“TUDO TINHA DE SEMELHAR UM SOCIAL”. PERSPECTIVA CRÍTICA E RETÓRICA JUSTIFICADORA NO NARRADOR DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Danielle Corpas*
Estudos publicados entre 1956 (ano de lançamento do Grande sertão: veredas) e o início dos anos 1970 deram os primeiros passos para a compreensão do papel que desempenham no romance de Guimarães Rosa as particularidades de processos sociais e políticos vividos no Brasil. Seus resultados foram praticamente deixados de lado por mais ou menos duas décadas, enquanto durou, primeiro, a onda de formalismo estruturalista (em nossa crítica de um modo geral) e, depois, o ápice da empolgação com chaves de leitura filosófico-metafísicas ou esotéricas, que contaminou a maioria dos estudos rosianos na década de 1980. Apenas a partir do início dos anos 1990, o tópico das relações Grande sertão-Brasil foi pouco a pouco ganhando destaque novamente na pauta de debates, ressurgindo com vigor em alguns ensaios.
O grande marco nesse campo tinha sido a tese de Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso, publicada em 1972. Contando com resultados dos trabalhos de Manuel Cavalcanti Proença (Trilhas do grande sertão. Rio de Janeiro: MEC, 1958) e de Antonio Candido (O homem dos avessos. In: Tese e antítese. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964; Jagunços mineiros: de Claudio a Guimarães Rosa. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970 – ensaio que corresponde à redação de aulas ministradas em 1966), Walnice Galvão soube distinguir e coadunar a experiência material dos jagunços reais (condições de subsistência, costumes, ética) e o imaginário sertanejo de matriz medieval convocados no livro. Articulando isso à análise do discurso dos personagens e do narrador, mapeou o solo histórico de uma narrativa em que as referências temporais são programaticamente imprecisas.
Mas, muito mais importante que as datas, jamais claras, e mérito de grande escritor, é a encarnação em personagens de romance do próprio processo político de consolidação nacional levado a cabo em sua última parte pela República Velha, e de que a ditadura Vargas marca o termo.[1]
As formas do falso foi o primeiro estudo que equacionou uma ampla gama de aspectos do romance (comportamento do narrador, enredo, linguagem, personagens), realidade sertaneja e visão geral da história brasileira. A impressão que se tem, a julgar pela maioria dos ensaios que o retomaram vinte anos depois, é que seus avanços mais importantes resumem-se à eficácia de um procedimento interpretativo: a análise de personagens e passagens da narrativa como alegorias de circunstâncias ou processos sócio-políticos.
Um bom exemplo desse procedimento é a interpretação da figura de Zé Bebelo, ponto da tese sempre relembrado e reiterado:
Zé Bebelo desempenha o papel histórico do princípio centralizador e republicano, em oposição ao princípio federativo e localista representado pelos coronéis – Joca Ramiro e seus pares – com seus bandos privados.
Zé Bebelo é o homem da Ordem (...) e do Progresso (...). Embora pense em seus interesses particulares e tenha um olho no Congresso, fala sempre nos interesses da nação (...). E é a única personagem deste livro capaz de raciocinar não em termos de tradição e de alianças privadas de dominação, mas em termos de república e de canais democráticos. Após a primeira vitória, no início de sua campanha, faz reunir “os municipais do lugar” (...).
