MORTE E VIDA SEVERINA E O SUPER-REGIONALISMO

Marcelo Frizon*

 

“O regionalismo não é uma linguagem regional, que o inutilizaria, mas falar de problemas que estão mais próximos da pessoa que fala: a dor do homem, a alegria, as suas lutas e as suas belezas etc. Não, é claro, com a limitação de uma linguagem local, que inutiliza a expressão universal e a transmissão objetiva do conteúdo humano do poema ou do romance. (...) Apenas com aquele interesse intrínseco do humano, na valorização do humano. O que limita o regionalismo não é o tema de interesse circunscrito, mas a linguagem, com seus perigos de fixação que lhe poderá inutilizar a universalidade. (...) O que interessa é o problema do homem. Quando me bato pelo regionalismo é para mostrar, numa anedota, o local, os sentimentos comuns a todos os homens. O homem só é amplamente homem quando é regional. Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano, eu nada sou. Faulkner, por exemplo, é profundamente universal porque é regional e nacional. (...) O perigo do regionalismo para o poeta é também a limitação da linguagem, porque o conteúdo psicológico lá está indiretamente no seu conteúdo humano. E a poesia, em geral, não é realista, ou melhor, não permite tanto realismo como o romance.”

 

João Cabral de Melo Neto, entrevista a Marques Gastão,

Diário de Lisboa, Lisboa, 3 de maio de 1958.

Incluído em Idéias Fixas de João Cabral de Melo Neto,

de Feliz de Athayde (p. 85 e 86).

 

I. Panorama

No célebre ensaio Literatura e Subdesenvolvimento (CANDIDO, 2000, p. 140-162), Antonio Candido identifica três fases da consciência de atraso da América Latina, em especial do Brasil, relacionando-as com os movimentos literários. A primeira corresponde ao período romântico, no século XIX, em que predomina uma consciência amena do atraso, onde os escritores copiavam a forma européia e adaptavam-na com tintas locais. O regionalismo, como tema, aparecia ligado à exaltação da natureza, aos aspectos da terra, tendo na figura do índio o herói perfeito, idealizado. A segunda fase corresponde a uma consciência catastrófica, num período que se estende do Realismo/Naturalismo aos escritores de 1930. Com a revolução estética e temática provocada por Machado de Assis, a literatura brasileira alcança um novo patamar, em que a forma literária está aclimatada, permitindo que as novas gerações de escritores possam experimentar novas formas, temas e linguagens. O regionalismo desse período passa de algo ingênuo, com escritores que exploravam o pitoresco e o exótico (Coelho Neto, Afonso Arinos, etc), a tema de primeira grandeza nas nossas letras, graças ao advento de Simões Lopes Neto e, cerca de vinte anos depois, Graciliano Ramos, mas também com José Lins do Rego e Jorge Amado, entre outros. O terceiro momento corresponde a uma consciência dilacerada do atraso, em que a literatura utilizará elementos mágicos, fantásticos, recriando sua forma para retratar um espaço primitivo, feudal, se comparado à transformação urbana brasileira: é o choque provocado pela obra de Guimarães Rosa, com o sertão como pano de fundo para obras como Sagarana, Grande Sertão: Veredas e Corpo de baile. Poucos anos depois alinha-se a ele João Ubaldo Ribeiro, com seu Sargento Getúlio. O crítico denomina esse período super-regionalista, pensando em surrealismo ou super-realismo.

Em outro texto contemporâneo ao recém citado, A literatura e a formação do homem (CANDIDO, 2002, p. 86), Candido afirma que

“(...) tanto na crítica brasileira quanto na latino-americana a palavra de ordem é ‘morte ao Regionalismo’, quanto ao presente, e menosprezo pelo que foi, quanto ao passado. Esta atitude é criticamente boa se a tomarmos como um ‘basta!’ à tirania do pitoresco, que vem a ser afinal de contas uma literatura de exportação e exotismo fácil. Mas é forçoso convir que, justamente porque a literatura desempenha funções na vida da sociedade, não depende apenas da opinião crítica que o Regionalismo exista ou deixe de existir. Ele existiu, existe e existirá enquanto houver condições como as do subdesenvolvimento, que forçam o escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura urbana”.

