A VOLUBILIDADE DERIVADA DA CORDIALIDADE: UM ENCONTRO ENTRE SÉRGIO BUARQUE, ANTONIO CANDIDO E ROBERTO SCHWARZ
Homero Vizeu Araújo*
Dentre as inúmeras dicotomias e oposições que Sergio Buarque de Holanda explora em Raízes do Brasil, ficou particularmente famosa a passagem do capítulo O homem cordial em que ele se dedica a explorar a distinção weberiana entre funcionário patrimonialista e burocrata. Vale lembrar que o capítulo tem início com a discussão clássica sobre Estado e círculo familiar:
O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século décimo nono. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e as suas instituições descenderiam em linha reta, e por simples evolução da Família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que os simples indíviduo se faz cidadão contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. (HOLANDA, 1993, p.101).
Daí ficar claro que entre Creonte, defensor da lei abstrata da pólis, e Antígona, guardiã da tradição de sangue e família, não haver conciliação possível. Desta dicotomia, Sérgio Buarque deriva a dimensão patriarcal e familista da sociedade brasileira, na medida em que a disposição privada impõe-se ao interesse geral. De volta à distinção mencionada antes, entre funcionário patrimonialista e burocrata.
No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.(...) A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.”(HOLANDA, 1993, p.105-6).
No parágrafo seguinte vem o diagnóstico sobre a realização brasileira deste padrão.
No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar - a esfera, por excelência dos chamados “contatos primário”, dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (HOLANDA, 1993, p. 106)
O homem cordial que daqui emerge é familista, privatista, produto de uma família patriarcal cuja influência adultera as possibilidades democratizantes de instituições que, em princípio seriam capazes de estabelecer um padrão de sociabilidade mais igualitário e baseado em leis impessoais. A síndrome de Antígona, portanto, povoaria as relações sociais brasileiras, em boa medida herdadas do antigo regime colonial, e barraria o estabelecimento das leis abstratas da pólis, da república. Daí derivaria também a disposição cordial no sentido afetivo mais trivial, afetividade que permitiria a “lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam”, influência da sociabilidade desenvolvida no meio rural e patriarcal. Cordialidade, vale lembrar, que não se baseia na civilidade e nas boas maneiras, mas antes no fundo emotivo patriarcal, que pode azedar rapidamente e virar hostilidade também cordial. Uma espécie de intimidade entre amorosa e ameaçadora.
Este jogo de oposições ensaístico causou enorme impacto entre os contemporâneos do lançamento do livro em 1936, o primeiro de Sérgio Buarque. E o depoimento de Antonio Candido já se tornou, também, um clássico. Trata-se de um ensaio de 1967, “O significado de Raízes do Brasil”. Depois de louvar o inconformismo e audácia de Casa-grande e senzala(1933), de Gilberto Freyre, Antonio Candido prossegue.
Três anos depois aparecia Raízes do Brasil, concebido e escrito de modo completamente diverso. Livro curto, discreto, de poucas citações, atuaria menos sobre a imaginação dos moços. No entanto, o seu êxito de qualidade foi imediato e ele se tornou um clássico de nascença. Daqui a pouco, veremos as características a que isso foi devido. Por enquanto, registremos que a sua inspiração vinha de outras fontes e que as suas perspectivas eram diferentes. Aos jovens forneceu indicações importantes para compreenderem o sentido de certas posições políticas daquele momento, dominado pela descrença no liberalismo tradicional e a busca de soluções novas; seja, à direita, no integralismo, seja, à esquerda, no socialismo e no comunismo. A atitude do autor, aparentemente desprendida e quase remota, era na verdade condicionada por essas tensões contemporâneas, para cujo entendimento oferecia uma análise do passado.(HOLANDA, 1993, p. XL).
