O MOSAICO DA MEMÓRIA
André Bueno*
O trabalho que vai ser apresentado é um estudo sobre Resumo de Ana, (1) de Modesto Carone. Situa-se na linha de pesquisa que pensa a formação do Brasil moderno, ao longo do século XX, como crítica do progresso a partir da ponta pobre e precária do processo, na contracorrente dos mitos da modernização de São Paulo, capital e cidades prósperas do interior. A narrativa monta um mosaico da memória, de forma precisa e concisa, direta e econômica, relacionando diversos níveis de experiência e percepção da realidade, objetiva e subjetiva. O fio da meada é puxado por um narrador em terceira, umas poucas vezes em primeira pessoa, buscando o sentido da experiência de duas vidas resumidas – Ana Baldochi, nascida Godoy de Almeida, avó do narrador, e Ciro, filho de Ana e tio do narrador, ao redor dos quais gravitam outros personagens, da mesma família ou relacionados – com a mediação relutante da mãe, Dona Lazinha.
A esse fio da memória familiar juntam-se outros fios, também muito precisos e concisos, diretos e econômicos, que situam o leitor na vida cotidiana, na geografia, na história, na política, no mundo do trabalho e da economia. Sem ênfase, com um pathos emocional muito diminuído, tomando distância do material narrado, o livro articula as marcas de uma memória que, de outro modo, estaria condenada ao esquecimento, à irrelevância das vidas diminuídas pela necessidade, pela dependência, pelo favor, pela lógica violenta do trabalho alienado. Sempre a partir da experiência desses dois personagens centrais, Ana e seu filho Ciro, vivendo suas vidas precárias e diminuídas, sofridas a maior parte do tempo, com uns breves intervalos de prosperidade e esperança, em que pareceu possível sair do rés do chão. Nos breves períodos de prosperidade, pareceu possível a ascensão social, configurando uma ilusória proximidade com os de cima, com o mundo das famílias, das fazendas e das fábricas, ou seja, com a ponta vitoriosa e superior do processo de modernização de São Paulo.
Numa pequena nota, perto da ficha técnica do livro, lê-se que se trata de ficção a partir de alguns fatos reais. Faz supor uma relação entre o narrador do Resumo de Ana e o próprio Autor, Modesto Carone, paulista, nascido em Sorocaba no ano de 1937. Mas o que se lê é uma estrutura narrativa montada a partir da melhor tradição literária moderna, com os processos de montagem muito mediados, um trabalho crítico e sensível que constrói o mosaico da memória, ressalta as marcas fortes da memória, com seus diversos níveis de relação, tornando destino e experiência gerais o que, com menores recursos literários, poderia ser relato privado e particular. Perderia seu tempo quem lesse o Resumo de Ana em busca de um narrador em crise, fazendo o percurso nostálgico em busca do tempo perdido, fazendo o caminho de volta, da capital para o interior, idealizando no caminho a própria vida nas regiões e cidades do interior de São Paulo. Conduzido pela mão segura de um narrador maduro, consciente de seus recursos, muito depurados, o mosaico da memória é montado sem concessão – regional, populista, sentimental, elitista, folclórica, demagógica, retórica ou melodramática. Também perderia seu tempo quem buscasse no livro a narrativa nostálgica de um mundo rural em crise, de fazendeiros decadentes, fazendo o lirismo sempre suspeito de uma ordem injusta que se vai e que seria, de algum modo, melhor que a nova ordem social que vai sendo criada – urbana e moderna, industrial e comercial. A narrativa ganha um vivo e preciso sentido de realidade justo por evitar essas saídas fáceis, ganhando em força expressiva por apontar para o avesso da modernização do capitalismo e seus mitos, sempre arrogantes e triunfais. Por essa via resumida e concisa, o século moderno e modernista de São Paulo aparece à luz de seu negativo.
A capa do livro é a foto de um equilibrista atravessando um fio que liga dois prédios. Um equilibrista alemão, em Sorocaba, no começo da década de 1950. Na corda bamba e, nota-se, com o rosto coberto por um pano preto. Fazendo lembrar o comentário de Antonio Candido aos contos de As marcas do real, livro de Modesto Carone publicado em 1979 : “ As idéias que vêm ao espírito lendo estes textos de Modesto Carone são a de corda esticada e a de fio da navalha. O equilibrista andando com tranquilidade, embora cautelosamente, na superfície arisca que quase não existe, que pode fazê-lo cair a cada instante para um lado ou outro do abismo. O abismo, no caso, é o insignificante, isto é ,o que não forma sentido nenhum, dissolvendo-se na assemia do nada. Meio sem fòlego, o leitor acompanha o autor no seu caminho. Vai cair ? Vai seguir ?... “ (2)
Aqui, cabe uma breve variação, para voltar mais adiante ao assunto. Nos contos de As marcas do real lê-se o pesadelo narrado com uma linguagem poética e precisa. Cria-se uma estranheza radical, narrando a alienação por dentro. No fio da navalha, na corda bamba, à beira da queda e do abismo, vai seguir, vai cair. Não que vá cair na falta de sentido. As marcas do real são essas mesmo : a solidão, a falta de sentido, o pesadelo, a distância imensa que separa os que estão mais próximos, o incrível peso das coisas e da vida de todo dia. Parece um pesadelo ao modo de Kafka. Estou escuro, rigorosamente escuro, como se lê na epígrafe de Drummond. Nenhum da mônada sem janelas. Talvez o olho do cú, como no brevíssimo Mabuse, que assim termina : “ o olho estremece os cílios, o seu corpo de sinais: o rego regorgita. A fenda cresce, cheia até a boca, e o olho caga no meu rosto : estou vivo “. (2) Estranha maneira de estar vivo, por certo. Daí a ironia cortante, das referências e dos títulos. Daí a força que deriva de narrar o mais estranho e mutilado por dentro, sempre com uma linguagem precisa e poética. Aumenta a estranheza, a distância se alarga, as marcas do real tomam o mais comum e cotidiano como um pesadelo. Do qual os personagens, emparedados, não acordam. No conto que dá título ao livro, As marcas do real, o leitor fica a se perguntar : quem seriam “ os anjos não-nascidos”, “a dor poderosa que nutre hoje a chama do espírito “? (3) É o fecho do poema Grodek, ao lado de Lamento os últimos que Georg Trakl escreveu, no Sanatório. Era admirado por Wittgenstein, que dizia não entender sua poesia. Quem teria sido ele, perguntou-se Rilke, ao ler a coletânea Sebastian em sonho, publicada em 1916 ? Talvez o outro do pesadelo que é a realidade alienada. Talvez o desespero que busca um outro inexistente. Com a funda marca do poeta posto à margem da pólis, drogado e isolado. Louco ? As marcas do real, sempre.