 

            O regionalismo na literatura, pelo menos desde Simões Lopes Neto, perdeu seu caráter de exportação e exotismo fácil, para usar as palavras do crítico. Deixou de ser uma maneira de conhecer o interior brasileiro, sua gente, hábitos e costumes, para tratar de assuntos comuns a todos os homens, expondo os problemas de uma nação tão heterogênea quanto o Brasil. Mesmo hoje o regionalismo poderia render bons frutos, já que ainda temos problemas sociais semelhantes aos da época de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, mas a geração contemporânea de escritores parece mais preocupada em retratar a violência dos grandes centros urbanos do que a trajetória miserável de pessoas do campo (há quem pense justamente que o foco em torno de personagens urbanos marginais representa uma nova fase do regionalismo, mas creio que isso só poderá ser analisado mais claramente com um maior distanciamento histórico).

            É interessante perceber que, apesar do regionalismo ter um posto importantíssimo na formação da literatura brasileira, sua produção está quase toda ligada à prosa. Inúmeros poetas trataram da terra em suas obras, mas o tema acaba ficando mais para a exaltação da natureza do que para o regionalismo. Não pretendo elencar possíveis motivos para isso, mas cabe aqui uma ressalva importante: por regionalismo entendo a literatura ligada ao mundo estritamente rural, do campo ou do sertão. Por isso, desconsidero em meu foco, por exemplo, aquela produção de Carlos Drummond de Andrade que tematiza Minas Gerais, ou a de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto em que o tema é Recife. Prefiro me concentrar na análise de Morte e Vida Severina. Concebido como um auto[1], o texto de João Cabral, a meu ver, conseguiu transpor para o verso os problemas do sertão (pernambucano) sem exotismo e sem cair no pitoresco, num tratamento lírico superior, assim como é sua poesia de maneira geral.

 

II. João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto inicia sua produção poética com Pedra do Sono (1940-1941), e até O Rio (1953) sua poesia pouco trata de temas regionais. Com Morte e Vida Severina – Auto de Natal Pernambucano (1954-1955), o regionalismo ganha beleza e tratamento até então dispensados apenas para a prosa, como já observado. O poema foi idealizado inicialmente como uma peça teatral, a pedido de Maria Clara Machado. Quando publica sua poesia completa (até 1956), Duas Águas, Cabral decide incluir o poema (junto com os então inéditos Paisagens com figuras (1954-1955) e Uma faca só Lâmina – ou serventia das idéias fixas (1955)) por achar que o livro estava pequeno. Acaba cortando, então, todas as marcações teatrais, deixando só as falas das personagens.

O poema agradou os intelectuais, para desespero do autor, que queria vê-lo lido pela gente humilde, analfabeta. O sucesso do texto pode ter sido maior justamente por ser um poema, e não um romance ou um conto, apesar de idealizado como drama.

Utilizando uma linguagem seca, de poucos adjetivos, e uma construção tradicional dos romanceiros populares, acompanhamos a história de um certo Severino que decide migrar para o Recife em busca de melhores condições de vida. Segundo o autor, “(...) o Recife é o depósito de miséria de todo Nordeste” (ATHAYDE, 1998, p. 109). Miséria esta que já havia sido exposta em outras obras, todas narrativas, mas o poema de Cabral, diferente delas, inicia quando o retirante decide migrar e concentra-se na sua viagem, alcançando uma roupagem quase épica. Além disso, existe uma tensão no poema que não há em outras obras: embora reproduza a linguagem da literatura de cordel, dos romanceiros populares, da gente humilde e analfabeta, não há gírias ou coloquialismos regionais, como os que os escritores da virada do século XIX para o XX gostavam de utilizar, fazendo com que o texto seja construído de maneira próxima à norma culta.

Numa coluna que possuía no jornal Folha da Manhã, de São Paulo, Antonio Candido exalta a estréia de João Cabral de Melo Neto com Pedra do Sono (CANDIDO, 2002, p. 135). O crítico reconhece, por assim dizer, no calor da hora, a qualidade do escritor pernambucano. Mais do que isso: Candido aponta características determinantes da poesia cabralina que aparecerão em outras obras, inclusive em Morte e Vida Severina. São suas as palavras:

Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente, que procura construir um mundo fechado para a sua emoção, a partir da escuridão das visões oníricas. Os poemas que o compõem são, é o termo, construídos com rigor, dispondo-se os seus elementos segundo um critério seletivo, em que se nota a ordenação vigorosa que o poeta imprime ao material que lhe fornece a sensibilidade. Disso já se depreendem as duas características principais desses poemas, tomados em si: hermetismo e valorização por assim dizer plástica das palavras.” (CANDIDO, 2002, 136-137)

 

            O crítico ainda reconhece que os poemas de Cabral têm “um mínimo de matéria discursiva e um máximo de libertação do vocábulo” (CANDIDO 2002, p. 136-137), mas nem por isso eles deixam de conter imagens materiais, pois “(...) suas emoções se organizam em torno de objetos precisos que servem de sinais significativos do poema – cada imagem material tendo de fato, em si, um valor que a torna fonte de poesia, esqueleto que é do poema. O verso vive exclusivamente dela” (CANDIDO, 2002, p. 136-137).

            É impressionante como Candido consegue captar a essência da obra de um escritor estreante, sendo ele também um crítico jovem (contava ele 25 anos quando escreveu esse texto). E os livros de Cabral que se seguiram só provaram que a análise de Candido estava corretíssima: há nos poemas um forte hermetismo ligado a imagens concretas, com uma exploração consciente e vigorosa da linguagem. Mas o que aqui interessa é a exceção. Das características apontadas, a única que não pode ser aplicada a Morte e Vida Severina é, a meu ver, a principal delas: o hermetismo (talvez mais um motivo para ter agradado intelectuais como Vinicius de Moraes). O poema tem uma clareza até então ausente na obra cabralina e é construído de forma narrativa, com início, meio e fim, o que facilita sua leitura (interessante também é observar que João Cabral o considera um dos trabalhos menos realizados que fez, justamente por causa da necessidade que tinha de ser claro (ATHAYDE, 1998, p. 109)). E não poderia ser de outra forma, já que a intenção de Cabral era ser lido pelo povo; se ele tivesse utilizado uma linguagem formal com um verso decassílabo, estaria cometendo os mesmos erros de Coelho Neto ao escrever seus contos regionalistas, em que o narrador em terceira pessoa utiliza a norma culta, enquanto às personagens, quando ganham voz através do discurso direto, fica a função de reproduzir os coloquialismos da região retratada (por exemplo, os contos do livro Sertão).

            Morte e Vida Severina é um poema contemporâneo da grande obra de Guimarães Rosa, Grande sertão, veredas, outro texto muito bem analisado por Antonio Candido logo após seu lançamento. Ambos os autores, portanto, sofreram a tal consciência dilacerada do atraso, mas Candido não apontou Cabral como um representante dessa fase. Talvez porque sua obra foi pouco dedicada ao regionalismo, mesmo depois de Morte e Vida Severina, talvez porque, apesar de ser um poema regionalista, não possui os elementos apontados por Candido que outras obras possuíam (como o fantástico, o realismo mágico, uma forte indagação metafísica, etc.). Mas creio que a aliança pode ser efetuada e é isso que procurarei apresentar.

            Antes, é interessante registrar também que, enquanto o país modernizava-se radicalmente através da mão de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, alguns dos principais escritores brasileiros do período estavam preocupados em retratar o mundo rural, sertanejo, o mundo atrasado, feudal. Além de Morte e Vida Severina e Grande sertão, veredas, poderíamos lembrar também da peça Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna, e, pouco depois, da novela Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro. É como se os escritores quisessem escancarar que o Brasil não era São Paulo, Rio de Janeiro e, muito menos, Brasília, e sim o deserto árido sem fronteiras estaduais (portanto, sem leis) do sertão nordestino. E a verdade é que, embora o percentual tenha se reduzido, ainda hoje existem regiões do país com pessoas vivendo na Idade Média. Elas aparecem pouquíssimo, mas às vezes (em épocas de eleição, por exemplo) são lembradas  pela mídia, que gosta de mostrar a urna eletrônica sendo usada movida a bateria, num local remoto, por pessoas semi-analfabetas, como se estas fossem raridades impressionantes, como bem lembra Darcy Ribeiro (no ensaio Sobre o Óbvio – RIBEIRO, 1979).