Os atributos pessoais de Zé Bebelo representam a modernidade, no contexto histórico da República Velha do romance; são eles a inteligência, o desejo de instruir-se e a visão nacional. Mas, também ele ambíguo, comporta forte contingente de atributos pessoais tradicionais: a valentia em primeiro lugar, a sede de poder pessoal, a utilização dos recursos habituais para cumprir seus intentos – usa jagunços para acabar com jagunços. Rende-se afinal à lei do sertão, assumindo a chefia do próprio bando que combatera; e isso, para levar avante uma missão de vingança particular sem qualquer propósito “nacional”. Perdeu a parada histórica; só lhe restava ou morrer pelas armas _ à maneira tradicional _ ou degradar-se em negociante, que é o que lhe acontece; ao menos, este fim implica a uma etapa histórica mais avançada..[2]
Esse modelo de interpretação praticado em As formas do falso ficou como achado determinante para a crítica posterior. A maior parte dos textos críticos que reinauguraram o interesse pelo que há de vida brasileira no Grande sertão: veredas pauta-se por correlações como essa: de um lado, características e papéis desempenhados por determinados personagens, ou episódios, ou procedimentos narrativos na história relatada por Riobaldo; de outro lado, traços identificados como definidores e problemáticos da modernidade no país. De modo geral, cada um dos novos intérpretes arregimenta seu arsenal particular de referências da filosofia e/ou teoria política européias, pinçando daí formulações que remetem a algum aspecto da experiência moderna para contrapô-las ao texto ficcional. Com isso, embora certas nuances diferenciem as reflexões elaboradas a partir dos elementos do romance, a maioria dos estudos se unifica no que parece ser uma das tendências na recepção recente do Grande sertão: veredas: opera-se eminentemente pelo enfoque de personagens e cenas como alegorias, tomando como recurso de mediação entre a alegorização romanesca e a experiência brasileira categorias teóricas alheias às especificidades locais _ o que faz com que sobressaiam nessas interpretações, de modo não refletido, mais as linhas genéricas que a vida no Brasil tem em comum com a história das modernas sociedades ocidentais do que seus traços particulares _, e conclui-se que a figuração literária sugere alguma espécie de solução para os impasses apontados na história do país.[3]
Um outro viés para a compreensão das relações Grande sertão: veredas-Brasil foi sugerido por Antonio Candido, já na resenha com que saudou o lançamento do livro, em 1956. No pequeno texto, escrito sob o impacto do primeiro contato com o romance, estão registradas pelo menos duas percepções cuja potência crítica ainda não foi devidamente aproveitada.
A primeira tem a ver com aquilo que Candido considerou a “característica fundamental” da obra: a “transcendência do regional”. Na sua avaliação inicial, é o inventivo “aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja” que faz do Grande sertão: veredas um dos “raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em substância universal”. Com sua visão historiográfica focada pelo prisma da dialética local-universal, Candido situa rapidamente o romance na tradição literária do país, identificando um movimento de aproximação e distanciamento com relação ao documentarismo arrogante da “ficção regionalística”, de um lado, e, de outro, o tom “voluntariamente ingênuo” de obras modernistas como Macunaíma. Essas balizas postas em dois extremos da resenha – a comparação com o regionalismo logo após as observações iniciais, a menção a Mário de Andrade nas últimas linhas – são, elas mesmas, próximas (no empenho em incorporar vozes populares estranhas à expressão literária, culta, urbana, litorânea) e distantes (sobretudo nos procedimentos estéticos: realismo regionalístico x experimentação estética dos primeiros modernistas). É como síntese desses extremos em comunicação que Candido explica o procedimento de Guimarães Rosa com a matéria sertaneja: misto de “anotação e construção”. A partir de uma analogia com a estética musical de compositores como Bela Bartók (que “infundiram o espírito do ritmo e das melodias populares numa obra da mais requintada fatura”), assinala que o resultado de alto nível literário alcançado pela inventividade do escritor é tributário da descoberta das “leis mentais e sociais do mundo que descreve”.[4]
Aí estão pistas valiosas para o entendimento das vinculações entre o universo autônomo que é o sertão-mundo de Guimarães Rosa e “o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma”. Logo no ano seguinte, no ensaio O homem dos avessos, Candido retomou a analogia com a música de Bartók, para caracterizar o efeito estilístico alcançado pela peculiar articulação de “realidades expressionais e humanas” no Grande sertão: veredas – a “impressão de que o compositor se havia posto no nascedouro da inspiração do povo, para abrir um caminho que permite chegar à expressão universal”.[5] Trata-se de resultado muito significativo para uma literatura que historicamente se confronta com o problema de assimilar a realidade singular do vasto país inculto, o que obrigatoriamente passa pela incorporação literária de vozes alheias à cultura livresca, alijadas dela. A questão é cara a Antonio Candido e reaparece em dois de seus ensaios da década de 1970 nos quais menciona o Grande sertão: veredas, “Literatura e subdesenvolvimento” e “A nova narrativa.” Nesses escritos, porém, a ênfase recai sobre a transcendência do regional como superação do caráter exótico conferido à experiência sertaneja pelas representações de viés realista, o tópico da “inspiração do povo” não é trabalhado detalhadamente.