Dias mellhores (4) virão, diz a esperança na canção popular. No livro de Modesto Carone, publicado em 1984, a esperança vem na forma de um homem sitiado em sua própria casa, acostumando-se e sentindo falta dos tiros de um anônimo, cujos dentes são percebidos por olhos turvados pelo sangue. O do próprio personagem sitiado. A esperança de dias melhores. Um avesso, duríssimo. Em que o narrador, estranhíssima primeira pessoa, está acossado por um atirador desconhecido; descobre o cadáver de um enforcado no guarda-roupa ; analisa o fato de que não pesa a menor ameaça sobre o assassino ameaçado ; disseca o masculino e o feminino numa galeria de mulheres cuja proximidade nunca existe, só uma estranheza radical. No conto O ponto sensível, conto mais longo e dividido em partes, que fecha o livro, a geografia e o espaço urbanos – São Paulo, o Largo do Arouche, o mercado das flores, a rua, o prédio, um apartamento comum, o corredor, as escadas – se ampliam como uma fantasmagoria insuportável, que o personagem asmático percorre como no pior dos pesadelos. No fundo do pesadelo lê-se : “ abro então os braços e descrevo no ar os gestos de quem se descobre num espelho sem fundo. “ (4) Espelho sem fundo, fio da navalha, corda bamba. Limites. São as marcas do real, narradas nos contos de Modesto Carone. Os dias melhores ? Bem.
O Resumo de Ana também trata das marcas do real, de um outro ângulo. Mas, nas suas quase cem páginas, o tempo é bastante dilatado, a passagem condensada de quase todo o século XX – de Sorocaba, de São Paulo, do Brasil – segue o fio da memória dos personagens, definidos pela lógica da vida material, do trabalho alienado, da dependência e do favor. Como é assim, com rigor e precisão, não há lugar para mitologia da modernização e do progresso. Narrando pela ponta pobre e precária do processo, o livro apresenta um tempo longo comprimido em espaços muito restritos – os sítios do mundo rural, dos caboclos e caipiras , a vida doméstica, a cidade de Sorocaba no centro da experiência dos personagens, São Paulo, a capital, no período em que Ana lá viveu, voltando uma vez, tempos depois.
Sorocaba é uma cidade antiga. Tem agora 350 anos. Está situada a uns noventa quilômetros da capital. Foi pioneira da indústria têxtil no interior de São Paulo. Em 1851, o empresário Manuel Lopes de Oliveira fez a “primeira tentativa de instalar uma fábrica de tecidos na Província de São Paulo com máquinas importadas da Inglaterra.” ( ). É para lá que segue de trem, em 1881, o imigrante italiano Francesco Matarazzo, com 27 anos de idade. É lá que o futuro Conde Matarazzo começa a fundar seu império industrial e comercial , primeiro comerciando banha, depois montando uma pequena fábrica. Cidade antiga, pioneira da indústria têxtil, Sorocaba era conhecida como a Manchester paulista, por analogia com a cidade inglesa, um dos berços da Revolução Industrial. No livro, esses surtos modernizadores se apresentam, ao longo da narrativa, misturados com as marcas do passado rural, caipira, de roça e de caboclos, de trilhas de burro, de casas de pau a pique, de vilarejos pobres e atrasados. Como se nota, um contraste entre o arcaico e o moderno, que ajuda muito a ler o Resumo de Ana. De maneira que os modos de uma certa civilidade burguesa, no interior e na capital, vão de par com os passos atrás, os modos rústicos dos caboclos e dos caipiras, mas também dos índios. Vale lembrar que a região mais a Oeste , no interior de São Paulo, ainda nos anos do Modernismo de 1922 constava nos mapas como terra de bugres. Dando uns passos atrás na história da Manchester paulista, chega-se aos tropeiros, vindos do Sul, e as trilhas feitas para burros de carga. Chega-se ao chão batido e às trilhas de terra, abertas por índios e caboclos, depois cobertas de betume, daí às rodovias por onde passaria o progresso de São Paulo, primeiro a Raposo Tavares, depois, homenagem ao ditador, Marechal Castelo Branco, ligando interior e capital do Estado.
As marcas, do presente e do passado, do mais recente e do mais remoto, estão indicadas no Resumo de Ana, situando bem os personagens e suas vidas no contexto, em uma geografia ao mesmo tempo física e humana, rural e urbana. Estão indicadas também as referências gerais da História do Brasil, mas como algo que passa longe, uns ecos distantes, que afetam sim a vida cotidiana e o destino dos personagens - Ana, Ciro e sua família. De quebra, estão lá as indicações precisas de uma formação étnica, da presença dos imigrantes, a princípio italianos, espanhóis, sírios, mais para o final do século XX nordestinos, última leva migratória, que fez de São Paulo, a capital, talvez a maior cidade nordestina do Brasil. Não mais aquela São Paulo italiana do começo do século XX e do Modernismo, dos relatos de Alcântara Machado, de Juó Bananere, do Brás, do Bexiga e da Barra Funda. Que ainda é apresentada, fraca e deformada, nas telenovelas e melodramas de massa. Uma outra São Paulo, imagem violenta da modernização conservadora do nosso país, nos levando mais para a periferia, para o Capão Redondo e outras quebradas, típicas de uma metrópole do subdesenvolvimento.
