HISTÓRIA LITERÁRIA ENTRE ACUMULAÇÃO E RESÍDUO: O EIXO GRACILIANO-RULFO
Hermenegildo Bastos e Isabel Brunacci.
Neste trabalho procuro discutir a dialética localismo/ universalismo tomando como base de investigação comparativa as obras de Juan Rulfo e Graciliano Ramos. A obra do primeiro é sempre considerada como paradigma de uma etapa da história do regionalismo literário latino-americano marcada pela universalização da região: o super-regionalismo (na expressão de Antonio Candido) ou narrativa transculturadora (na expressão de Ángel Rama). Trata-se aqui de estudar Rulfo e Graciliano à luz da crítica e da historiografia latino-americanas, basicamente Candido e Rama, como também Cornejo Polar e, ao mesmo tempo, de modo dialético, trata-se de repensar a crítica à luz da obra de Rulfo.
Certa complementaridade entre obra e crítica estará em foco aqui. A crítica literária latino-americana surgiu e se consolidou como uma resposta exigida pela própria literatura. Esta, antes que a crítica e a historiografia o assinalasse, já se fazia como apropriação e transformação das matrizes européias. Conceitos e noções como os de ambivalência (Antonio Candido), transculturação (Ángel Rama), heterogeneidade (Antonio Cornejo Polar) são formulações teóricas e críticas de fenômenos estético-literários já existentes. Contudo, à crítica não cabe apenas essa função secundária e ancilar. Ela pode vir a ser também a autoconsciência da obra, abrindo um diálogo com a obra através do qual esta se vê e se projeta na tradição de que faz parte. Nesse sentido, as noções de ambivalência, transculturação e heterogeneidade não são meros nomes para fatos pré-existentes. Produzem o seu conhecimento.
O espaço conceitual dentro do qual se formularam aquelas noções acima referidas é o do “comparatismo contrastivo”, expressão usada por Ana Pizarro. (Cf. Pizarro, 1987). Por “comparativo contrastivo” entenda-se a concepção das literaturas latino-americanas, não como independentes das literaturas matrizes européias, mas como literaturas que, por força das matérias locais, em decorrência da assimilação mais ou menos compulsória da oralidade, reconfiguram ou mesmo subvertem os seus modelos europeus, projetando, a partir daí, a sua própria universalidade.
As leituras de Candido (1987) e Rama (1982) têm um fundamento comum: a percepção da literatura latino-americana como zona de conflito entre o local e o universal. Nessa linha de entendimento, a obra de Rulfo, ao lado da de Guimarães Rosa e outros, são vistas como coroamento de um longo processo de depuração e amadurecimento, por intermédio do qual as culturas locais teriam chegado a marcar uma nova presença na literatura, não mais como o registro da incultura, em geral expresso pelo personagem iletrado, mas como produtora de sentido.
Segundo Ana Pizarro, o discurso literário latino-americano foi-se abrindo cada vez mais a um projeto democratizador da gênese do discurso: Roa Bastos, Arguedas ou Guimarães Rosa cederam o espaço do discurso erudito às formas lingüísticas, às estruturas míticas e em geral às estruturas de pensamento do imaginário social de seus países. (Pizarro, 1994, p. 37).
Ainda que esteja de acordo em tese com essa concepção da evolução das literaturas latino-americanas, entendo que elas têm encontrado muitas vezes formulações enrijecidas e perdido, assim, o sentido dialético que está na origem mesma da idéia de “comparatismo contrastivo”. A não ser assim, como devemos entender a seguinte afirmação da própria Ana Pizarro sobre a história literária latino-americana:
“En este sentido, la línea general de la discusión implica la concepción de una historia literaria no acumulativa de autores y obras, sino de una historia de los procesos a través de los cuales el imaginario de América ha plasmado, en términos de necesaria contradicción, el desgarramiento de su condición histórica”. (Pizarro, 1987, p. 20).