Veja-se a avaliação dos resultados da transcendência do regional para a literatura brasileira em “A nova narrativa”, texto apresentado pela primeira vez em 1979. Candido reputa à obra de Rosa o mérito de “fazer a síntese final das obsessões constitutivas da nossa ficção: a sede do particular como justificativa e como identificação; o desejo do geral como aspiração ao mundo dos valores inteligíveis à comunidade dos homens”.[6] A seu ver, Guimarães Rosa operou uma “explosão transfiguradora do regionalismo”, tomando-o por dentro, incorporando o “pitoresco regional mais completo e meticuloso, e assim conseguindo anulá-lo como particularidade, para transformá-lo em valor de todos” – o que constitui, para o crítico, uma “etapa mais arrojada” na execução do projeto machadiano explicitado em “Instinto de Nacionalidade.” Candido lembra que Machado de Assis recomendou resistência à “tentação do exotismo (quase irresistível no seu tempo)” para que se elaborasse literatura “de grande significado”; Rosa tentou atingir esse resultado sem contornar o perigo, fazendo do mundo rústico do sertão “matéria, não de regionalismo, mas de ficção pluridimensional, acima do seu ponto de partida contingente, (...) mostrando como é possível superar o realismo para intensificar o senso do real”.[7] Alguns anos antes, em “Literatura e subdesenvolvimento” (cuja versão original surgiu em 1970), Antonio Candido já havia inscrito na categoria do “super-regionalismo” a “obra revolucionária de Guimarães Rosa, solidamente plantada no que poderia chamar de a universalidade da região”. Situou então o autor mineiro numa geração de escritores brasileiros e hispano-americanos que
corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na referência a uma visão empírica do mundo; naturalismo que foi a tendência estética peculiar a uma época em que triunfava a mentalidade burguesa e correspondia à consolidação das nossas literaturas.[8]
Na amplitude panorâmica desses dois ensaios da década de 1970, originalmente destinados a leitores estrangeiros _ o que, por si só, força à restrição dos aspectos abordados _, é ressaltada a mudança de “consciência” implicada na incorporação transfiguradora do documental. Embora permanecendo como questão de fundo, as decorrências da participação de vozes populares no texto literário, sugerida na resenha de 1956 e no ensaio do ano seguinte, não são evidenciadas nessas conclusões do crítico. Convém mantê-las na pauta das discussões necessárias, conjugadas aos sentidos implicados nas idéias de “super-”, “superação”. Até onde significa êxito provocar a impressão de que a “inspiração do povo” está contida na obra erudita? Em que medida a excelência estética nessa simulação representa soluções para os impasses, que tanto mobilizaram os escritores brasileiros, em torno da experiência dos sem-literatura? Qual o significado, do ponto de vista dos processos sociais e políticos vividos no Brasil, do investimento no efeito ilusionista, e que novos problemas (ou novas configurações de velhos problemas) ele aporta?
A segunda percepção de maior interesse registrada por Antonio Candido na resenha sobre o Grande sertão: veredas é um bom ponto de partida para se pensar essas e outras questões. Com alguma hesitação, o resenhista indica o narrador como elemento seminal no romance: “o miolo nutritivo é – não sei se diga – a expressão ou a personalidade do narrador”.[9] Essa é mais uma passagem de sua apreciação inicial do livro que Candido retomou em O homem dos avessos, onde observa que o tonus singular da narrativa se deve “à crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos, traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e reelaborados a cada página em torno das obsessões fundamentais”.[10] Até aí, porém, o crítico não tinha desenvolvido efetivamente uma hipótese que lançasse luz sobre o modo como a expressão ou a personalidade do narrador interfere nos diversos planos da obra, o que acontece apenas em 1966, com o estudo Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa.