Narrado pela ponta pobre e nada idealista do processo, o Resumo de Ana lança uma luz, ao mesmo tempo irônica e amarga, sobre a tal Manchester paulista, o século moderno e modernista de São Paulo, ao relacionar os pobres e remediados com o mundo das famílias, das fazendas e das fábricas dos poderosos. Como não dá passos para trás, não precisa buscar pontos de apoio no passado índigena, nem no mundo caboclo e caipira, das roças e dos sítios, fazendo desse mundo, de sua gente e de sua cultura, um contraste ou um confronto com a chegada do capitalismo industrial e comercial à província. Com isso, embora Sorocaba, e seu entorno rural, formem uma região no interior, de São Paulo e do Brasil, inútil buscar no livro os traços que marcaram o regionalismo brasileiro. Não há tipos e situações que sustentem essa posição nas quase cem páginas do livro. Como a indústria chegou cedo à cidade antiga, a modernização remonta ao século XIX, ao contrário de outras cidades e regiões, de modernização mais tardia. Além disso, como Sorocaba torna-se uma cidade grande e próspera, entre as maiores de São Paulo, não haveria porque fazer o lirismo das cidades mortas, da elite rural decadente e outras variações brasileiras em torno do tema. Mas, não há engano quanto à posição dos personagens, os “ fiéis servidores da nossa paisagem “, como na epígrafe de Drummond. Por certo que da nossa paisagem brasileira, da experiência dos personagens como o negativo, o avesso da modernização do capitalismo e seus mitos – em Sorocaba, em São Paulo, no Brasil. Desse ângulo negativo, soa como um escárnio fazer do progresso um espetáculo, já que o mesmo processo, visto pelo ângulo do trabalho, da necessidade, da dependência e do favor, está sempre mais para fracasso e derrota. Sim, é o ângulo dos vencidos.
Como Ana Baldochi, nascida Godoy de Almeida, filha de imigrantes europeus, sitiantes remediados, talvez arrendatários de terra, nascida em 1887 no sítio da família, mandada criança para ser criada em Sorocaba por Ernestina, de quem seria, não filha adotiva, mas empregada doméstica, de sol a sol, desde os cinco anos de idade. É como empregada doméstica que trabalhará em São Paulo, primeiro na casa do professor que passa o ano inteiro dando aulas em Laranjal Paulista, depois na casa de Mr. Ellis, alto funcionário da Light, de cuja esposa, Judith, torna-se amiga, chegando a governanta da casa. Sai com a família, vai ao Teatro Municipal. Aprende a imitar os modos e maneiras dos patrões e das mulheres da classe que não é a sua. Quer o decoro, a compostura, a discrição e os prazeres dessa gente. Sobretudo a ópera, o canto lírico, o teatro. É a linha de fuga, para onde converge sempre, o desejo, o prazer dessa mulher pobre e dependente, por contraste com a necessidade, o trabalho doméstico e a violência conjugal.
Quando Mr. Ellis vai à falência, a ilusão de Ana também desmorona. A proximidade com uma posição social mais alta não é garantia nenhuma para a mulher pobre. Deixando o casamento com Balila Baldochi, filho de uma família de toscanos vindos de Marselha, numa zona de sombra, ambígua, entre a necessidade, o cálculo e o vínculo afetivo. Na volta a Sorocaba, Ana depende do marido, faz todo o trabalho doméstico, mas insiste nos modos, nas roupas, no gosto pela ópera e pelo teatro. Prazer nunca aceito ou compartilhado pela grossura do marido comerciante. Ao contrário, como algo que é visto com desdém, complacência, ou muito pior, com violência. Assim, a dependência e a estreiteza da vida conjugal vão de par com a violência. Constante, pela própria mesquinhez da vida de casada, e muito direta, quando Ana é espancada sem dó. Depois de perder quatro filhos, de passar por períodos de melancolia, nasce Lázara Dea, mãe do narrador, também chamada Dona Lazinha, numa época em que os negócios de Balila Baldochi vão bem. Parece até que o imigrante rude mudou de posição social – dá festas, é padrinho, oferece festas fartas nos batizados, aproxima-se dos parentes de Júlio Prestes, lê o Estado de S. Paulo, em resumo, junta-se aos conservadores, de Sorocaba e de São Paulo. Mas entenderá logo que estar próximo não é fazer parte de uma grupo social. Serve para fazer o papel de “correligionário”, nada mais. Quando vem a falência, resultado da crise de 1929 e da usura dos agiotas, essa proximidade se mostra de todo ilusória. Ao invés dos benefícios do favor, de uma ilustração conservadora, uma adesão proveitosa às famílias poderosas de São Paulo, o falido Balila Baldochi toma o caminho do mato, do sertão, das palhoças, dos caboclos, das trilhas no mato, das esteiras no chão batido, dos dias que começam de madrugada, do café adoçado com rapadura, dos cigarros de palha. No entanto, sente-se feliz nesse mundo de caboclos e caipiras, mesmo tendo que carregar sua mala de vendedor de remédios por trilhas difíceis.
A decadência de Ana Baldochi, nascida Godoy de Almeida, acentua a necessidade, a dependência e o favor. O marido passa muito tempo fora, vendendo remédios nos vilarejos para os caboclos. A casa se desarruma e se desorganiza, já que ela não é mais capaz de fazer o trabalho doméstico. Depende dos filhos pequenos para comprar o alcóol que bebe. Primeiro, Lazinha. Depois Ciro, pequeno, tão pequeno que mal alcança o balcão dos bares. Depende dos filhos e das vizinhas quando perde as forças, adoece e morre, vítima da depressão, do alcoolismo e da tuberculose. Morre numa solidão atroz. Morre numa posição derrotada que, em tudo e por tudo, contrasta com os mitos da modernização e do progresso. Muito, muito longe de alguém que lutasse e morresse por São Paulo, seu orgulho. Que se deslumbrasse com o espetáculo da vila passando a metrópoles em poucas décadas, enchendo os olhos dos incautos e dos otários. Que enchesse a boca para falar da cidade que mais crescia no mundo. Que fizesse nas casas das famílias poderosas do café as revoltas modernistas de salão. Que chocasse o gosto burguês da província no Teatro Municipal. Que fosse um intelectual dando tiros de ar nos céus da capital, cuja paisagem apodrecia. Que fosse filho de fazendeiros, de industriais, de comerciantes, que vivesse de rendas e pudesse, com maior ou menor espalhafato, fazer alguma traição de classe ou se arrepender de algumas inconsequências juvenis.