O ponto em que as leituras se aproximam ou se contrapõem está na ênfase com que se vê a passagem da etapa precedente do regionalismo para o super-regionalismo: superação ou transformação?
Se prevalece a idéia de superação, o entendimento é de que um passo à frente foi dado como uma conquista das culturas populares, no sentido de garantir espaço à oralidade e à voz popular. Isso teria sido possível graças à superação do horizonte do realismo, dos paradigmas racionalistas burgueses, de cujo universo se excluiriam, por ilógicas e míticas, as culturas orais. No novo universo, pelo contrário, o supra-racional e o mágico, definidores das culturas orais, seriam o espaço de afirmação da voz popular.
Se prevalece a idéia de transformação, o adensamento estético que se encontra nas obras desses escritores não representa ruptura com o horizonte realista, mas um novo estágio de uma história secular, de uma “longa duração”.
A idéia de superação se fortalece na perspectiva dos chamados estudos pós-colonialistas, segundo a qual há nas temporalidades múltiplas ou heterogêneas aspectos vantajosos: a heterogeneidade deve suplementar uma base a partir da qual os aspectos indesejados da modernização podem ser neutralizados. Contudo, pela forma como os defensores da perspectiva pós-colonialista concebem a condição colonial atual dos povos latino-americanos, nos parece que retornam àquela forma de consciência do atraso que Antonio Candido chamou de consciência amena. (Candido, 1987).
É claro que essa nova forma de consciência amena do atraso contém elementos novos, mas isso, tudo indica, é um agravante. A consciência amena do atraso está presente na tentativa de questionamento dos assim chamados macroparadigmas utilizados para representar as sociedades coloniais e pós-coloniais, como consta do Manifesto Inaugural do Grupo latinoamericano de estudios subalternos. Para os membros do grupo, inspirado no grupo indiano de estudos subalternos, a historiografia marxista não se diferencia da historiografia colonialista a que pretendia se opor. A interpretação marxista é vista como parte da cultura ocidental, como tal traz em si os mesmos germes de dominação e opressão. As lutas pela libertação nos países da América Latina devem, então, se conduzir por outros paradigmas. (Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos, 1998, p. 86)
Entretanto, segundo Aijaz Ahmad, “El subalternismo parece tender cada vez más hacia el exotismo, y lo premoderno reaparece en escena como una respuesta de la posmodernidad a las perplejidades de la modernidad”. (Ahmad, 1999, p. 122) Ora, o que pode ser esta consciência da história latino-americana que retorna ao exótico como fonte de expressão e marca de identidade senão aquela mesma que Antonio Candido chamou de consciência amena do atraso?
Ao contrário desta, para a “consciência catastrófica do atraso” e para a “consciência dilacerada do atraso”, a condição colonial se deve à maneira de como a América Latina se insere no mundo capitalista. Desqualificando a historiografia marxista, o Grupo latinoamericano de estudios subalternos retorna à idéia de “país jovem” e grandioso, com a idéia de pátria estreitamente vinculada à de natureza.
Contrapõe-se à consciência amena do atraso a visão da América Latina como parte da civilização ocidental e do sistema capitalista. A superação da condição colonial não pode se dar fora dessa história.
As obras de Juan Rulfo e Graciliano Ramos evidenciam o comprometimento daqueles aspectos aparentemente vantajosos: eles não existem isoladamente, não podem funcionar senão como elementos da contradição de que são partes integrantes.
Propomos aqui a comparação entre Rulfo e Graciliano, um pouco à contramão da tendência mais comum, pois, quando se trata de estabelecer uma comparação entre Juan Rulfo e algum escritor brasileiro, o nome que imediatamente vem à mente é o de Guimarães Rosa. Sem querer opor-me a isso, procuramos com o esse trabalho desenhar um eixo histórico em que se encontram as obras de Rulfo e Graciliano.
