicar... Me dicen que hable de Susana San Juan, que le interesa que hable de ella… Pues, ya se murió Susana San Juan!... En esa novela hay muchos nombres que son símbolos; simbolizan ciertas cosas, ¿no? Susana San Juan simboliza el ideal que tiene todo hombre de esa mujer que piensa encontrar alguna vez en su vida.” (Rulfo, 1996, p. 454) Susana San Juan permanece isolada depois de morta porque foi enterrada a mando de Pedro Páramo em um mausoléu a prova de ruídos.

[2] - Bastos (2003, 2004).

[3] - Interpolação, segundo Boixo, é a inclusão dos pensamentos e recordações de determinados personagens, sua presença pode ser identificada pelo leitor como séries de unidade narrativa. Como unidade de discurso completo, embora cortado e colocado em diferentes lugares da narração, se diferencia da mera presença do pensamento ou recordação do personagem. Boixo distingue três séries de interpolação. A que aqui nos interessa se centra nas recordações de Susana San Juan que tem Pedro Páramo adulto. Aí as interpolações parecem anotações à narração básica, como se fossem comentários que Pedro Páramo vai fazendo, de forma superposta, ao que se vai narrando, como se fosse um leitor que se recordasse no momento da leitura de diversas situações que se iniciam com episódios de sua infância. Boixo diz ainda que essas recordações são “pensadas” já nos momentos da morte de Pedro Páramo. (Boixo, 2003, p. 25).

[4] - Sobre isso ver, entre outros: Perus (1997).

[5] - Curiosamente, nesse sentido (e em alguns outros) Pedro Páramo é um personagem ao mesmo tempo muito semelhante e muito diferente do Paulo Honório de S. Bernardo. Semelhantes porque ambos parecem ser inverossímeis: são dois homens rudes, sem literatura. Diferentes porque, enquanto Graciliano Ramos se vale de Paulo Honório para criar uma obra marcada pela oralidade e distante da tradição beletrista, Juan Rulfo vale-se das interpolações dos recuerdos de Pedro Páramo para dar vazão ao ímpeto lírico. (Por esse aspecto Rulfo se aproxima mais de Guimarães Rosa e os dois se distanciam significativamente de Graciliano Ramos).

[6] - No dicionário de María Moliner há dois registros diferentes: escusado, com o sentido de retrete, privada; excusado, como o particípio de excusar. Em Toda la obra (1996), está escusado; na edição da Planeta (2000) está excusado. Em Boixo, está excusado. Nas “anotaciones a los fragmentos”, Boixo observa que, embora no dicionário da Real Academia Espanhola só figure escusado com o sentido de retrete, privada, “otros diccionarios sí incluyen la variante que ofrece Rulfo. En realidad, es la forma habitual de escritura y pronunciación en México, donde este término, a diferencia de en España, por ejemplo, es el que se utiliza normalmente”. (Boixo, op. cit., p. 193). Na tradução brasileira de Eric Nepomuceno (2004) está ‘banheiro’.

[7] - Segundo Bakhtin (1978, p. 390 e ss.), o cronotopo como unidade do espaço-tempo, é o centro da concretização figurativa e princípio organizador dos fenômenos artísticos.

[8] - Sobre isso ver Bastos (2004).


 

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