Como era de se esperar, quando Ana morre “a cidade seguia seu ritmo de centro industrial provinciano indiferente ao destino daquela mulher.“ ( Aquela mulher que deixou os filhos orfãos e dependentes. Aos oito anos, Ciro é tirado do curso primário, e vai trabalhar com o pai no sertão. As meninas, Lazinha e Zilda, vão viver com a piemontesa Claudina, madrasta de Balila Baldochi. Consciente da necessidade de trabalhar, não querendo se tornar um estorvo, Lazinha não se sente à vontade como hóspede, dependendo do favor dos parentes. A primeira parte do Resumo de Ana termina assim :
“O pedido correspondia à ética e às necessidades dos parentes e foi assim que, em meados de 1933, com catorze anos completos, Lazinha saiu da casa da avó ainda de madrugada e subiu a pé a rua dos Morros em meio a uma pequena multidão de moças e rapazes cujos rostos a escuridão ocultava, até chegarem juntos aos portões do prédio do prédio onde ela ficava de dez a catorze horas por dia costurando sacos de café : era a Fábrica Santa Maria, propriedade industrial da família de Paulo Emílio Salles Gomes, que àquela altura ensaiava em São Paulo os primeiros passos de sua carreira de escritor de esquerda. “ ( 8) De mãe para filha, a herança do trabalho alienado, doméstico ou na fábrica. Não podia ser mais lacônico o resumo do destino dessas mulheres pobres e dependentes na sociedade de classes que o capitalismo formou, em Sorocaba e São Paulo.
Na segunda parte do livro, a prosa precisa e concisa, distanciada e anti-ilusionista de Modesto Carone monta o mosaico da memória pelo ângulo de Ciro, filho de Ana, tio do narrador. Ciro nasce em 1925, quando a família passa por um período de prosperidade. A italiana Assunta Tienghi, parteira, cuidou do seu nascimento. Teve um enxoval caprichado. Ana e Ciro foram cuidados pela espanhola Frasquita, filha de D. Clara Moreno, passionais e chamadas “barcelonas”. Na divulgação social do nascimento de Ciro, a pequena e relutante Lazinha vai às casas das famílias levando uma frase pronta, ensinada e recomendada pela mãe : “Tem um criadinho às suas ordens” (9). Uma fórmula precisa para definir a relação de favor e dependência que marca a distância entre as famílias comuns, e seus filhos, e as famílias da elite, e seus filhos. E é com relutância que Lazinha se apresenta na mansão de Dona Luizinha Maia para anunciar o nascimento do irmão.
De maneira resumida, a relação é apresentada : “ Aos olhos da mãe a formalidade na residência senhorial parecia indispensável porque Julieta de Albuquerque, prima de Júlio Prestes, era irmã de Luizinha e tinha sido madrinha da menina. O filho de Julieta, Ciro, também era seu padrinho e o nome escolhido para o recém-nascido representava uma homenagem com endereço certo : menos de um ano mais tarde o menino seria batizado por Ciro Albuquerque de Vasconcelos a mando de Julieta e da matriarca Júlia na antiga igrjea do Bom Jesus, situada na Casa Amarela, hoje parte da região de Barcelona, onde em 1851 o empresário Manuel Lopes de Oliveira fez a primeira tentativa de instalar uma fábrica de tecidos na Província de São Paulo com máquinas importadas da Inglaterra. “ ( 10 )
Parece promissor o futuro do menino Ciro, mas aqui também a proximidade com o mundo das famílias, das fazendas e das fábricas revela-se ilusória, pois em nada altera o sentido da necessidade e da dependência que definirão o destino de mais um fiel servidor da nossa paisagem, que desde cedo enfrenta o abandono, a violência e a doença. Logo aos três meses, num passeio de carro a Itu, pela estrada coberta de betume superposta à trilha de índios e de boiadeiros, Ciro é picado por mosca varejeira. Forma-se uma bicheira na base do pescoço. O tratamento é caseiro, com arsênico e cremes preparados pelo pai, Balila, a partir de um velho manual francês. Em 1926, com o casamento já em crise, nasce a última filha do casal, Zilda. Com isso, o pequeno é posto na solidão, afastado que é pela mãe, pelas irmãs e pelas ausências do pai. É nessa posição precária que Ciro presencia a mãe, Ana, sendo espancada por Balila na frente dos filhos, “ Lazinha agarrada ao corpo da mãe para livrá-la das cintadas que zuniam, Zilda encolhida num canto escuro da sala e Ciro enxugando os olhos nas mangas de um macacão de flanela. “ (11). Não por acaso, em Ciro “ o choro tornou-se uma segunda natureza.”. (12).
Na sequência de infortúnios, Ciro continua abandonado, fica com o pescoço duro por causa de um torcicolo mal curado, tem catapora e ganha uma lesão no olho. Para remate de males, perde a mãe aos 8 anos de idade. Ana Baldochi morre em 1933. São duas solidões, a do filho pequeno e a da mãe morrendo uma morte vil. Sem consolo. Sem remédio. Sem chance de final feliz. Ciro acompanha de muito perto a fase final da vida de Ana. Compra bebida nos botecos vagabundos para a mãe. Afasta os moleques que zombam da mulher frágil e bêbada. Acompanha a lenta agonia. Vela o cadáver na sala de paredes vazias. Órfão, sozinho e dependente, vai morar na casa de uma tia, mas não se acostuma com os modos severos do tio operário. Calado e sério, parte com o pai carregando a mala de remédios, na jardineira de Sorocaba até a Piedade, a pé “pelos lugarejos miseráveis da Serra de Paranapiacaba. “. (13). Com o pai , até os quinze anos Ciro anda pelo sertão de Iguape, próximo ao mundo pobre da roça, dos caboclos, das casas de taipa, das esteiras de vime e do chão batido para dormir.