O problema que aqui se coloca é um problema de poética histórica, ou seja, trata-se de uma investigação sobre os significados das mudanças literárias e sobre a possível correspondência entre essas mudanças e a vida social.
A visão de Ángel Rama sobre a evolução literária esteve, cremos, em alguns momentos, marcada pela grande expectativa (ligada à revolução cubana) de superação da nossa condição colonial, o que de uma certa forma imprimiu à sua visão historiográfica uma idéia de progresso. A esse respeito, é importante reler as respostas de Rama às perguntas de Beatriz Sarlo em uma entrevista que ela realizou para a revista Punto de Vista em 1980 e compará-las com as respostas dadas por Antonio Cornejo Polar na mesma entrevista.
Beatriz Sarlo lhes pergunta sobre o conceito de tradição, ao qual contrapõe o de ruptura. Fala então de “líneas de continuidad y sus correpondientes momentos de ruptura”. Rama se vale então da noção de “tradición de rupturas” de Octávio Paz. Sempre que se fala de tradição, diz Rama, fala-se de uma tradição, o que implica sempre um recorte “en la conplejidad del proceso latinoamericano”. No fundo, diz ele, trata-se da criação de linhagens que, via de regra, se põem em termos de dicotomia. Rama fala, então, da necessidade de se refazer uma visão da literatura que não gire apenas em torno de duas linhas de oposição, mas sim de uma multiplicidade. (Sarlo, 1980, p. 11)
Para Rama, a idéia de tradição se converteu em uma mera repetição de modelos, o que termina por ser algo conservador, de reprodução cultural. Para ele, então, a ruptura é um momento indispensável, o que implica um corte com o antecedente e a elaboração de propostas a partir do circuito literário internacional: à medida que o circuito internacional funciona sobre um sistema de rupturas e novidades, o setor dos escritores e críticos é pressionado a agir da mesma forma. Aqui já vemos em funcionamento a idéia de transculturação: a distância entre os setores mais afinados com o circuito internacional e os setores mais apegados à tradição produz enormes obstáculos à integração cultural, no meio movem-se grupos que procuram resolver esta tensão, recuperando ou reanimando, por um lado, os valores tradicionais e, por outro, adotando o funcionamento cultural do circuito internacional. Esta é a resolução mais complicada, mas também extraordinariamente fecunda. Os escritores, acrescenta Rama, trabalham em uma concepção perspectivista, ou seja, uma visão de futuro “que constituye el punto focal desde el cual se ordenan los demás elementos. Se produce entonces un desgarramiento de la mera acumulación cultural y de su formidable fuerza conservadora”. (Idem, p. 13).
Antonio Cornejo Polar, por sua vez, lamenta o recesso da reflexão histórica, o que atribui a uma exacerbação do conceito de ruptura. Para ele, a tradição não deve ser pensada como mera repetição, “sino como secuencia transformadora de un conjunto de valores que efectivamente subsisten”. (Idem, p. 12) Ele considera a noção de “tradición de rupturas” um mero jogo de palavras. Propõe que nos apropriemos do conceito de tradição para fazê-lo funcionar em um projeto cultural latino-americano. Esta apropriação é parte de um movimento mais amplo de apropriação de um conjunto de valores, de categorias e de textos que vêm sendo utilizados pelos setores dominantes e que, por isso, aparecem hoje desvalorizados frente às nossas perspectivas.
O tom da entrevista assume um sentido polêmico: por um lado, na perspectiva de Rama, a defesa da idéia de ruptura como forma de evitar a reprodução cultural; por outro, na perspectiva de Cornejo Polar, o combate a essa mesma idéia, vista como responsável pelo recesso da reflexão histórica. O movimento proposto por Cornejo Polar de apropriação da tradição pelos setores progressistas, entretanto, coincide com a proposta de Rama de reformulação das tensões e dos obstáculos criados pela distância entre os setores mais afinados com o circuito internacional e os setores mais conservadores. A idéia de Beatriz Sarlo, a das “líneas de continuidad y sus correspondientes momentos de ruptura”, parece, então, ter se imposto.