           

III. Morte e Vida Severina

Toda a primeira parte do poema (O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI – CABRAL, 2003, p. 171-172) é conduzida pela explicação do nome “Severino”, que parece determinar a vida da personagem. Além de ser filho de uma das muitas Marias e de um dos muitos falecidos Zacarias, o retirante reconhece sua vida igual à dos outros Severinos, também filhos de Marias e Zacarias. Mais do que isso, como bem observado por Homero Araújo:

“Depois dos versos clássicos que definem a condição severina e referem seu caráter coletivo e desgraçado (Somos muitos Severinos), o poema volta a dirigir-se ao público na segunda pessoa do plural do pronome de tratamento, o que dá um caráter cerimonioso ao apelo (Mas, para que me conheçam / melhor Vossas Senhorias). Tal referência é incluída na oração adversativa de caráter elucidativo e pedagógico a enfatizar que o Severino que em vossa presença emigra é um artifício poético a simbolizar a classe / condição severina.” (ARAUJO, 2002, p. 139-140)

 

A vida dessa gente severina é, portanto, sofrida, tão fraca que o tronco não tem força nem para segurar a cabeça grande, ou a barriga d’água (ventre crescido) segurada pelas pernas finas, e o sangue que usam tem pouca tinta. Aí está apresentada, além das características físicas, a personalidade desse Severino. Quando se refere ao sangue sendo usado, parece indicar que é um sangue diferente do das demais pessoas, um sangue encontrado apenas entre os Severinos, um sangue que tem pouca tinta justamente porque seu nome é Severino, porque sua vida é severina. E a morte, logo a seguir, também é severina: uma morte certa, esperada, que pode chegar a qualquer momento. Até as habilidades de cada um desses severinos são as mesmas. O que sabem fazer é trabalhar na terra, é tentar arrancar algum pedaço de vida duma terra seca que não é amiga. O final da primeira parte (Mas, para que me conheçam / melhor Vossas Senhorias / e melhor possam seguir / a história de minha vida / ...) parece indicar que a vida desse Severino está começando naquele momento em que decide migrar em direção ao Recife, na esperança de encontrar melhores condições de vida. Mas o que acabará encontrando não é animador...

Na segunda parte do poema, o retirante se depara com dois homens carregando um defunto numa rede. No diálogo apresentado, ficamos sabendo que o tal defunto foi assassinado com um tiro numa emboscada, porque queria expandir suas terras. Ao assassino nada foi imputado. Ao final, um dos carregadores decide voltar, já que Severino tomará seu lugar pois está indo para o mesmo destino, enquanto o outro reflete que maior sorte teve o defunto, “pois já não fará a caminhada de volta” (CABRAL, 2003, p. 175). Nessa passagem temos, pela primeira vez, a sensação de que a morte é a melhor saída para aqueles severinos. Eles têm consciência de que sua vida não melhorará; ao contrário, a tendência é de que piore até a chegada da morte, momento em que poderão descansar sem preocupações.

Na terceira parte, o retirante declara que acreditava não se perder graças ao rio Capibaribe, seu guia até Recife, mas ele secou com o verão e sua viagem precisará ser interrompida, já que não vê ninguém, apenas escuta ao longe uma cantoria, que nos leva à quarta parte em que Severino chega a uma casa em que um defunto está sendo velado. É interessante notar que, assim como o defunto anterior, este também tem o mesmo nome do viajante, cuja viagem acompanhamos.

Na quinta parte (CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA – CABRAL, 2003, p. 177-178), a constatação de que só encontrou morte, e o pouco que não era morte era vida severina, abala a confiança do retirante na sua viagem. As suas falas parecem indicar que não existe uma divisão entre morte e vida severina – uma está na outra, é inevitável. Mais do que isso: a vida severina é uma morte em vida, é a sensação de que não há motivo para viver, sensação de que a vida é um objeto ruim de ser carregado e talvez seja melhor livrar-se dele. Mas o retirante ainda não perdeu completamente as esperanças e decide interromper sua linha, assim como o Capibaribe, pelo menos até este estar cheio novamente. Então, decide procurar “um trabalho de que viva”. Essa expressão demonstra que viver é trabalhar, pois sem trabalho a vida severina aproxima-se mais rápido da morte.