Após detalhada análise diacrônica da figuração do “valentão armado” na literatura mineira desde o século XVIII, Candido indica, numa só tacada, os procedimentos que viabilizam a transcendência do regional no Grande sertão: veredas e a “condição formal básica” do romance – identificada no modo como o narrador conduz a apresentação da matéria. Essas formulações, que o autor desenvolve na seqüência do ensaio, são introduzidas no seguinte trecho:
(...) Guimarães Rosa tomou um tipo humano tradicional em nossa ficção e, desbastando os seus elementos contingentes, transportou-o, além do documento, até à esfera onde os tipos literários passam a representar os problemas comuns da nossa humanidade, desprendendo-se do molde histórico e social de que partiram.
Em Grande sertão: veredas, esta operação de alta estética foi possível devido a certos procedimentos ligados ao foco narrativo, que por sua vez comanda uma expressividade máxima da linguagem utilizada. (...) No espaço fechado do sertão a vida ganha aspectos projetados pela maneira de ser de Riobaldo, que descobre ou redescobre o mundo em função da sua angústia e do seu dilaceramento. A narrativa na primeira pessoa favorece a solidariedade entre ambos, ao estabelecer uma paridade entre o dilaceramento do narrador e o dilaceramento do mundo, que se condicionam e se reforçam mutuamente. O narrador tinge a narrativa por uma constante redução ao presente, fazendo com que o passado seja aferido incessantemente à cor da sua angústia de agora (...). O mundo é visto numa totalidade impressionante, na qual ser jagunço foi a condição para compreender os vários lados da vida, vistos agora por quem foi jagunço. Primeira pessoa conduzindo a uma presentificação do passado, a uma simultaneidade temporal que aprofunda o significado de cada coisa –, parece a condição formal básica de Grande sertão: veredas.
Do ângulo do estilo, ser jagunço e ver como jagunço constitui portanto uma espécie de subterfúgio, ou de malícia do romancista. Subterfúgio para esclarecer o mundo brutal do sertão através da consciência dos próprios agentes da brutalidade; malícia que estabelece um compromisso e quase uma cumplicidade, segundo a qual o leitor esposa a visão do jagunço (...).[11]
Conjugando essa análise às percepções já destacadas nos textos de Antonio Candido de 1956 e de 1957, temos, no mínimo, o seguinte: o miolo nutritivo do romance é a personalidade do narrador, do ex-jagunço que apresenta o sertão percorrido no passado como projeção de sua maneira de ser no presente; a narrativa em primeira pessoa, na qual o passado é filtrado pelo presente, transcende o depoimento documentário por exprimir as leis mentais e sociais do universo habitado pelos jagunços. Ficam mais algumas questões: quais aspectos da atitude do narrador manifestam quais leis mentais e sociais? O que se pode deduzir a respeito da vida no mundo-sertão colocando-se a matéria narrada em segundo plano e trazendo para o centro da reflexão a expressão, ou a personalidade, do narrador? Qual o peso de quais particularidades da modernização à brasileira na constituição desse elemento estruturante do romance?
Dá para ter idéia do alcance e da complexidade da reflexão a que convidam as formulações de Candido, observando-se as linhas gerais de uma faceta bem evidente no narrador de Grande sertão: veredas – a propensão para a simulação.