Ora, esta idéia não é a de um progresso linear, mas sim a de uma evolução dialética. As linhas em que os escritores reconhecem seus antepassados, os recortes da tradição, são muito mais complexos do que a simples idéia de que o novo sepulta o antigo.
A perspectiva historiográfica que procuramos pôr em ação aqui é aquela segundo a qual a evolução literária se apresenta ao leitor sempre na sua contemporaneidade, isto é, na condição de que o passado se faz sempre presente outra vez e sempre como um conjunto de resíduos que insistem em se manter vivos e atuais e que podem ser reativados a qualquer momento graças a novos fatos do presente.
Nas interpretações de Rama e Candido as mudanças literárias estão diretamente vinculadas a uma nova consciência da dependência latino-americana. Para os dois críticos, a originalidade das literaturas latino-americanas está em não se submeter à imposição cultural, porque a atividade literária é uma forma de luta pela superação da dependência, literária e também política.
As características formais da nova narrativa são, nas palavras de Antonio Candido, um refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e seus contornos humanos se subvertem, o que faz com que os traços antes pitorescos se desencarnem e adquiram universalidade. (Candido, 1987) Esta novelística está nutrida de elementos não realistas, como o absurdo, a magia das situações; de técnicas anti-naturalistas, como o monólogo interior, o ponto de vista simultâneo, o escorço, a elipse. Segundo Rama, o narrador transculturador “se ha reintegrado a la comunidad lingüística y habla desde ella, con desembarazado uso de sus recursos idiomáticos”. (Rama, 1986, p. 42-3).
Outros críticos reformulam a noção de narrativa transculturadora. Martín Lienhard, por exemplo, conceitua como narrativa bicultural essa narrativa que cria a ilusão de “oralidad escrita” ou de “escritura oral”. Ele ressalva que essa escrita não pode representar diretamente a voz das sociedades marginalizadas. Contudo, embora não seja a literatura dos setores marginalizados, é possível, afirma Lienhard, que a esteja preparando ou até mesmo antecipando. (Lienhard, 1991, p. 128).
A dificuldade está, segundo pensamos, em identificar a antecipação ou, o que parece ser mais forte, a preparação. Haverá nas obras desses escritores, e em particular na de Rulfo, elementos formais que possam e devam ser tomados como tais? Assim, a questão que aqui colocamos é: a ficção de Rulfo, que representa um avanço no sentido da presença na literatura da voz popular, da oralidade, corresponde a algum avanço concreto na história social da América Latina? Em outras palavras: o avanço estético e literário conceituado na idéia de transculturação corresponde a algum avanço efetivo das classes populares na luta por sua independência? Ou poderia o avanço literário corresponder a um profundo retrocesso e se caracterizar como uma ausência de correspondência ou correspondência cruel posto que pelo avesso?
Para equacionar a questão, escolhemos aproximar a obra de Rulfo à de Graciliano Ramos, procurando entender se, em contraposição à ficção realista, a narrativa de Rulfo pode ser tomada como uma forma de antecipação de avanços históricos sociais efetivos, no sentido do fortalecimento da voz popular.
A obra de Graciliano Ramos, autor também presente nas páginas de crítica de Candido (1992) e Rama (1982), é tomada aqui como contraponto à de Rulfo.
Na obra de Graciliano Ramos, não nos encontramos em presença nem da estilização tradicional da oralidade, como acontece no chamado romance de 30 brasileiro, nem da assunção do personagem iletrado à condição de narrador, como é o caso de Guimarães Rosa e Rulfo (embora se possa falar em algo semelhante a propósito de São Bernardo). Presenciamos outras resoluções técnicas que são, a nosso ver, tão complexas quanto.
