NÃO EXISTE POESIA BEST-SELLER

Rachel Bertol

(Editora assistente do Prosa & Verso,

suplemento de literatura do jornal O Globo)


BREVE VISITA

 

Algumas pessoas que visitam a redação do jornal, especialmente o cantinho
onde trabalha a equipe do suplemento literário, costumam ficar abismadas.
"Isto é de propósito", dizem muitas vezes, sobretudo os assessores de
imprensa de editoras - os que mais assiduamente nos procuram - ao verem as
pilhas de livros que se amontoam em torno dos três terminais de computadores
(chegam à redação lançamentos de literatura, filosofia, história, ensaio,
biografia, reportagem-romance etc).

A cada dia, são uns três, quatro - às vezes dez - novos livros e, como o
armário sempre está cheio, resta-nos tentar organizá-los sobre as mesas de
trabalho. Não é raro o assessor ou mesmo editores e escritores, quando
vão, ficarem constrangidos de lançar mais um volume à arena... Mas não tem
jeito: os livros precisam chegar aos jornalistas. Jornal é algo sempre
dinâmico, um lugar onde acaso e improvisação se somam à tentativa de
planejamento das edições e onde não se pára um instante sequer. Está-se
sempre ou  apurando pautas, ou pesquisando na internet, ou fazendo contatos
para repassar livros a serem resenhados, ou respondendo a e-mails, ou
atendendo a telefonemas (são muitos os leitores, também, que ligam).


ONDE ESTÁ A POESIA?

 

Sim, o cenário dos bastidores vale para livros de todo gênero, obviamente.
Mas muita gente não tem idéia de como funciona um jornal, situação que
resulta seguidamente em equívocos. Pode ser interessante, portantopartir
da realidade física - esta que revela um mundo inflacionado de livros - para
abordar a realidade imaterial, os questionamentos, as dúvidas específicas em
torno dos títulos de poesia. Em meio ao aparente caos, afinal, como
encontrar a poesia?

A jornalista, nesta revista acadêmica em que foi convidada a contar como é
feita a edição das obras de poesia, deve admitir, logo de início, que o
gênero talvez seja um dos mais difíceis de se apreciar, pelo menos
comparativamente aos demais, que também buscam ganhar as páginas dos
jornais. Mas por quê?, vão perguntar os poetas, os professores, os críticos.

Para início de resposta, é preciso observar que editar não é algo que o
jornalista faz sozinho. Obviamente, ele depende da realidade. Neste caso, em
primeiro lugar, são necessários verdadeiros poetas. Em seguida, bons
editores. Depois - e isto é fundamental - resenhistas ou críticos
competentes, dispostos a escrever em jornal de grande circulação, ou seja,
não acadêmico nem especializado. Isto não quer dizer que a responsabilidade
do jornalista não seja grande. A partir do que dispõe, ele  lança seu olhar,
busca um recorte para apresentar ao leitor. E o recorte jornalístico, mais
do que atender ao gosto e ao interesse  pessoal do profissional, visa ao
objetivo específico de chamar atenção do leitor, informá-lo e conquistá-lo.

Estando do lado do leitor, o jornalista não está filiado - ou não deveria -
a nenhuma escola. Se brigas ou disputas intelectuais em torno de uma suposta
"verdade" do fazer poético ainda existem, o jornal deve espelhar, da maneira
mais abrangente possível, esse variado cenário. Poetas herdeiros da linhagem
marginal, neoconcretos, formalistas, líricos de todo tipo devem encontrar
nele uma arena para expor o embate ou a convivência harmônica das idéias. A
intenção não é privilegiar vertentes, mas, antes, mostrar ao leitor a
variedade de correntes que coexistem, neste início de século XXI, numa
cidade como Rio de Janeiro.

O primeiro passo da edição é, justamente, perguntar onde está poesia. Assim
se inicia a difícil apreciação, com questionamentos que nunca são puramente
técnicos do ofício jornalístico. Intuitivamente - a pressão do tempo sempre
condena o jornalista à intuição - fazem-se perguntas básicas, as quais
talvez todo poeta, e mesmo todo criador, também deveria responder quando
parte à aventura de escrita. É algo que se refere à pertinência do conteúdo
e da forma poéticas.

Isso porque a poesia é exigente. Aparentemente contradizendo o que acaba de
ser dito, ao mesmo tempo em que o jornalista deve estar aberto para acolher
as diferentes escolas poéticas, ele não pode, nem deve, tudo aceitar.
Editar, finalmente, é uma maneira de emitir um juízo de valor, e disso
nenhum profissional deve se isentar. Portanto, cabe ao jornalista ter em
mente que nem todo exercício de linguagem é poesia. Trata-se de gênero onde
as palavras são manejadas com sutileza, onde se depara com as máquinas do
mundo que muitos pressentem mas poucos expressam. Nisso a poesia (e toda
arte, enfim) até se aproxima do bom jornalismo: do cotidiano -  e de tudo
pode a poesia vicejar - extrai-se o novo, ou não necessariamente novo, mas
algo com uma semente inusitada, alguma forma de olhar renovado.

Quando recebe um livro, o jornalista quer saber se o autor responde de
alguma forma a essa exigência básica, assim como o poeta nunca deveria
descuidar-se da questão. Não deixa de ser, para ambos, um risco, que, por
outro lado, é preciso ousar, insistir na trilha de acertos e inevitáveis
erros. No entanto, há armadilhas no mercado editorial, exacerbadas cada vez
mais pela pressão do consumo, que não seriam difíceis de evitar.