Riobaldo descreve a si mesmo, logo no início do livro, como “sofismado de ladino”.[12] A expressão aparece em uma passagem na qual sumariza a instrução formal recebida na adolescência, e deixa implícita em seus termos a consciência da habilidade para direcionar o discurso em proveito de uma causa – o que parece confirmado pelas preferências de leitura listadas logo em seguida:
Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos – missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo.” (p. 7)
De fato, o narrador desse romance demonstra muita esperteza no modo como conduz o relato. Tem a intenção confessa de obter do outro uma avaliação de sua história que o ajude a solucionar as dúvidas que o consomem, sobretudo as dúvidas referentes à correção de seus atos. Ao longo da narração, desculpa-se várias vezes pela incapacidade de contar bem ou de refletir sobre os fatos de que participou. O que elogia, em contraste com a limitação de seus conhecimentos de sertanejo pouco instruído, é o saber letrado do ouvinte urbano culto, ao qual atribui valor judicativo em relação ao que narra. Não sabemos o que diz esse visitante hospedado na fazenda do ex-jagunço, cujas falas são eclipsadas no texto – apenas, pelo que se pode deduzir dos resquícios de suas intervenções no discurso de Riobaldo, parece prevalecer a concordância com as suposições deste. Na última página do livro, tudo indica que o objetivo é atingido: o interlocutor deve ter corroborado a hipótese acerca da questão para a qual o narrador faz convergir toda a narrativa, a pergunta que atravessa o romance de ponta a ponta – se o Diabo existe ou não: “Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe.” (p. 538).
Com esperteza de padre engabelando índio, o narrador cultiva tenazmente a amabilidade de seu interlocutor. Walnice Nogueira Galvão identificou três estratégias de que se vale para isso: o “recurso de louvar o preparo do outro”, a “sonsice cabocla que ‘esconde o leite’” e a “faceirice do bom narrador”. [13] A primeira, mencionada acima, é bem explícita nos reiterados elogios à capacidade do ouvinte “nascido em cidades, (...) instruído e inteligente” (p. 358), com “carta de doutor” (p. 17). A segunda é mais sub-reptícia, subliminar. Transparece, por exemplo, no emprego da afirmação “o senhor sabe” (e suas variantes): o que parece expressão de idiossincrasia lingüística assume caráter mais significativo na recorrência com que se justapõe a circunstâncias da experiência sertaneja que o interlocutor urbano obviamente desconhece, não sabe.
O senhor sabe: o perigo que é viver... (p. 11)
Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. (p. 7)
Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. (p. 134)
O sertão: o senhor sabe. (p. 343)
A manifestação cabal de sonsice do narrador é a omissão do fato de que Diadorim é mulher, justificada como necessária para que o interlocutor sinta a dimensão de um problema pungente, conhecendo a verdade apenas na passagem do relato correspondente ao momento vivido. Nesse caso, a sonsice cabocla está aliada à “faceirice do bom narrador, que, não contente com bem narrar, também teoriza a respeito”.[14] O relato de Riobaldo é intercalado por inúmeros trechos nos quais o sertanejo comenta as dificuldades de trazer o passado para o presente, reflexões sobre o trabalho de narração muito mais próprias do narrador de romance moderno que do narrador épico oral que parece a matriz evidente no Grande sertão: veredas (o sujeito velho, sedentário e depositário de conhecimentos extraídos de experiências passadas). A faceirice desse narrador de romance inclui o “fetiche do texto”, erigido como “espaço privilegiado, lugar da clareza, da coerência, de tudo aquilo a que a razão aspira”.[15]
Louvor à instrução, sonsice cabocla, faceirice de bom narrador, tudo isso colabora para a cooptação do interlocutor urbano culto que é o leitor o Grande sertão: veredas. São fatores que amaciam a brutalidade dos fatos narrados, forjam um filtro que os torna palatáveis à sensibilidade esclarecida, pela familiaridade de que se reveste a maneira de contar. Assim, fica mais fácil compreender as atitudes do jagunço Riobaldo, a ponto de eximi-lo dos erros cometidos, que passam a ser encarados da perspectiva de uma travessia rumo ao esclarecimento.[16] Saímos do romance satisfeitos com as vitórias do protagonista, solidários com seus sofrimentos, compreensivos com suas falhas. Não salta tanto aos olhos o lado “demoníaco” de um narrador que volta e meia nos ludibria, ressaltando o que há de melhor no modo controverso como se conduziu em seu passado.
O trecho da narrativa de onde provém o título deste ensaio ilustra bem o recurso à simulação que responde, ao menos em parte, pelo efeito positivo do relato sobre o leitor.