Estamos, neste caso, diante de uma obra em que o silêncio do personagem contamina a linguagem do narrador. Os traços característicos de Graciliano Ramos, o laconismo e a rudeza de linguagem, não resultam de uma eleição estilística pura e simplesmente, mas de uma ocupação do espaço da literatura pelo iletrado. Como diz Antonio Candido, Graciliano, em Vidas secas, “trabalhou como uma espécie de procurador do personagem, que está legalmente presente, mas ao mesmo tempo ausente”. (1992, p. 106) Sobre Vidas secas, Antonio Candido sublinha ademais a aparente neutralidade do narrador. (1999, p. 112).
Se estamos diante de um narrador que é o representante do personagem no romance, que é o seu porta-voz, temos que atentar para o que de intrigante se estabelece na relação entre ambos. Não encontramos a solução fácil tão comum no romance de 30 da atribuição do poder de voz ao marginalizado como se este carregasse panfletariamente uma bandeira de sua classe; tampouco nos deparamos com o personagem cujos laconismo e rudeza são tratados sob o prisma do exótico falar regional, marcado pelo uso de vocábulos específicos da região e pelos desvios da norma padrão. Esses são procedimentos claramente recusados por Graciliano Ramos, em sinal de que o narrador renuncia a sua prerrogativa de detentor exclusivo do poder sobre a narrativa, mas não pacificamente.
A análise desses procedimentos à luz das teorias da comunicação revela, ao longo de Vidas secas, o predomínio do discurso indireto livre. Estabelece-se desde o início da narrativa a idéia de que esse narrador-procurador é realmente a voz dos personagens, conforme assinalou Freixeiro (1978, p. 246), identificando um “estilo indireto livre mais ou menos interior, de acordo com a ausência ou presença de termos expressivos”. Esse crítico, ao analisar o capítulo “Fabiano”, identificou na estrutura discursiva do romance uma “unidade estilística circular: estilo direto, estilo indireto livre expressivo, estilo indireto livre puro e estilo direto, sendo que o primeiro e o último elementos dessa unidade são os mais escassos. A escassez do estilo direto prova a necessidade que tem o narrador de evitar a transposição para o romance da oralidade consentida, artifício comum nas obras de seus contemporâneos.
Interessa-nos ir além dessa constatação, a fim de identificar os momentos em que se dá na narrativa a contaminação do discurso do narrador pelo não-discurso do personagem, o que configura um processo pelo qual o poder desse narrador sobre a narrativa é abalado estruturalmente, sendo ele obrigado a ceder espaço discursivo à rudeza e ao laconismo do personagem.
É de fato necessário colocar em questão, como faz Antonio Candido, essa apenas aparente neutralidade do narrador de Vidas secas, que boa parte da crítica literária brasileira destacou como autêntica, quando da recepção da obra. Esta análise mostrou que essa neutralidade é uma ilusão e que existe um processo sutil de identificação do narrador com o personagem, entre os quais se estabelece a tensão da disputa pelo espaço discursivo.
O narrador de S. Bernardo é um homem de poucas letras, incapaz de levar a cabo o desejo da escritura. A verdade é que é uma forma de ficcionalização da oralidade. É um artifício de escritura que permite ao autor acercar-se da linguagem popular.
Como se pode ver, também Graciliano maneja a linguagem com o propósito de garantir um locus de enunciação à voz popular. Se assim é, ou ampliamos as datas do começo da transculturação ou nos dispomos a reconsiderar a validez do próprio conceito.
A nossa questão é, pois, reavaliar a dialética entre continuidade e descontinuidade. O que perguntamos é, na hipótese de o discurso da transculturação ser um avanço sem correspondente efetivo na história social, se não estará a crítica estabelecendo balizas temporais que podem funcionar como nova ideologia capaz de obscurecer o papel da literatura na América Latina.