Como Balila fizesse negócios com um representante dos Laboratórios Baldassari, Ciro ganha seu primeiro emprego, tornando-se aos dezesseis anos balconista da Farmácia Drogasil. Nessa altura, faz a vida social dos que não tinham dinheiro para frequentar clubes : a praça pública, o coreto, o footing. Anda bem vestido e se interessa por uma loira, com seus 16 anos. Saberá logo que a moça é prostituta desde os 13 anos. E cumprirá um destino que passou pelo bordel, pela delegacia e pelo reformatório. Tudo enquanto Sorocaba, a Manchester paulista, crescia ao ritmo da modernização industrial. Ao terminar a II Guerra, Ciro deixa a Drogasil para trabalhar na Estrada de Ferro Sorocabana. Parecia o cálculo correto, conseguir um emprego estável, tornar-se funcionário da ferrovia, que garantia o sustento de várias famílias por até três gerações. Cálculo que se revelará, mais adianta, a corda bamba que acompanha as flutuações da economia, já que Ciro perderá o emprego numa primeira leva de demissões.
Nessa altura do relato, o narrador faz um corte para o presente, descrevendo de forma precisa a estação de trens. Não para fazer um turismo de imagens urbanas, mas para situar no cenário os que trabalham : “A sigla EFS, em relevo nas paredes laterais dos prédios recortados como castelos de papelão, tem o desenho nítido de dragonas que contrasta com o céu de chumbo e o trabalho dos operários que há mais de meio século se revezam durante os sete dias da semana.“ (14). Uma vez mais, a notação precisa e concisa do relato puxa o fio da meada pelo ângulo do trabalho, sem espaço para qualquer mitologia do progresso ou do crescimento econômico como espetáculo. Desocupado, com o pai doente, Ciro não encontra emprego nas fábricas que “respondiam à crise com mais desemprego”. (15)
Como a geografia da necessidade é sempre estreita, aceitou o emprego de garçom no Bar Comercial. De dia, uma clientela. À noite, outra, ao redor das mesas de sinuca Taco de Ouro. De dia e de noite, Ciro se esfalfando prá agradar a clientela : “O salário mínimo era engrossado pelas gorjetas divididas com os outros garçons, depois de deduzida a comissão que ia para os bolsos do proprietário. Não eram pagas as horas extras nem o adicional noturno previstos na Consolidação, e nas temporadas de fim de ano e Carnaval ele recebia um pró-labore por estar à disposição da clientela fora do horário habitual.“ (16) É nessa situação que o narrador observa o tio, pelas frestas. É nessa situação que o tio percebe sua presença, dá-lhe uma moeda graúda e, em voz baixa, diz que é hora de voltar prá casa. É uma cena discreta, uma delicada passagem da terceira pessoa objetiva para a primeira, mais próxima e afetiva, em que o narrador muda de posição.
Através de clientes do bar, Ciro passa de garçom a gráfico do jornal Cruzeiro do Sul. Ganha menos, mas gosta do trabalho de composição. Já aos vinte e um anos, livre da autoridade paterna, mas “a liberdade para decidir sozinho era acompanhada pelo desconforto de quem tinha encarado a sujeição como norma de conduta.“ (17) Empregado, ciro volta a fazer o footing na Praça Coronel Fernando Prestes. Conhece Terezinha, filha de operários da Piedade, com quem se casará. Também aqui, o infortúnio acompanha Ciro. A moça tem 23 anos e já fora amante adolescente de um homem rico, casado e avarento. Ambos continuam trabalhando muito, e a doença se apresenta. Ciro se intoxica com o antimônio, Terezinha é tuberculosa, e precisa ser internada num Sanatório. Com o tempo, escasseiam as visitas de Ciro que se relaciona com outra mulher, Norma, ruiva, garçonete, também ligada à prostituição.
Tentando dar um passo adiante, Ciro sai do jornal Cruzeiro do Sul para a Gráfica Gutierrez. Compra uma impressora em São Paulo, com prestações fixas que o obrigam a trabalhar mais ainda. Em 1951, sua mulher volta do Sanatório. Juntos, trabalham duro. É no período de Juscelino, aquele chamado de nacional-desenvolvimentista, que Ciro conhece seu melhor momento comercial. Há muitas encomendas, para imprimir material para políticos. Em 1960, Norma, que se afastara, reaparece. Com isso, termina o casamento e vem o desquite. Para agravar a má sorte de Ciro com as mulheres, Norma enlouquece e mata o pai a facadas. Na sequência do relato, Ciro conhece Anita, que será sua companheira até o final da vida. Terão seis filhos.
Também o resumo da vida de Anita segue a estrita lógica da necessidade e do trabalho alienado. Nasceu pobre, foi camareira, quis fazer o Curso Normal, para ser professora. O que era muito comum para as filhas da classe média do interior de São Paulo na época, para ela era uma escolha impossível. Contenta-se com um curso de Corte & Costura, mais de acordo com os limites daqueles destinados ao trabalho manual. Na década de 1970, Anita será operária nas fábricas de tecido de Sorocaba, trabalho para o qual está bem qualificada. É sua maneira de viver o avesso da modernização, a ponta pobre do processo, em pleno milagre brasileiro dos militares e dos tecnocratas, que prometiam dividir o bolo depois que crescesse. Vieram Jânio, Jango, o ditador Castelo Branco e a recessão sela o destino de Ciro que, como o pai, vai à falência. Note-se que Ciro vive toda a sua vida, que termina em 1990, na geografia restrita de Sorocaba e seus arredores pobres, a nos lembrar que os capitais e as informações viajam rápido na economia mundializada, mas que os trabalhadores a maior parte das vezes não viajam, no máximo fazem um movimento migratório, em busca de uma vida melhor. Pela lógica da necessidade, da dependência e do trabalho alienado, o mundo do trabalho é duro, é difícil, é decepcionante. Nenhum glamour. Nenhuma noção de espetáculo do progresso e do crescimento econômico. Assim sendo, Ciro é empurrado para a margem, sempre na corda bamba, sempre no fio da navalha. Para a margem dos trabalhos cansativos e mal-pagos. Para a margem da própria família. Cada vez mais para a periferia da cidade.