Na passagem em que conta sua ascensão de jagunço a chefe do bando, Riobaldo comenta: “Aí eu mandava. Aí eu estava livre, a limpo de meus tristes passados. Aí eu desfechava. Sinal como que me dessem essas terras todas dos Gerais, pertencentes” (p. 386-387). Os “tristes passados” a que se refere correspondem às três diferentes condições de desprovimento, subjugação, subalternidade que conhecera: a infância pobre junto à mãe, que ao morrer só lhe deixa a memória do afeto e uma trouxa com cacarecos; a adolescência de filho bastardo, agregado mantido às custas do favor de um fazendeiro – o suposto padrinho (na verdade, pai) Selorico Mendes; e a recente atuação como raso jagunço, peão empregado em disputas cujas finalidades custa a compreender, sujeito a matar ou morrer na defesa de interesses alheios. Ao tornar-se chefe de jagunços, Riobaldo se vê livre desses desconfortos de quem não tem posses. Pronuncia então uma frase que sintetiza a sensação deslumbrada de bem-estar com a nova posição, o poder recém-conquistado: “Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo” (p. 387). A primeira providência que toma como líder é convocar todos para a comemoração da posse. Poderia ter optado por levar seus comandados para se divertir invadindo algum povoado próximo, saqueando casas e comércio, estuprando e atirando a esmo, como é comum no sistema jagunço. Pensa, porém, em fazer uma festa, à moda das confraternizações familiares em cidadezinhas e fazendas do sertão. Então, manda que seus homens tragam a gente dos arredores para participar da celebração.
Naquele intervalo em meio à sucessão de embates sangrentos entre grupos rivais, Riobaldo imaginou um momento de bem-estar comum. “Tudo tinha de semelhar um social” (p. 390). Porém, ao relatar o episódio, no modo como enuncia essa intenção, demonstra consciência de que aquilo não seria mais que encenação de um tipo de convívio que só poderia ser semelhado no contexto do sistema jagunço, onde impera a lei do mais forte. “Ao pois, quem era que ordenava, que se prazia e mandava? Eu, senhor, eu (...)” (p. 390). Rapidamente desiste da idéia da festa: “Ah, não. Festa? Eu já estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela porção de homens, e formar todos de guerreiros.” (p. 390-391). Seus comandados haviam trazido, entre outros, uns moradores de Sucruiú, mal recuperados de um surto de bexiga. O narrador comenta: “Aquela gente depunha que tão aturada de todas as pobrezas e desgraças. Haviam de vir, junto, à mansa força. Isso era perversidades? Mais longe de mim – que eu pretendia era retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias” (p. 391). Vieram também os catrumanos do arremedo de povoado chamado Pubo. São esses, no romance, a personificação mais cabal da miséria, pessoas desprovidas de tudo – mais grunhiam que falavam, suas roupas eram trapos toscos, um deles portava um porrete, imagem de homem pré-histórico. “Homens sujos de suas peles e trabalhos” (p. 391). Para vencer sua hesitação em integrar o bando – “... Quem é que vai tomar conta das famílias da gente, nesse mundão de ausências? Quem cuida das rocinhas nossas, em trabalhar para o sustento das pessoas de obrigação?...” (p. 392) –, o novo chefe jagunço promete: “Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda valia...” (p. 393). Quase todos aprovam a proposta, para regozijo de Riobaldo: “Fiz gesto, com meu contentamento. (...) Eu ia transformar os regimentos desses foros.” (p. 393).
Chama a atenção, nessa e em outras passagens do romance, o contentamento do herói de Guimarães Rosa com circunstâncias em que participa da simulação de uma ordem de convívio que garanta os direitos de cada um, semelhante a um ideal de civilidade moderna. Chama a atenção o esforço do narrador em demonstrar esse tipo de compromisso, sugerido no modo como narra sua participação nos eventos e nas considerações paralelas à narração. Ao mesmo tempo, é patente a fragilidade de tal comprometimento, na facilidade com que Riobaldo abriu mão dele no passado e no empenho com que, no relato, procura justificar suas deserções.