Cabe à crítica literária latino-americana reabrir a questão e reconsiderar a tensão entre presença e ausência da oralidade como aquilo que de fato é: uma contradição própria do fenômeno literário em situação colonial: o texto literário como a escrita de uma contradição, ou melhor, como uma escrita contraditória. O texto, dizem Balibar e Macherey, é “...materialmente incompleto, chocante, incoherente, porque resulta de la eficacia conflictiva, contradictoria, de uno o varios procesos reales superpuestos que no quedan abolidos en él salvo de manera imaginaria”. (1975, p. 33) Em nosso caso, os processos reais superpostos são a escrita e a oralidade enquanto práticas discursivas exercidas, de modo desigual e conflitivo, no interior das sociedades latino-americanas.
Se a literatura apresenta, como afirma Jameson, seguindo a Lévi-Strauss e a Balibar e Macherey, uma solução imaginária para contradições ideológicas irreconciliáveis, podemos considerar o ideal de “escribir como se habla” de Rulfo como a solução imaginária da confrontação das duas culturas, a escrita, das elites, e a oralidade, das classes populares. Resta saber se a literatura de Rulfo é a escrita da reconciliação ou a escrita da impossibilidade de se reconciliar.
Cabe aqui ainda uma outra pergunta que não encontramos formulada nem em Macherey nem em Jameson: como solução imaginária de contradições reais, como se insere a obra literária no interior dessas mesmas contradições: oferecem algum significado novo a elas, ilumina-as à medida que as “soluciona” e, dessa maneira, impulsiona-as, ou atua como forma de atenuá-las e neutralizá-las?
As respostas de Rulfo e Graciliano ao processo de modernização imposto pelos países centrais são radicais. Cada etapa da modernização na América Latina vem agravar os problemas da etapa precedente. Foi-nos negado o lado positivo da modernidade: a democracia e o estado de direito, e nos foi imposto o lado perverso e inumano da exploração. Somos o lado oposto da modernidade, mas construímos através da literatura um ponto de vista que nos permite evidenciar a perversão da modernidade.
O fundamental é que a literatura não está fora da perversão que ela mesma denuncia. Disso resulta algo que é decisivo em Rulfo e Graciliano: a questão da literatura, o autoquestionamento literário, a literatura que entende a si mesma como parte do processo de modernização, como elemento do processo civilizatório. Como observam Candido (1987) e Rama (1985), a literatura esteve profundamente comprometida com os interesses dos colonizadores. A prática literária exercida nessas condições se dá, então, necessariamente como autoquestionamento.
A literatura é a questão aqui, mas a literatura enquanto prática cultural comprometida com os processos de modernização que Rulfo e Graciliano recusam e denunciam. A literatura não é inocente. É, na verdade, um elemento da ideologia dominante, ainda que possa se contrapor a ela. É em si mesmo um poder. Assim, o que temos em Graciliano e Rulfo é uma literatura contra a literatura.
Um dos aspectos desse questionamento se sobressai na forma que tomam as obras de Graciliano e Rulfo, em muitos casos, de relatório ou depoimento. No caso de Rulfo, via de regra trata-se de uma confissão de um crime.
Um relatório, depoimento ou confissão pressupõe a existência de um interlocutor capaz de recolher o que ouve e dar o encaminhamento julgado pertinente. Se o depoimento é oral, chega, entretanto, até nós em forma escrita. Devemos reconhecer aqui a presença da contradição entre oralidade e escrita, mas agora (radicalizando o Rama de A cidade letrada) convém ver aí um conflito não só de cultura, mas também de classe: o detentor do poder de escrita, o membro da cidade letrada, agente do controle, é representante do poder de classe. Os conflitos de cultura, decorrentes da conquista, que identificam a cultura dominada com a oralidade e a dominante com a escrita, são subsumidos pelos conflitos de classe.
