Ana Laura dos Reis Corrêa, Alexandre Pilati, André Nepomuceno, Manoel Dourado Bastos, Germana Henriques de Sousa, Deane Maria Fonseca*
1. No fio da navalha
O crítico materialista da cultura caminha sobre o fio da navalha. A cultura que aí está hegemônica, testemunha da época do domínio do fetichismo da mercadoria no capitalismo tardio, é instrumento do aprisionamento da liberdade. Nesse contexto, a cultura justifica, além de produzir e reproduzir, a ideologia da normalidade calcada no sujeito enquanto produtor funcional domesticado (ou excluído) e contemplador (consumidor) cultural passivo. Por outro lado, o crítico sabe que, paradoxalmente, sem a cultura (ou o que resta a resistir), salteia-se arriscadamente para a barbárie, não para a revolução.
Diante de tais questões, que marcam nossa atitude como críticos e professores, estabelecemos, como objetivo deste trabalho, a tentativa de avançar um passo na discussão acerca do trabalho crítico, assumindo o risco do exercício de uma função que se realiza no fio da navalha, a fim de testar a validade da crítica como possibilidade de resistência teórica e também prática.
Trata-se de uma questão de certa maneira antiga e, por outro lado, sempre renovada. A relação entre arte e sociedade, sabemos, foi trabalhada incessantemente pela crítica e, ainda hoje, recebe diversos tratamentos, desde os que ainda insistem numa perspectiva excludente – isto é, ou se faz uma abordagem estrutural da obra ou se faz uma leitura sociológica da literatura –, até aqueles que encontram sentido nas formas artísticas a partir da sua associação com o lugar e a voz dos segmentos sociais, de preferência os oprimidos.
2. Para o crítico: as armas
O pensamento teórico tradicional assenta-se num conceito universal conservador, pois pressupõe o mundo como objeto pragmaticamente dado. Para ele, é natural a direção do progresso. Cabe ao sujeito, no máximo, com o auxílio da ciência neutra e da vontade, remendar a aparição concreta de aspectos e problemas inconvenientes à generalização da ordem da troca e da mercadoria.
Para a teoria crítica, é a organização estrutural dessa sociedade, em sua totalidade, que deve ser transformada por via de uma razão emancipadora historicamente possível, teórica e materialmente (administrativa e tecnologicamente). A autonomia concreta do homem é barrada pela divisão do trabalho e pelas diferenças de classe. Este mundo não é dado, mas resultado da dominação de classe, e por isso condenado de início.
Não cabe, então, considerar o trabalho profissional como socialmente útil, nem a especialidade compartimentada da ciência, uma vez que é preciso perguntar: a serviço de quem? Constatado que a situação dada não é, portanto, natural, mas historicamente formada (em processo) por um jogo de contradições da luta social entre classes, temos que a auto-determinação do sujeito, na busca do livre exercício de suas potencialidades, é vinculada concretamente à emancipação social.
A filosofia crítica já nasce política. Ao crítico cultural cabe considerar a cultura no interior do todo, pois a formação cultural é função da formação social-econômica. No entanto, nela intervém como refluxo que se torna material ao moldar atitudes, seja como reprodução, seja como tensão a contrafluxo. Nesse último caso, como exceção na cena atual, cabe ao crítico denunciar a cultura da mercadoria em nome da cultura da civilização para todos. Cabe-lhe a deformação, portanto, da cultura do consumo, num mundo cada vez mais povoado de “sujeitos monetários sem dinheiro” (Schwarz, 1999, p.171).
Carne-a-carne com o objeto, resta ao crítico o aguilhão de perseguir a autonomia emancipadora, sabedor de que ela depende fundamentalmente da transformação social. O seu esquecimento é condição maior da dominação. Sua tarefa é, ao menos, despertar a incômoda lembrança para que, mesmo enevoada pela ideologia, seja certeira na reação que causa aos incautos e aos interessados. Cabe ao crítico, ao mesmo tempo, demonstrar e exercer o pensamento como trabalho no real, como operador que, não por acaso, suscita o temor prático da mudança: a dor de perder a ilusão de normalidade estabelecida não se nomeia aleatoriamente como conformismo.
Nesse sentido, a reação dos que dominam e lucram com o estado de coisas ordenado pela divisão do trabalho não é despropositada, sob seu ponto de vista, quando promovem ou fazem coro para a desqualificação do pensamento teórico, quando este ameaça a generalidade da rotina, e não só a ornamenta. Por outro lado, é possível que a crítica atue no estado de coisas apenas para visar à desestabilização irresponsável ou inconseqüente do estado de coisas, como que se esforçando para o bom andamento, sem questionamento, muito menos contestação, de seus negócios e sua posição de poder. Daí vemos crescer um dilema do exercício da crítica. Cabe ao crítico, pois, insistir no déficit da negatividade necessária para fazer do fio da navalha, caminho; ainda que, quase sempre, marginal, “não-profissional”.
Um exemplo imanente do trabalho do crítico é a análise da obra de arte, dada a possibilidade de sua difusão. Sabemos que a autonomia estética é proporcional ao afastamento imaginado em relação à realidade, tanto maior quanto o retorno para criticá-la faça-se forma, isto é, assinalar contradições, apontar identificações ou quebras de preconceitos, valores, comportamentos historicamente genéticos.