            Na próxima seqüência, Severino conversa com uma mulher que estava na janela de sua casa. Ele lhe pergunta se há algum trabalho para ele naquela região, ao que a mulher lhe indaga suas habilidades. O retirante sempre trabalhou na terra, sabe manejá-la como ninguém, mas aquele tipo de trabalho não era necessário, pois ali viviam muitos homens que também conheciam muito bem a terra. Curioso, ele pergunta à mulher qual é sua lida, recebendo uma resposta intrigante: a mulher é rezadora em velórios, a melhor que há, e com freqüência é chamada de longe para trabalhar. Severino não sabe nem rezar, enquanto a mulher lhe garante que nunca teve azar na profissão e que o único trabalho que há naquela região está relacionado com a morte e dá um lucro imediato.

            Chegando à Zona da Mata, o retirante acredita que ali pouco se precisa trabalhar, porque não vê ninguém e a terra é branda e macia. Na oitava parte, ele assiste novamente ao enterro de um trabalhador (esta seqüência ficou consagrada como “Funeral de um lavrador”, na voz de Chico Buarque). Novamente, a morte está ao lado de Severino: sua trajetória parece ser acompanhada o tempo todo por ela, como se lhe dissesse “você tem outra opção para sua vida”.

            Após essa cena, o retirante decide apressar o passo para chegar logo ao Recife. E quando lá chega a imagem também é desoladora. Ao escutar a conversa de dois coveiros, percebe que nem ali a morte deixa de atacar, nem ali a velhice consegue chegar. Pior do que isso: Severino se dá conta de que mesmo no Recife a vida não lhe guarda muitas esperanças: seu destino será semelhante ao que teria na sua terra e só lhe resta uma solução, apressar a morte, como na 11ª parte do poema (O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE – CABRAL, 2003, p. 192-193). Esta é, provavelmente, a seqüência em que se dá o ponto alto do sofrimento de Severino. Ele não esperava que sua vida mudasse muito com sua chegada ao Recife, tinha consciência de que continuaria trabalhando muito, com ferramentas semelhantes (senão iguais) às que usava na sua terra natal. Mas acreditava que seu trabalho ali poderia lhe trazer mais água, comida e roupas para o corpo magro. Então percebe que, na verdade, era seu próprio enterro que estava seguindo. A morte não era sua companheira de viagem, e sim sua anfitriã. Seu último desejo é que seu enterro seja, como o descrito pelos coveiros, no rio: “(...) caixão macio de lama, / mortalha macia e líquida, / coroas de baronesa / junto com flores de aninga, / e aquele acompanhamento / de água que sempre desfila / (que o rio, aqui no Recife, / não seca, vai toda a vida).”

Na parte seguinte, o retirante trava diálogo com um mestre carpina, Seu José, morador de um dos mocambos que existem entre o cais e o rio. Os dois conversam as vantagens da vida e da morte: Severino lhe explica que a vida ali em Recife não é melhor do que a que levava na sua terra. Fica clara a sua intenção de suicídio. Mas os dois são interrompidos por uma mulher que vem avisar Seu José que seu filho nascera.

Com o nascimento da criança, a paisagem do mocambo fica mais bonita, menos severina, até o céu fica estrelado. Vários amigos, vizinhos e duas ciganas chegam para contemplar o recém-nascido e dar-lhe presentes. Presentes estes todos simples, humildes, pobres: um boneco de barro, água da bica, um canário, caranguejos pescados no mangue, papel de jornal para lhe servir de cobertor, entre outros. As duas ciganas falam qual será o futuro do bebê: a primeira enxerga que ele será como os homens daquela terra, trabalhará por ali mesmo e terá de lutar para sobreviver; a segunda enxerga o recém-nascido trabalhando numa fábrica, o que poderá lhe dar uma casa longe dos mangues do Capibaribe. Então os amigos exaltam a beleza do menino: apesar de ser magro como os outros ali nascidos, sua beleza é reforçada pela curiosidade que tem da vida.

A cena do nascimento é bonita e otimista (excetuando a fala da primeira cigana), diferente do resto do poema, que possui um tom negativo com relação à vida. Mas a cena final deixa dúvidas (O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA – CABRAL, 2003, p. 201-202), já que a fala do mestre carpina pode ser lida como otimista, mas ficamos sem saber se seu discurso tocou Severino a ponto dele desistir da idéia do suicídio. O próprio João Cabral confessou que queria o final ambíguo, mas deu autorização a Roberto Freire quando este montou a peça, com música de Chico Buarque, para dividir o monólogo final em um diálogo, em que o retirante falava a última estrofe.