Na altura da falência de Ciro, o narrador dá um corte para o presente e assume outra vez a primeira pessoa. O mosaico da memória monta sua figura contrastando passado e presente. O que se lê é um cenário urbano barulhento e feio, atravessado pelos motores dos caminhões de carga e a poluição que os acompanha. Carregando as mercadorias do progresso, é claro. Ao narrador, as referências físicas da memória parecem diminuídas, quando não decadentes. Falidos, Ciro e Ana vão morar na periferia pobre de Sorocaba, num subúrbio chamado Terra Vermelha. Anita volta a trabalhar como faxineira, Ciro como carregador no largo do Mercado. O trabalho de carregar sacas de café e cimento é demais para Ciro, “as cãibras no corpo eram muito fortes e Ciro não podia acompanhar o ritmo dos colegas jovens nem dos que estavam calejados na rotina de burros de carga. (93) Aqui, o leitor não tem como deixar passar uma certa relação entre o passado e o presente de Sorocaba, a Manchester paulista, a cidade antiga com agora 350 anos : na época da fundação, os tropeiros conduzindo os burros de carga. No surto modernizador – de Sorocaba, de São Paulo, do Brasil – os trabalhadores pobres ainda como burros de carga, carregando mercadorias no lombo. Por certo que uma lição materialista para se pensar o avesso do progresso e dos mitos da modernização.
Já na parte final do Resumo de Ana, a necessidade faz com que Anita procure uma antiga patroa, para conseguir um emprego. Tornam-se, ela e Ciro, caseiros de uma chácara elegante perto da rodovia Raposo Tavares. A patroa, ficamos sabendo, é casada com um médico famoso, “parente por parte de pai do poeta Oswald de Andrade” (19). Esperta, a patroa se aproveita da dedicação de Anita, fazendo dela empregada doméstica e também secretária, “o que facilitava suas idas constante a São Paulo, onde tinha muitos amigos e fazia parte da sociedade.“ (20). Ciro sente-se bem na chácara, gosta de acordar de madrugada e capinar, lembra-se das viagens com o pai nos picos de Paranapiacaba, cuida das plantas e das flores em torno da casa. Num movimento interessante, afastou-se um pouco da vida urbana modernizada e “voltou a tomar café adoçado com rapadura, passou a fumar cigarro de palha e nas horas que permanecia ao lado da filha lia os livros que havia subtraído à penhora de seus bens.“ (21) Essa nova vida aproxima o casal, e Anita engravida pela segunda vez.
Se fosse vivida pelos de cima, a situação poderia parecer algo como um idílio campestre, uma saudável proximidade com a natureza, longe da poluição e da violência que o progresso traz para a vida urbana. Se fosse uma narração com sentido idealista, talvez se contrapusesse o mundo da roça, do caipira, da vida rústica, ao mesmo mundo urbano sujo, feio e barulhento. Como não é assim, além do trabalho na chácara Ciro passa a vender aguardente de um alambique na estrada de Votorantim. Pega alguns garrafões por semana, e vai vendendo de boteco em boteco. Será vendedor ambulante de bebida até o final da vida. Trabalho cansativo, de buscar os galões, transportá-los, passar a bebida para as garrafas, fazer a distribuição. No final, a vida de Ciro encontra a infância, mas por um viés que só poderia ser amargo: “Anos depois, admitia que o que mais o incomodava naquela atividade era a consciência de que abastecia bares que visitava com a mãe na infância, vendendo a mesma bebida que havia contribuído para matá-la.” (22)
O trabalho na chácara termina de maneira violenta, sempre indicando ao leitor como são ilusórias as proximidades entre os de cima e os de baixo, mediadas que são pelo trabalho, pela necessidade e pela dependência. Um simples equívoco, na anotação de um recado para o médico, faz com que Anita seja duramente criticada. No vértice, a violência :
“O médico, um homem alto e corpulento, estava visivelmente alterado e correu de braço erguido para bater na empregada. Mas naquele mesmo momento recebeu uma bofetada no rosto que o fez recuar completamente aturdido.“ (23). O gesto é forte e marca, no mosaico da memória, um momento de firmeza e dignidade, contra o arbítrio de um patrão. Mas o resultado não poderia ser outro : Ciro e Ana são despedidos, tendo que deixar a chácara no dia seguinte. Uma vez mais, a narrativa marca a inconciliável distância que separa o mundo das famílias, das fazendas e das fábricas, o mundo dos poderosos e influentes, do mundo das famílias dos que trabalham, necessitam do trabalho e vivem a corda bamba da dependência, andando no fio de uma navalha que, infalível, acaba cortando.