Distanciamento crítico, análise do passado, inserção no debate contemporâneo. Deste balanço percebe-se o impacto do livro, que incide forte no autor do balanço. Perseguindo a influência de Sérgio Buarque, Antonio Arnoni Prado encontrará efeitos duradouros na crítica literária exercida pelo próprio Antonio Candido. E Arnoni Prado é um especialista no assunto, foi ele quem organizou em livro, O espírito e a letra I e II, pela Cia das letras, o material na sua maioria disperso publicado por Sérgio Buarque. Para Arnoni Prado, Antonio Candido e Roberto Schwarz reelaboram as análises de Sérgio Buarque para alcançarem as análises cruciais de Dialética da malandragem, Ao vencedor as batatas e Machado de Assis, um mestre na periferia do capitalismo.
Assim, Antonio Candido em Dialética da malandragem, ensaio genial sobre Memórias de um sargento de milícias, teria dado uma dimensão dialética aos movimentos do homem cordial, registrando que Leonardinho, ao encarnar o malandro em seu ziguezague entre ordem e desordem, dava conta da dinâmica das relações de favor e compadrio de que eram dependentes os chamados homens livres na ordem escravocrata. Assim, os laços afetivos presentes nas relações (e na confusão) entre público e privado estariam mimetizados na estrutura do livro, para além do caráter documental do romance. O discernimento estético de Antonio Candido, portanto, teria captado aspectos formais do romance mediante a reelaboração dos achados ensaísticos e sociológicos de Sérgio Buarque.
Com Roberto Schwarz, trata-se de perceber a dinâmica da cordialidade em seus aspectos mais sinistros, uma vez que o assunto de Machado de Assis é, nos romances, principalmente o procedimento da elite brasileira, estudada no seu centro administrativo, o Rio da Janeiro. Aí aparecem com força as pretensões do liberalismo conservador em lépida e às vezes macabra convivência com o escravismo e o privilégio, dicotomia enunciada com humor e sofisticação pelo personagem-narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas. Schwarz proporia, segundo Arnoni Prado, uma leitura radicalmente materialista do perfil psicológico brasileiro estabelecido no homem cordial, o que daria em uma definição de perfil de classe, reelaborados formalmente no vai-e-vém da retórica de Brás Cubas, naquilo que Schwarz batizou, com o auxílio luxuoso de Augusto Meyer, de volubilidade do narrador.
Sem abrir mão da sofisticação intelectual proporcionada pelas luzes e pelo avanço civilizatório europeu, o narrador machadiano faria uma defesa um tanto oblíqua e dissimulada do privilégio e da autoridade, inclusive na disposição galhofeira (vanguardista?) de provocar o leitor. A volubilidade do narrador vai, assim, lado a lado da arbitrariedade mental e social do personagem, transformando a cordialidade definida por Sérgio Buarque em um dispositivo estético de alto rendimento. No Rio de Janeiro imperial de Machado de Assis a oscilação entre a face pública, moderna, europeizada e liberal e os traços coloniais e escravistas seria veloz e altamente reveladora da condição periférica do país.
No intervalo entre ambos, ganha corpo a imagem dos dois Brasis justapostos no interior das personagens, heterogêneas por construção. Ou – nos termos do próprio Roberto – confirmando as indicações de Sérgio Buarque acerca da ambigüidade institucional brasileira: as personagens de Machado de Assis, confundidas pela volubilidade do narrador, “compõem uma galeria razoavelmente normal, se o ponto de vista for cotidiano; se for o europeizante, parecerá haver exorbitância generalizada, e estaremos em companhia de uma população de excêntricos, bandidos, supersticiosos etc.”, o que significa dizer, segundo ele, que “a instabilidade vertiginosa do juízo repete à sua maneira o estatuto do país, cuja normalidade, do ângulo das idéias hegemônicas do tempo, era uma anomalia”. (PRADO, p. 76)
A cordialidade, portanto, posta à prova pelo enquadramento materialista, teria sobrevivido bem e revelaria aspectos problemáticos do país. Assim, como está enunciado por Arnoni Prado, no entanto, fica parecendo que Sergio Buarque teria formulado o problema do perfil dos personagens de Machado de Assis com grande propriedade, graças ao seu já então vasto conhecimento da literatura brasileira e da intimidade presumível com a obra do mestre. Que já houvesse intimidade é muito provável, mas é impossível que a disposição crítica da prosa de Machado de Assis já fosse evidente. Pois a única menção em Raízes do Brasil a Machado de Assis é francamente desabonadora, no rastro, provavelmente, das objeções modernistas à obra machadiana, lida por eles como um exemplo da literatura imperante na belle époque cabocla.