A narração de Riobaldo é toda perpassada por inquietações de ordem moral. Sua culpa por ter buscado o caminho do Mal (o pacto com o Demônio) e as várias dúvidas que expõe ao interlocutor quanto à correção de condutas individuais no espaço coletivo parecem exprimir empenho em prol de alguma espécie de Bem comum. A trajetória do herói jagunço, no entanto, culmina no relativo apaziguamento proporcionado por uma solução individualista: a ascensão social confirmada pelo casamento com Otacília (filha de fazendeiro que conhecera em suas andanças) permite ao ex-jagunço, entre outras coisas, ficar de range rede na velhice para refletir sobre o passado. Esse desfecho já era almejado pelo jovem Riobaldo, antes de se tornar jagunço. Quando foge da fazenda de Selorico Mendes, numa revolta confusa de filho que se descobre bastardo, vai para o arraial onde havia estudado e o primeiro lugar em que procura abrigo é a casa da namoradinha Rosa’uarda, filha de Assis Wababa, o dono da venda. Ali teve regozijante acolhida e ficou sabendo:
que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor. (...) Me alembro: eu entrei no que imaginei – na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade. (p. 105-106)
Riobaldo é um narrador muito perspicaz. E, até certo ponto, muito crítico, capaz de evidenciar, no relato de falas e atitudes, intenções subliminares. Revela para seu interlocutor, por exemplo, os objetivos eleitoreiros do discurso “muito nacional” de Zé Bebelo e as estratégias do latifundiário Seo Habão para conseguir mão-de-obra barata. Mas quando se trata de reconhecer os interesses escusos nas próprias atitudes, não é tão incisivo – pelo contrário, sempre que pode, aferra-se a ilusõezinhas confortáveis, como a lógica cármica do kardecismo de seu compadre Quelemém. Sobretudo na parte final do livro, quando narra suas ações como chefe do bando de jagunços, seu ímpeto crítico parece ter menos fôlego. O relato dos fatos toma um ritmo mais acelerado, as reflexões sobre cada ato se tornam mais breves, logo ocorre um novo acontecimento digno de nota. As decisões extremamente arbitrárias e demagógicas do chefe Urutu Branco são contempladas com olhar mais complacente, menos questionador. Ganha mais força o componente de auto-justificação de um discurso que parece comprometido com uma exigência de Bem ideal, universal, ao mesmo tempo que se vale da profissão desse compromisso para respaldar uma ação que, ao fim e ao cabo, é focada no proveito próprio, no êxito individual. Nas palavras acres de José Hildebrando Dacanal:
Riobaldo, socialmente, é um jagunço calculista e arrivista, flor de reacionarismo, que consegue chegar a grande fazendeiro, colocando-se ao final em uma posição digna do mais puro filisteu (...) renegando suas origens, satisfeito por ter sido o instrumento de destruição de seus próprios iguais, de seus companheiros do passado. Socialmente, o herói de Guimarães Rosa é um inocente útil. Talvez mais útil do que inocente...![17]
Os problemas graves da vida no mundo-sertão, Riobaldo os “superou”, numa transcendência individualista – pela vida privada, pela religiosidade e, no presente da narrativa, pela arte de narrar com solércias de jagunço experiente: “Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na idéia” (p. 139). A fusão entre perspectiva crítica e retórica justificadora no narrador de Grande sertão: veredas manifesta uma lei mental e social vigente no Brasil na época em que se passa a história, na época em que Guimarães Rosa escreveu o romance e até agora: salve-se quem puder.
RESUMO: Desde a década de 1990, os estudos sobre Grande sertão: veredas que levam em conta a história social e política brasileira partem eminentemente da análise de personagens e cenas do romance como alegorias de processos vividos no país. Este artigo retoma as formulações de Antonio Candido sobre o livro para ressaltar a potência crítica de um viés interpretativo que, trazendo para o centro da reflexão a expressão do narrador, põe em discussão leis mentais e sociais que tiveram e ainda têm vigor no Brasil.
Palavras-chave: Grande sertão: veredas; Antonio Candido; crítica e sociedade.