Na velhice, morando ainda mais na periferia da cidade, Ciro torna-se uma espécie de “líder espiritual” e, graças à demagogia política, um “morador benemérito”, com toda a ironia que acompanha esse estranho título. Com os aluguéis liberados pela ditadura militar, vem a rotina de despejos e mudanças, obrigando as seis filhas do casal a seguir desde cedo, como a avó materna, “ a rude rotina do trabalho compulsório“ (24). É nesse ponto do relato que o narrador, de volta à primeira pessoa, encontra Ciro depois de mitos anos. Na passagem, o mosaico da memória é outra vez contrastado com um presente modernizado, estranho, tendo ao centro os zumbidos da Companhia de Transformação de Energia Elétrica, vibrando em contraste com os filmes vistos no Cine São José na adolescência, e produzindo “uma sensação difusa de fanstamagoria. “ (25)
Envelhecido, com os dentes amarelos de nicotina, vestindo jeans e camiseta, Ciro reconhece o sobrinho e caminha em sua direção, satisfeito com o encontro. Diz ao sobrinho que os negócios vão bem, que vai comprar uma Brasília, que vai construir uma casa nova e, sem ser perguntado, informa “que as filhas estavam bem e que a mais velha ia estudar medicina e a do meio balé.” (26). Quanto às irmãs, Zilda e Lazinha, pouco se viam, tornando doloroso para Ciro o isolamento dentro da própria família. Sabiam que o coração de Ciro estava doente, mas que “apesar disso ele e a mulher haviam conseguido, com um esforço que durou meses, erguer uma pequena casa com tijolos feito à mão.“ (27), situada num terreno no mato e no alto, de onde se podia avistar as chaminés das fábricas. Ao invés do balé e da medicina, de uma vida menos definida pela crueza da necessidade material, “a faixa de terra tinha sido paga até a última prestação por Anita, agora operária-padrão de uma confecção de roupas, e pelas filhas mais velhas, que trabalhavam como secretárias durante o dia e faziam o supletivo à noite.“ (28) Processo que vai acompanhado de um forte ressentimento das filhas para com Ciro, que caíra na armadilha de prometer o que não poderia cumprir, isto é, uma vida melhor, uma ascensão social, o acesso a um mundo de prestígio. Como a promessa de felicidade não poderia ser cumprida e, ao invés do prestígio, da arte, da mundanidade social, das faculdades, dos empregos valorizados, vieram os baixos salários, os empregos mofinos e pequenos, os cursos noturnos para os pobres, a posição de Ciro na família torna-se difícil. No final do resumo narrado pela ponta pobre do processo, Ciro fica chocado ao descobrir que o namorado da filha mais velha era um mulato. De fato, um pedreiro discreto e educado, que tem um irmão, com o qual uma filha mais nova de Ciro também se casará. Unidos pelo casamento, no mesmo terreno onde estava a casa construída com o trabalho de Ciro e Anita, os dois irmãos pedreiros constroem mais duas casas, para viver com as mulheres. Os dois casamentos foram realizados juntos, e “Ciro assistiu à cerimônia com o traje feito pela mulher e assim que o cortejo saiu para a rua ele sentiu no rosto os grãos de arroz atirados pelos vizinhos. Nesse instante teve de chorar pela primeira vez desde havia muito tempo porque alguma coisa se completava naquele dia e ele não conseguia dizer o que era, embora o choro embalado pelo sino da capela falasse por ele e o aliviasse de um dor que o acompanhava fazia anos”. ( 29)
Em seguida, a narrativa é trazida para o presente, no episódio da praça do canhão. Uma vez ainda, o narrador contraste o cenário urbano do presente com o passado, como método de montagem do mosaico da memória e da experiência dos personagens. Ciro encontra o sobrinho e ouve o que é definido como “o último grande drama histórico da cidade “ : a Revolução Liberal de 1842”, em que Tobias de Aguiar, filho de Sorocaba, herdeiro de uma fortuna em escravos e imóveis, foi aclamado presidente de São Paulo por alguns patriotas, em oposição a D. Pedro II. Formaram um batalhão, que foi derrotado na ponte do rio Pinheiros, por soldados comandados experientes comandados pelo Duque de Caxias. Derrotados, os tais “patriotas” recuaram até Sorocaba, onde Tobias de Aguiar casou-se com a marquesa de Santos, para quem passou seus bens, fugindo depois para o sul do país, disfarçado como tropeiro. Sentado no banco da Praça, envelhecido mas satisfeito por estar ouvindo o sobrinho, fica registrada a resposta de Ciro : “ Tenho presente que o comentário que fez sobre o relato, ao levantar-se da mureta com as duas sacolas na mão, foi que um dos prejuízos que sentia por não ter podido estudar é que não conhecia o único lugar onde havia vivido.” ( 30).
Nascido em 1925, Ciro morre de enfarte no verão de 1990. Um verão difícil e chuvoso, em que as torrentes de água ameaçavam o terreno e as casas da família que, no entanto, tinham sido solidamente protegidas pelos dois irmãos pedreiros. Cansado, com as pernas inchadas, respirando mal, Ciro apresenta-se melancólico, coisa que Anita suportava mal, associando a fala melancólica do marido “ às suas pregações aos vizinhos, que haviam migrado do Norte. “ (31). No dia em que morreu, Ciro estava bem disposto, acordou cego e foi trabalhar. Andou pela cidade, despediu-se de antigos clientes, passou os dedos pelo reboco do Mosteiro de São Bento, comprou dois litros de leite e um quilo de pão e entrou na casa ao meio-dia, quando esteve com Anita pela última vez : “Anita chegou pouco depois e ao atravessar a soleira percebeu que Ciro estava tendo um enfarte. Ainda foi capaz de desabotoar a camisa empapada de suor, procurou reanimá-lo chamando-o pelo nome e no momento em que ele abriu os olhos e os músculos do rosto se descontraíram, a única coisa que ouviu direito foi uma pergunta – se ela sabia que ele gostava dela. Anita tinha certeza de que era uma hora da tarde e que por algum motivo estava soando o apito de uma fábrica. Não vinha de muito longe do barracão onde o marido acabara de morrer em seus braços : chegava do centro de Votorantim, sede do império industrial da família Ermírio de Moraes.“ ( 32 )
No final do resumo conduzido pela prosa precisa e concisa de Modesto Carone, distanciada e capaz de conferir imensa dignidade aos destinos dos personagens moldados pela necessidade e pelo sofrimento, o narrador conclui: “Quando o caixão é finalmente transportado para o interior do cemitério, agarro uma das alças e constato que o revés não abandonou Ciro até o fim, pois é numa tumba sem lápida que ele some sob a terra e no dia seguinte chega a notícia de que o corpo foi enterrado na cova errada.” ( 33)
Terminada a leitura, temos um forte sentido de realidade, a partir de um mosaico da memória montado a partir da ponta pobre e precária de um processo de modernização do capitalismo. Como o fio da memória familiar é puxado a partir desse ângulo muito preciso e definido, não se trata de buscar um narrador volúvel e cínico, na figura de algum canalha cordial da classe dirigente brasileira, invertendo uma acumulação literária pelo alto e resgatando do conformismo o mais importante escritor do nosso país, como fez Roberto Schwarz analisando Machado de Assis. No Resumo de Ana, é notável a força do distanciamento, decoro, dignidade e, nos momentos cruciais do relato, delicadeza do narrador, com alternâncias muito precisas entre a terceira pessoa objetiva e a primeira pessoa que participa da memória de sua família. A força da narrativa, por essa via, não deriva de um infindável jogo de fundos falsos, de falsas pistas, de misturas constantes entre realidade e ficção, de algum mise en âbime repetido pela enésima vez, como se fosse a última novidade da criação literária. Como é o caso de uma parte considerável da literatura brasileira contemporânea elogiada pela crítica. Muito menos se trata de jogar na cara do leitor, sem mediação e montagem, os dados crus da realidade bruta, com a intenção rasteira de chocar e, acrescente-se, bloquear o pensamento crítico.