Em Rulfo (como em Guimarães Rosa, cada qual a sua maneira) a solução imaginária para o problema real que é a exclusão da imensa maioria dos povos latino-americanos dos processos de decisão sobre seus destinos alcança um grau de sofisticação único que poderíamos definir como a chegada ao poder, na estrutura narrativa, do iletrado. Isto ocorreu na literatura (nos anos 50 e 60 e na sua continuidade nos escritores do boom do romance hispano-americano) ao mesmo tempo em que esses mesmos povos sofreram os processos mais violentos de aniquilamento.
O conto “Meu tio, o iauratê” não só tematiza como também explora na própria estrutura narrativa este descompasso: o personagem iletrado ascende ao posto de narrador, vale dizer, de detentor do poder de voz, exatamente para narrar o seu assassinato e o de sua cultura. Lembre-se que este conto, embora escrito no final dos anos 50, foi publicado em 1961, num momento, portanto, de intensa mobilização no campo em torno da questão da reforma agrária, o que confere ao conto um caráter de profecia.
A magia que o personagem procura em vão pôr em prática (na sua tentativa de se transformar em jaguar e, assim, reagir ao intruso) está indisponível. A maestria do escritor está em se colocar na pele do personagem e ativar, a seu modo, um outro poder mágico, o da arte: o personagem e a sua cultura são destruídos pela modernização devastadora, mas continuarão vivos nessa outra forma de vida que é a literatura.
Esta é uma dialética poderosa, mas não deixa de evidenciar o seu lado perverso. A percepção dessa duplicidade nos obriga a voltar a Graciliano Ramos em busca de entender, digamos, o que nele se coloca como outra solução imaginária para o mesmo problema. Tirando o caso de Paulo Honório já comentado brevemente aqui, a obra que se nos afigura fundamental para essa discussão é Vidas secas.
O personagem impossibilitado de falar e, portanto, de ascender ao status de narrador contamina, como dissemos, o discurso do narrador culto. Também aí escritor e personagem se identificam, mas de maneira, digamos, negativa ou, em outros termos, se identificam para assinalar a impossibilidade. A impossibilidade é também do personagem de “Meu tio, o iauaretê”, mas mas em Vidas secas é assumida como limitação da estrutura narrativa na sua capacidade de apontar para uma solução real. Em outras palavras: a limitação não é um defeito literário, mas sim um recurso mimético que representa a limitação histórica real.
O que chamamos eixo Graciliano-Rulfo poderia ser tomado como uma das muitas linhagens a que se referem Rama e Cornejo Polar. Quanto dessa linhagem ou eixo aqui estudado permanece em sua versão mais radical, quanto se imobiliza nas teias da própria arte, eis uma questão a ser debatida.
Resumo:
Neste trabalho, discutimos a dialética local/universal a partir das obras de Juan Rulfo e Graciliano Ramos. Repensamos a história da narrativa latino-americana numa perspectiva não evolucionista, em que o passado permanece atual em virtude de não terem sido solucionados os problemas (literários e sociais) do seu horizonte histórico. Procuramos com esse trabalho desenhar um eixo em que se encontram as obras de Rulfo e Graciliano. Trata-se de uma investigação sobre os significados das mudanças literárias e sobre a possível correspondência entre elas e a vida social.
Palavras-chave: Dialética local/universal; história da narrativa latino-americana; Juan Rulfo e Graciliano Ramos.
Abstract:
In this work we discuss the dialectical relationship between the regional and universal aspects in the works of Juan Rulfo and Graciliano Ramos. We rethink the History of the Latin-American narrative in a non-evolutionist perspective in which the past still remains real because the problems (literary and social ones) have not been solved in its historical horizon. In this work, we intend to draw an axis where the works of Rulfo and Graciliano coincide. This is an inquiry on the meanings of the literary changes and on the possible correspondence between them and the social life.
Key-words: Local/ universal dialectic; History of the Latin-American narrative; Juan Rulfo and Graciliano Ramos.
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