O Machado de Assis referido por Sérgio Buarque de Holanda seria uma continuação dos aspectos mais desfrutáveis e patéticos do romantismo, que é objeto de uma avaliação devastadora.
Apenas, não nos devem iludir as aparências a ponto de nos fazerem ver, nos movimentos de depressão e de exaltação que oferece essa literatura romântica, muito mais do que uma superfetação na vida brasileira, não obstante a sinceridade fundamental dos seus representantes típicos. Tornando possível a criação de um mundo fora do mundo, o amor às letras não tardou em instituir um derivativo cômodo para o horror à nossa realidade cotidiana. Não reagiu contra ela, de uma reação sã e fecunda, não tratou de corrigi-la ou dominá-la; esqueceu-a simplesmente, ou detestou-a, provocando desencantos precoces e ilusões de maturidade. Machado de Assis foi a flor dessa planta de estufa.(HOLANDA, 1993, p.121).
Um estupendo equívoco crítico que alinha Machado de Assis ao escapismo e ao conformismo beletrista e que dá testemunho do tipo de recepção oferecido a Machado de Assis, carioca fundador da Academia Brasileira de Letras, pelos modernistas brasileiros. Segundo Sérgio Buarque, Machado de Assis padeceria do escapismo sem memória ou do escapismo rancoroso que já seria um traço dos românticos brasileiros. Para os leitores atuais de Machado, acostumados a reconhecer o ânimo crítico de sua obra, é difícil imaginar maior disparate, até porque Machado de Assis pode nos fornecer inúmeros casos de cordialidade brasileira no interior da elite. Nada de espantar, claro, que o supremo narrador brasileiro iluminasse a cena para exemplificar a cordialidade em ação no século XIX.
No âmbito propriamente ideológico, o apego a fórmulas fixas permitirá a importação em larga escala do ideário liberal assim que o país alcançar sua autonomia política. Dentre as formas de evasão da realidade, a aposta fetichista no poder das idéias teria um caráter edificante que honraria os esforços da construção da jovem nação. Assim, a ideologia impessoal do liberalismo democrático vira um conjunto de refrões a serem brandidos desde que submetidos à lógica da negociação oligárquica. “Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos.” (HOLANDA, 1993, p.119). Com poder de síntese notável, o autor resume o aproveitamento elitista do ideário europeu mais ou menos progressista. No Brasil, todos seríamos desiguais perante a lei, que já é concebida para ser descumprida. Cada indivíduo pode se afirmar, a partir do círculo familiar e doméstico, indiferente à lei abstrata e geral, pelo menos naquilo em que tal lei contrarie suas afinidades particulares, e “atento apenas ao que o distingue dos demais”.
A lepidez ideológica de nossas elites não perderia a velocidade mesmo nos momentos de reforma, que no Brasil teriam partido quase sempre de cima para baixo, ao reunirem disposição intelectual e esforço sentimental. Tanto a autonomia política, quanto as conquistas liberalizantes que se sucederam ao longo do século XIX foram recebidas pela maioria da população “com displicência, ou hostilidade”. Tinham um caráter algo postiço de inovação forçada ao contrário da concepção de vida definida e específica que fosse resultado da maturidade plena. “Os campeões das novas idéias esqueceram-se, com freqüência, de que as formas de vida nem sempre são expressões do arbítrio pessoal, não se “fazem” ou “desfazem” por decreto. A célebre carta de Aristides Lobo sobre o 15 de Novembro é documento flagrante do imprevisto que representou para nós, a despeito de toda a propaganda, de toda a popularidade entre os moços das academias, a realização da idéia republicana.”(HOLANDA, 1993, p.119-120). E Aristides Lobo faz o comentário já clássico de que o povo assistiu a tudo “bestializado”, sem tomar conhecimento mínimo do que se tratava, observando à distância aquela mistura de efusão cívica e desfile militar.