Abstract: Since the 1990’s, the start point of the studies on Grande sertão veredas [The Devil to Pay in Backlands] that consider social and politic Brazilian history, has been the analysis of the novel’s personages and scenes as allegories of processes occured in the country. This article retakes Antonio Candido’s comments on the book, to emphasize the critical potential of an interpretative orientation that, bringing to the center of the reflection the expression of the narrator, discuss mental and social rules that was and are still valid in Brazil.
Key-words: Grande sertão: veredas; Antonio Candido; critic and society.
[1] GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso – um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão: veredas. 2a ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 64.
[2] Idem, p. 64-65. As reticências entre parênteses correspondem a trechos do Grande sertão: veredas que servem de respaldo às afirmações da autora.
[3] Vejam-se os ensaios O pacto no Grande sertão – esoterismo ou lei fundadora?, de Willi Bolle (Revista USP, nº 36. São Paulo, 1997-98. p. 26-44) e Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande sertão: veredas, de Heloísa Starling (Rio de Janeiro, Revam, 1999). Numa outra linha, Davi Arrigucci Jr. (O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. Novos estudos Cebrap, no 40, São Paulo, Cebrap, nov. 1994. p. 7-29) investe na análise da configuração formal que singulariza o romance, mas também tende a abordá-la mais do ponto de vista da modernidade ocidental do que da nossa modernidade periférica – e também conclui que a figuração ficcional encerra uma solução “na medida do possível”. Bem original, nesse sentido, é o trabalho de José Antonio Pasta Jr. (Temas do Grande sertão e do Brasil. Novos Estudos CEBRAP, nº 55. São Paulo: CEBRAP, novembro de 1999. p. 61-70): assim como Arrigucci, reflete sobre a estruturação formal do livro, mas vê nela a marca de uma “contradição insolúvel e central que singulariza o Brasil”.
[4] Cf. CANDIDO, Antonio. No Grande sertão. In: Textos de intervenção. Apresentação e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. p. 190-192. Publicado originalmente sob a rubrica Grande sertão: veredas em O Estado de São Paulo, São Paulo, 06 out. 1956. Suplemento Literário, ano 1, nº 1. Grifo meu.
[5] CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: Tese e antítese. 4 ed. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 2000. p. 119-139. p. 122. Publicado originalmente sob o título O sertão e o mundo em Diálogo. São Paulo, 1957, nº 8.
[6] CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: A educação pela noite. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989. p. 199-215. p. 208.
[7] Idem, p. 207.
[8] CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite. Op. cit., p. 140-162. p. 162.
[9] CANDIDO, Antonio. No Grande sertão. Op. cit., p. 190.
[10] CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. Op. cit., p. 135.
[11] CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários escritos. 4. ed. reorganizada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 99-124. O trecho citado encontra-se nas páginas 120-121. São meus os destaques em negrito.
[12] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 7. As próximas citações do romance também são extraídas dessa edição. A indicação das páginas correspondentes virá a partir de agora entre parênteses no corpo do texto, após o trecho transcrito.
[13] Cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. Op. cit. p. 84-87.
[14] Idem, p. 87.
[15] Idem, p. 88-90.
[16] Sobre as relações entre a configuração do romance, o mito e o esclarecimento, ver o ensaio de Davi Arrigucci Jr., O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. Op. cit. “Na realidade, no interior do Grande sertão, a relação entre mito e esclarecimento parece repetir e desenvolver em enredo narrativo o mesmo esquema da dialética do esclarecimento que Adorno e Horkheimer apontaram já no interior da epopéia homérica. (...) À inevitabilidade do destino, a que foi levado pelo encontro com Diadorim, beirando a catástrofe trágica, responde com a razão, agarrando-se ao discurso, à palavra, descobrindo-lhe novos significados que desmancham em nada – ainda uma vez nonada – a violência mítica que teve de enfrentar.” (p. 28, negrito do autor).
[17]
DACANAL, José Hildebrando. A epopéia de Riobaldo. In: Nova narrativa
épica no Brasil. 2. ed. amp. e rev. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1988. p. 37-38. Segundo a Introdução do livro, o ensaio foi escrito
entre 1971 e 1972.
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