 

IV. Morte e Vida Severina e o super-regionalismo

            Em entrevista ainda inédita a Luís Augusto Fischer, Antonio Candido faz uma breve revisão do papel que o regionalismo desempenhou na literatura brasileira (a resposta é um pouco longa, mas vale a pena sua reprodução):

A questão tem vários aspectos, e já escrevi sobre alguns deles. Esquematicamente, seria possível, forçando um pouco, identificar três modalidades sucessivas no regionalismo brasileiro. Primeira, a de predomínio da incorporação; segunda, a de predomínio da exclusão; terceira, a de predomínio da sublimação.

No tempo do Império, ele foi um instrumento de revelação do Brasil aos brasileiros, incorporando à experiência do leitor das cidades o espetáculo da vida nas regiões afastadas. Penso em autores como José de Alencar e Bernardo Guimarães. O ânimo de integração por parte deles pode ser verificado na maneira de escrever: ambos praticavam uma escrita ajustada à norma culta, com o mínimo indispensável de modismos regionais, o que aproximava o homem rural do homem urbano, mostrando a unidade sob a diferença.

No tempo da Primeira República e do incremento da urbanização o regionalismo foi, ao contrário, fator de afastamento e mesmo estranhamento entre ambos, como se a intenção dos autores fosse marcar a diferença, acentuando o exotismo do homem rural e, assim, marcando a condição superior do homem urbano. Foi um processo de folclorização do regionalismo, visível na diferença entre o discurso civilizado do autor e o discurso rústico, quase caricatural dos personagens, excluídos de certo modo da norma culta. Era o tempo dos detestáveis “ocê tá bão?” e da redução reificadora do campesino a elemento pitoresco da paisagem. Penso em autores como o Coelho Neto de Sertão.

Depois de 1930 houve uma fecundação do regionalismo em duas direções, que ocorreram sucessivamente. A primeira foi devida sobretudo a ficcionistas do Nordeste e consistiu em superar a alienação folclórica por meio da consciência social, que problematizou a vida rural e, por outro lado, procurou aproximar o homem rústico do homem da cidade, invertendo de certo modo a natureza do discurso da fase anterior, ao tentar uma injeção equilibrada da simplicidade coloquial na norma culta. A segunda direção, que denominei “super-regionalismo” (pensando em “surrealismo”, ou “super-realismo”) foi uma literatura de sublimação, na medida em que incorporou o experimentalismo modernista. Um autor como Guimarães Rosa privilegiou a função poética da linguagem e viu a sua tarefa como invenção, não reprodução pitoresca. Coisa paralela se deu em outras literaturas da América Latina, o que levou o saudoso crítico uruguaio Angel Rama a apontar a inesperada originalidade dessa solução paradoxal, consistente em fundir as práticas de vanguarda (que encaram o presente e são esteticamente revolucionárias) com os temas regionais (que tendem ao realismo e a uma preservação conservadora do passado).

A tipologia acima é aproximativa e visa sobretudo às predominâncias, mas é preciso lembrar que as três tendências podem ocorrer em grau maior ou menor. Pensemos, por exemplo, que na fase dominada pelo pitoresco alienante Simões Lopes Neto prenuncia a etapa posterior graças à sua inventividade peculiar (FISCHER, 2004).

 

            Morte e Vida Severina está situada na modalidade do regionalismo onde ocorre o predomínio da sublimação, segundo Candido. João Cabral é da primeira geração de escritores que aproveitou as conquistas modernistas para ampliar os horizontes literários brasileiros. É verdade que o poema aqui analisado pouco se vale das inovações vanguardistas, se pensarmos no tratamento dado à linguagem e à construção do poema em comparação a outras obras modernistas. Mas há pontos que tornam o poema um marco da poesia e da literatura brasileiras e que garantem a sua inclusão ao lado da obra de Guimarães Rosa:

1) como apontou Candido, essa geração super-regionalista fundiu as práticas de vanguarda com os temas regionais: poucas vezes o regionalismo tratou com tanta atenção e detalhamento a vida do homem nordestino, trabalhador, retirante, englobando aí os assuntos que mais lhe atormentam, como a morte e a incerteza do dia seguinte. É claro que outras gerações de autores regionalistas trataram dos hábitos do homem do campo, mas a intenção era observar o homem como um objeto da paisagem, algo pitoresco. Mesmo as obras de José de Alencar e Bernardo Guimarães, lidas hoje, não fogem desse paradigma;