No Resumo de Ana, o que se lê é uma narrativa madura, depurada, que se beneficia da melhor tradição literária moderna, sem fazer nenhum estardalhaço quanto aos procedimentos construtivos. O resultado é forte, porque a concisão condensa o efeito estético e amplia o campo imaginativo do leitor, que não precisa se desvencilhar dos excessos emotivos ou da exposição nua e crua “ da vida como ela é “. Limitados pela necessidade, pelo trabalho alienado, pela dependência e pelo favor, os personagens do livro não podem refazer suas vidas, nem ser redimidos. Mas o resumo exemplar que se lê por certo resgata a memória dessas pessoas comuns e anônimas, destinadas ao esquecimento e à irrelevância. Acrescente-se : distanciamento, dignidade, decoro, delicadeza nos momentos cruciais, sem nunca ceder à demagogia, populista ou sentimental, que acabaria por destruir a força da narrativa. Puxando o fio da memória pelo avesso da modernização, fica uma crítica rigorosa dos mitos do progresso e do crescimento econômico. Lançando uma luz diferente sobre o século moderno e modernista de São Paulo, capital e interior. Fica o avesso da hegemonia econômica, nos últimos anos traduzida em hegemonia política, graças aos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, e ao atual mandato de Luís Inácio Lula da Silva. Numa curiosa e difícil semelhança, em que o príncipe dos sociólogos e o antigo dirigente sindical convergem no projeto de garantir justamente a hegemonia do capital financeiro, industrial e comercial de São Paulo, no interior e na capital, no campo e na cidade. Seguidos por um cortejo de bufões, de tolos sentenciosos, de novos ricos, de arrivistas, de cooptados e de conformistas, fiéis servidores das forças conservadoras, fazendo o serviço sujo que esses grupos, de qualquer jeito, fariam.
O mosaico da memória que é o Resumo de Ana, no entanto, é montado sempre a partir da necessidade, do trabalho como necessidade, nunca como virtude. Não há elogio do trabalho, só a servidão que deriva da necessidade. Os personagens postos em posições servis, nunca virtuosas. A necessidade que leva às posições servis não é compensada por alguma virtude específica dos de baixo, dos pobres e dos remediados. Não tem manha, malícia, malandragem, picardia, nada que dê uma compensada: o progresso e a modernização do capitalismo são vividos pelos personagens de fato como uma catástrofe, uma sucessão de infortúnios e derrotas, que negam a vida e deixam marcas profundas, no corpo, na mente, na alma.
Se aparecesse como virtude, o trabalho faria figura de elogio do progresso e das qualidades empreendedoras dos fazendeiros, dos industriais e dos comerciantes de São Paulo, sejam eles das tais “famílias quatrocentonas”, ou filhos de imigrantes europeus que aqui chegaram no final do século XIX e no começo do século XX. As ruínas dos vencidos seriam, nesse caso, carregadas no cortejo triunfal dos vencedores, no passado e no presente.
Engrossariam o coro dos contentes, da velha e da nova classe dominante, junto com seus aderentes e divulgadores. Mas, como avesso da modernização, as vidas resumidas e exemplares de Ana, Ciro e suas famílias não cabem na moldura arrogante que fetichiza o progresso, os bandeirantes, os desbravadores, os empreendedores, os tocadores de obra, os que roubam; mas fazem, os que fazem do progresso um milagre ou um espetáculo, os que cabem naquela imagem grosseira que ouvi, no mesmo interior de São Paulo, talvez no começo da década de 1960, quando era menino : “ São Paulo é uma locomotiva carregando vinte e dois vagões de merda. “. O avesso disso são os trabalhadores que, por mais de meio século, trabalharam duro nas estradas de ferro como a Sorocabana. Foi o caso de Ciro, vale lembrar, com as mãos e braços cobertos de estopa suja, para não se ferir consertando os vagões dos trens. Mas que, mesmo assim, se feria e ficava marcado.
Resumo:
Este artigo faz uma análise do romance Resumo de Ana, do escritor brasileiro Modesto Carone, relacionando personagens, famílias, posições de classe, vida cotidiana, e o mundo do trabalho, no contexto da modernização conservadora do capitalismo- na cidade de Sorocaba, no Estado de São Paulo e no Brasil.
Palavras-chave: Literatura. Memória. Capitalismo.
Abstract:
This article analyses the novel Resumo de Ana, of the brazilian writer Modesto Carone, examining the relations between characters, families, class positions, daily life, and the world of work, in the context of conservative modernization of capitalism- in the city of Sorocaba, the State of São Paulo and Brazil.
Key-words : Literature. Memory. Capitalism.
NOTAS
1. CARONE, Modesto. Resumo de Ana. SP, Cia das Letras, 1998.
2. CARONE, Modesto. As marcas do real. Rio, Paz e Terra, 1979.
3. Idem, p. 40.
4. CARONE, Modesto. Dias melhores. SP, Brasiliense, 1984.
5. Idem, p. 93.
6. Resumo de Ana, p. 55
7. Idem, p. 50
8. Ibidem, p. 50
9. Ibidem, p. 55
10. Ibidem, p. 55
11. Ibidem, p. 59
12. Ibidem, p. 59
13. Ibidem, p. 62
14. Ibidem, p. 70
15. Ibidem, p. 72
16. Ibidem, p. 74
17. Ibidem, p. 76
18. Ibidem, p. 93
19. Ibidem, p. 93
20. Ibidem, p. 94
21. Ibidem, p. 94
22. Ibidem, p. 96
23. Ibidem, p. 97
24. Ibidem, p. 101
25. Ibidem, p. 102
26. Ibidem, p. 102
27. Ibidem, p. 104
28. Ibidem, p. 104
29. Ibidem, p. 107
30. Ibidem, p. 109
31. Ibidem, p. 110
32. Ibidem, p. 112
33. Ibidem, p. 113
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