Publicar um livro, especialmente de poesia, é difícil, certamente. Os
editores estão para discutir os entraves que dificultam seu trabalho. No
entanto, por outro lado, as novas tecnologias e a ciranda do consumo
favorecem a produção, haja vista a grande quantidade de editoras e a alta
rotatividade de lançamentos. Embora os livros de poesia sejam editados  em
menor número que os de outros gêneros, não deixam de estar inseridos na
lógica do mercado. Na roda-vida, muito material indigente acaba sendo
publicado, assim como são muitos os livros que vêm a lume sem estarem
verdadeiramente prontos. No consumismo, os autores correm o risco, eles
próprios, de se serem vítimas, consumidas. Enfim, a poesia, forma de
expressão tão sutil, sofre com os solavancos e as normas de um cenário
editorial cada vez mais competitivo.

Encontrar, portanto, a poesia em meio à inflação de lançamentos não é fácil.
Porém, ela resiste. Sobretudo os clássicos. Os portugueses - como Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Andresen - têm edições novas no
catálogo de grandes editoras. As obras de Drummond e Murilo Mendes foram
recentemente reeditadas, e não é difícil encontrar volumes e compilações de
Bandeira, João Cabral, Cecília Meireles.

O maior desafio para a poesia, hoje, em seu encontro com o leitor - pois é
isso o que o jornal propicia - é a renovação. Algumas iniciativas, como a
coleção Ás de Colete, realizada numa parceria das editoras  7Letras e Cosac
& Naify, têm conseguido destaque, por conta da qualidade do material
editado, em forma e conteúdo. É também o caso da Azougue, com interessante e
vigoroso catálogo. A Aeroplano, casa editorial da crítica e professora
Heloisa Buarque de Hollanda, não deixa de fazer seus rasantes poéticos. A
poesia se mantém presente, mas certamente não está em posição central no
giro do mercado editorial. O jornal não deixa de espelhar essa realidade,
embora também não deva se eximir de querer transformá-la. É como uma corda
bamba: ao mesmo tempo em que o leitor exige o novo ele quer se identificar,
reconhecer-se através do jornal. Editar, nesse contexto, é buscar dar conta
desse paradoxo.


FALANDO DE POESIA

 

As dificuldades na edição jornalística são indissociáveis do estado da
poesia hoje, sua relação com o mundo e com os leitores, seus esgotamentos,
crises, impasses. Estaria o livro, como suporte da expressão poética,
enfrentando uma crise? A prosa ficcional consegue ser muito mais
bem-sucedida em alcançar o leitor hoje (portanto a crise não é do livro,
longe disso).

Muitos poetas e editores se contentam com a posição acanhada da poesia hoje,
e talvez tenham razão quando raciocinam que isso decorre da natureza sutil
do gênero. No entanto, não é saudável se contentar com essa situação acuada,
sobretudo quando se evoca a universalidade de poetas como Camões, Dante ou
Homero. Se não chegaram a mudar o mundo, pelo menos chegaram perto disso.
Não é difícil convencer o leitor da grandeza desses autores. A poesia é,
sim, essencial.

Ora, em contrapartida e pelos motivos apontados, também não existe poesia
best-seller. Não se faz poesia para vender como pãozinho quente, assim como
muitos romances são feitos. São coisas excludentes. A verdadeira poesia
precisa ser, por excelência, anti-best-seller. Se vier a vender muito, que
bom, mas será sempre apesar dela própria.

Sim, é preciso respeitar a poesia. Respeitar, muitas vezes,  a sua
necessária dose de hermetismo. Não é da linguagem comum de que estamos
falando. Não se quer a sua vulgarização. No entanto, é preciso haver
comunicação. E o resenhista, que se propõe a ser uma ponte entre o leitor
saturado de informação e o poeta criador, deve saber transitar entre esses
dois mundos.

Encontrar o resenhista ideal, porém, não é fácil. Na academia fica, em
geral, ainda mais difícil, com algumas exceções. Neste ponto, entramos na
discussão sobre o estado da crítica hoje no Brasil. O fato é que existe
grande dificuldade em se achar bons "tradutores", que não insistam em se
prender no hermetismo estéril, que torna a apresentação da poesia pouco
instigante, desprovida de interesse no mundo inflacionado de livros e
brilhos.

Todos, portanto, do poeta ao editor, do editor de jornal ao resenhista, e
mesmo o leitor - ele também não é inocente - têm sua dose de
responsabilidade no caminho do verso ao mundo. E a própria realidade do
Brasil contribui com sua parte. Entretanto, não devemos nos prender à idéia
de que o jornal ou a revista de grande circulação são os únicos meios por
onde a poesia pode ganhar as ruas. Existem hoje muitos meios, muitos canais
de ação: o artista não precisa se paralisar.

O jornal é hoje a mídia mais antiga do mundo. Com a internet, a velocidade
da comunicação que aumenta a cada dia e os novos suportes tecnológicos que
vão continuar a nos surpreender com sua inventividade e novas soluções, a
palavra - jornalística, técnica ou poética - vai transitar de maneira ainda
mais explosiva pelo mundo. É um processo que começou. E minha aposta é de
que o livro vai vencer, e a poesia continuar a desvendar as realidades que a
olho nu, sem as lentes de aumento da delicadeza, o homem comum não
conseguiria enxergar.

 

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