2) Morte e Vida Severina retrata a vida do retirante como poucas obras fizeram, talvez as únicas que podem ser citadas são O Quinze, de Raquel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Mas elas possuem inúmeras diferenças com a obra cabralina e estavam preocupadas demais com os problemas sociais que apresentaram;

3) é verdade, porém, que Morte e Vida Severina tem um forte apelo social, mostrando o drama de um homem que não tem trabalho fixo e (pior) fica vagando pelo sertão em busca de uma tarefa que não aparece. Sem retratar especificamente o drama da seca, sabemos que ele está lá e que isso é determinante na vida das personagens;

4) Mas o grande desafio do retirante é o confronto que trava, ao longo do poema, com a morte. Ousando um pouco, ela pode ser encarada como uma personagem, adquirindo um tratamento mágico, já que acompanha Severino durante toda sua jornada e não lhe deixa esquecer sua condição e seu destino fatal.

São elementos que certamente influenciaram João Cabral na construção do texto. O poeta viveu o que Antonio Candido denominou de consciência dilacerada do atraso, localizada em torno da metade do século XX. De um lado, o Brasil cresce num ritmo vertiginoso, com fábricas e indústrias instalando-se por todo país, com as grandes cidades recebendo o título de metrópoles, com a urbanização, enfim, tomando conta de áreas campestres (o que desencadeou o êxodo rural). Mas de outro lado, temos ainda um Brasil arcaico, que não tem luz elétrica – e em muitos casos, nem sabe o que é isso –, uma região onde não existem leis e a ordem é mantida por facões e espingardas, um local cujo único futuro legado à sua gente é a certeza da morte em torno do quarenta anos, no máximo.

O dilaceramento da consciência de atraso em Morte e Vida Severina se dá de dentro para fora, enquanto em Grande sertão, veredas ele ocorre de fora para dentro. Explico-me: na obra de João Cabral, ocorre um choque do retirante com a cidade grande, quando ele percebe que nem ali conseguiria ter uma vida melhor, nem ali a morte deixava de atacar e a velhice conseguiria chegar. Já na obra de Guimarães Rosa, com Riobaldo contando as aventuras de sua vida a um interlocutor urbano, cujas reações só conseguimos perceber através da fala do narrador, o choque ocorre por parte desse homem da cidade com o relato do velho jagunço. As obras podem ser encaradas como complementares, já que os dois lados não acreditam no que estão conhecendo: de um lado, a cidade que não traz nenhuma garantia de qualidade de vida; de outro, o interior do Brasil que parece ter parado no tempo lá pela época de Cabral. O Pedro, não o João.

 

Resumo: o presente ensaio procura analisar o poema/auto Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, à luz da visão de Antonio Candido a respeito do regionalismo literário produzido no Brasil na metade do século XX.

Palavras-chave: Antonio Candido, João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, regionalismo, super-regionalismo, Literatura e Subdesenvolvimento.

 

Abstract: the present essay intends to analyze João Cabral de Melo Netos’s poem, Morte e Vida Severina, under Antonio Candido’s perspective concerning the literary regionalism produced in Brazil during the half of the twentieth century.

Keywords: Antonio Candido, João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, regionalism, super-regionalism, Literature and Underdevelopment.

 

 

Bibliografia:

ARAÚJO, Homero José Vizeu. O poema no sistema – A peculiaridade do antilírico João Cabral na poesia brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

ATHAYDE, Félix de. Idéias Fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Fundação Biblioteca Nacional / Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.

CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. Org. Vinicius Dantas. São Paulo: Editora 34, 2002.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 3ª edição. São Paulo: Ática, 2000.

FISCHER, Luís Augusto. Entrevista com Antonio Candido. Inédita. Porto Alegre: 2004.

MELO NETO, João Cabral. Obra Completa. 4ª reimpressão da 1ª edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

MELO NETO, João Cabral. Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes. 4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM, 1979.


 

* Mestrando em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[1] Apesar de idealizado como um auto, Morte e Vida Severina tem sido encarado como um poema. Mais do que isso: há ali resquícios da épica, como comentado mais adiante.

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