Fique registrado o quanto do movimento das idéias depende, segundo Sérgio Buarque, do arbítrio pessoal e não de debate orgânico ou de lastro social no Brasil oitocentista e finissecular. Já referimos que para Roberto Schwarz a volubilidade do narrador é procedimento básico de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, volubilidade em que o momento de arbítrio é crucial para o estabelecimento da dinâmica dos atos do personagem-narrador e do vaivém da troca de opiniões e perspectiva. Arbítrio que permite vestir sua idéia fixa com os mais variados figurinos disponíveis sem perder a pretensão a pensador profundo, o que, para Roberto Schwarz, é o equivalente da manutenção das pretensões à civilidade, liberalismo e ilustração – o ideal europeizante – em meio à prática incivil, autoritária e obscurantista do compadrio e da escravidão.
Já vimos que para Arnoni Prado há uma linha de continuidade entre os achados críticos de Antonio Candido e Roberto Schwarz e as percepções sociológicas de Sérgio Buarque. Mesmo que não fosse assim, é notável o quanto a feroz ironia machadiana desmascara a cordialidade detectada por Sergio Buarque, seja no que ela tem de arbitrário no movimento das idéias, seja no privatismo e patrimonialismo que barram a noção do público. Lembremos a célebre frase do venerável e diplomático Conselheiro Aires em seu memorial, quando das comemorações da abolição da escravatura, à meia-noite de 14 de maio de 1888: “Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular.” Embora não seja fácil distinguir aqui o que há de regozijo elitista do intelectual sofisticado que se recusa a aderir ao entusiasmo vulgar, de avaliação lúcida de que a abolição pode não fazer tanta diferença assim, de simples manutenção do decoro cabível ao conselheiro e ex-diplomata, etc. Da frase plurívoca emerge, diga-se, um perfil assaz cordial do conselheiro.
Conselheiro Aires que é de tal maneira diplomático que em Esaú e Jacó, em cujo enredo se explora justamente a passagem da monarquia à república, não se define nem sequer enquanto narrador. O leitor é informado no início do livro, em Advertência que a narrativa foi retirada dos papéis de Aires após sua morte.
Quando o Conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.
A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, nas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último por quê?”(MACHADO DE ASSIS, 1964, p.17)
Ou seja, nosso cordial Aires é o autor da narrativa, mas se incluiu nela enquanto personagem, embora Esaú e Jacó seja narrado em terceira pessoa de razoável onisciência. Isto é, embora seja o autor, Aires se recusa a assumir a condição de narrador e muito menos assume as opiniões, algumas tremendas, emitidas pelo narrador, que, no entanto, concordam em grande parte com aquelas emitidas pelo personagem Conselheiro Aires. Um romance que tem não um personagem-narrador, mas um personagem-autor, que se recusa a se confundir, a priori, com aquele personagem-narrador. É deste ponto de vista já ambíguo que se contarão os embates entre os gêmeos Pedro e Paulo, um monarquista e o outro republicano, justamente na quadra histórica de passagem de um regime político a outro.
E o conflito dificilmente poderia ser mais cordial, uma vez que os gêmeos transferem para a arena política a disputa que os caracteriza desde o ventre de mamãe Natividade, desde o útero doméstico. É o interesse familista e doméstico ampliando seu poder de atuação até ao poder público e à arena política, esferas que saem amesquinhadas do embate. Em um ensaio publicado já faz tempo, tive a oportunidade de apontar a estratégia de anulação do conflito e de apagamento das diferenças elaborada pelo narrador, até certo ponto mediante a figura diáfana e melancólica da moça Flora.
No campo propriamente das opiniões políticas, devidamente ambientadas à rivalidade doméstica, a arbitrariedade é recorrente, reforçando o esvaziamento da personalidade e da eventual coerência dos gêmeos. Aos dezesseis anos, por exemplo, ambos estudam no colégio Pedro II, tiram notas semelhantes etc, mas Paulo já é republicano e Pedro monarquista. Mas a divergência não se torna assunto para Machado de Assis elaborar um estudo, por exemplo, do debate entre os adolescentes politizados da época, o que reforçaria o caráter pessoal e específico de Pedro e Paulo. A divergência é submetida a forte ironia ao ser banalizada em um paralelo entre barbas e opinião política.
As barbas não queriam vir, por mais que eles chamassem o buço com os dedos, mas as opiniões políticas e outras vinham e cresciam. Não eram propriamente opiniões, não tinham raízes grandes nem pequenas. Eram (mal comparando) gravatas de cor particular, que eles atavam ao pescoço, à espera que a cor cansasse e viesse outra. Naturalmente cada um tinha a sua. Também se pode crer que a de cada um era, mais ou menos, adequada à pessoa. Como recebiam as mesmas aprovações e distinções nos exames, faltava-lhes matéria a invejas; e, se a ambição os dividisse algum dia, não era por ora águia nem condor, ou sequer filhote; quando muito, um ovo. (MACHADO DE ASSIS, 1964, p. 65).
O paralelo escarninho entre opinião política e inevitabilidade fisiológica instaura a dúvida de que a consciência política dos adolescentes tenha alguma relevância ou autonomia, uma opinião que estaria submetida ao ritmo do organismo assim como o crescimento dos pêlos. Nega-se que sejam sequer opiniões, uma vez que não têm raízes grandes nem pequenas, não passando de adornos. A seqüência argumentativa que se segue ainda mais amesquinha as opiniões políticas de Pedro e Paulo. Ao assumir o papel de paladino da adequação da opinião-gravata de cada um, o narrador desqualifica com humor as pretensões à coerência que um e outro ostentam. Assim, a irrelevância da crença política abraçada pelos jovens é saudada em tom ameno que só amplia a degradação, “com a velha inveja infantil revelando sua robustez em detrimento da fragilidade das pretensões à maturidade e à coerência esboçadas no caráter dos dois gêmeos”(ARAÚJO, 1999, p.96-97).
No miolo do enredo de Esaú e Jacó encontramos, portanto, uma mistura audaciosa de familismo, privatismo e arbitrariedade de ideais políticos que tem um caráter cordial e sinistro. Aquela flor escapista de planta de estufa, Machado de Assis, entendeu como ninguém e elevou à condição de arte os paradoxos da cordialidade que um dia Sergio Buarque viria a diagnosticar.
Resumo:
A noção de cordialidade de Sergio Buarque de Hollanda reelaborada por Antonio Candido e Roberto Schwarz, de acordo com a proposição de Antonio Arnoni Prado. A acumulação crítica necessária para a avaliação estética e histórica de Machado de Assis e para o estudo de um personagem como o Conselheiro Aires entre outros personagens narradores de Machado de Assis.
Palavras-chave: Sergio Buarque de Hollanda, Antonio Candido, Roberto Schwarz, cordialidade, volubilidade, Machado de Assis, romance machadiano, narrador, Conselheiro Aires.
Abstract
The notion of cordiality as established by Sergio Buarque de Hollanda reconsidered by Antonio Candido e Roberto Schwarz, according to the proposition of Antonio Arnoni Prado. The critical accumulation demanded by the esthetic and historical valuation of Machado de Assis and by the adequate study of a character as Conselheiro Aires among other narrators created by Machado de Assis.
Bibliografia
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CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas cidades, 1993.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 25ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Esaú e Jacó. 3ed. São Paulo: Cultrix, 1964.
____. Obra Completa, vol.I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
PRADO, Antonio Arnoni. “Raízes do Brasil e o modernismo” In CANDIDO, Antonio (org). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1988. 3ed.
___. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas cidades, 1990.
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