Trabalhar conceitualmente essa memória, ao mesmo tempo percepção e proposição, bem como traduzi-la provocativamente em matéria para reflexão é a proposta do crítico. Assim, também apontar algum gozo pelo negativo (novo conhecimento em relação à realidade naturalizada), assinalando e compartilhando brechas, fissuras, fraturas que possibilitam à consciência, teórica e/ou concreta, vislumbrar a utopia da esperança sob a razão desencantada feita estrutura dominante de vida: a inquietação sistemática do leitor, a mobilização de seu desejo, como medida da validade da obra literária.
3. Candido: crítica sem descanso
No Brasil, é preciso salientar, no que se refere à questão da crítica, o ritmo diferente: lento, diverso, negativo, complexo. Aqui, a social-democracia clássica, por assim dizer, seria revolução. O grau superlativo das necessidades de sobrevivência coloca à consciência da negação dialética da estrutura social uma dupla dificuldade à presença da contradição: diante do imenso déficit de democracia e cidadania em seu sentido mais básico, como pensar, sem a sensação de abismo indissolúvel, na radicalização cultural?
No campo de atuação complexo que se apresenta ao crítico, insere-se o pensamento de Antonio Candido, especialmente o da Formação da literatura brasileira e da “Dialética da Malandragem”. A partir de um processo crítico acumulativo em relação às obras de seus predecessores, o autor realiza uma investigação crítica da tradição e seu processo formativo. Nessa investigação há, sem dúvida, uma novidade fecunda, porque carrega um ímpeto que a torna mais do que uma narrativa do processo de acumulação literária ou do momento social a que as obras correspondem.
Essa possibilidade fecunda de intervenção no presente se relaciona ao clima irrepetível da vida intelectual dos anos 40 e 50 do século passado em São Paulo, de que os organizadores da Revista Clima souberam dialeticamente aproveitar, ou seja, sem aderir ao ímpeto modernizador, tirar dele a força-motriz do estudo da cultura como crítica social.
Em Formação da literatura brasileira, aparecem dois novos traços fundamentais para a ocorrência de uma articulação diferenciada e fecunda: 1) trata-se de uma abordagem da literatura brasileira que não faz oposição entre o estético e o social, mas busca a integralidade estética da obra como síntese do movimento histórico; 2) trata-se da constatação da formação do sistema literário _ suas origens, seus momentos decisivos, continuidades e rupturas e sua consolidação _ que se dá em uma sociedade ainda não consolidada do ponto de vista do progresso social.
O primeiro traço nos interessa como parte fundamental de um legado que nos cabe, pelo menos enquanto houver confronto entre a vida e a ficção. Caso esse confronto não mais se proponha à sociedade brasileira, seria porque a literatura nacional (e aqui importa muito a nova pressão mundializante que vende uma universalização ilusória) tornou-se esvaziada ao ponto de ser apenas o reflexo das sutilezas e até das obviedades do mundo do capital e da mercadoria, ou porque nossa sociedade se completou e se emancipou, a exemplo de nosso sistema literário, a ponto de se tornar uma organicidade coesa?
Essa segunda possibilidade, que talvez nos afigure mais como ingênua do que utópica, nos leva até o segundo traço, isto é, à articulação feita por Antonio Candido na Formação da literatura brasileira e, também, à tensão entre teoria e prática que sempre surge na abordagem emancipadora, mas que dificilmente se cumpre sem a problematização de suas complexidades e sem o peso angustiante de seus antagonismos, fundamentais para uma relação fecunda entre teoria e prática emancipadoras.
“Dialética da malandragem”, como salienta Roberto Schwarz, é o primeiro estudo literário propriamente dialético no país, escrito justamente quando as previsões desenvolvimentistas de progresso social e emancipação política começam a se turvar de forma significativa, impondo à sociedade um processo de modernização brutalmente desvinculado do progresso social e apoiado por um nacionalismo tacanho, cujo saldo da equação “Brasil: ame-o ou deixe-o” foi exatamente a desagregação e a desapropriação do objeto a ser amado ou abandonado. Escrever “Dialética da malandragem” naquele momento foi realmente um gesto relevante de intervenção. Junte-se a isso o fato também relevante de que, sem se curvar à voga do estruturalismo e sem se fixar nos termos e conceituações do marxismo (sua inspiração essencial), Antonio Candido realiza um ato crítico que põe em prática a força produtiva do programa dialético, liberando-o de seus contornos exclusivamente rituais e dogmáticos.
Os personagens de Memórias de um sargento de milícias, segundo Antonio Candido, circulam entre as esferas sociais da ordem e da desordem, consideradas no ensaio para além de seu juízo moral veiculado pela própria ordem em relação ao seu campo e ao seu oposto. Basta notar como a dialética da malandragem gera a imagem fabulosa e real de um “mundo sem culpa”. A dialética da ordem e da desordem é simultaneamente o eixo de estrutura da narrativa e redução estrutural de um dado social e histórico externo à literatura: “trata-se da imitação de uma estrutura social por uma estrutura literária” (Schwarz, 2002:132). Isto é, a dialética da ordem e da desordem fundamenta a realidade e a ficção, uma vez que participa de ambas: é a própria forma do romance e é, também, a formalização que rege a vida dos homens livres na sociedade brasileira escravocrata, que não eram escravos nem senhores, enfim, homens que não podiam abrir mão da ordem social e, em contrapartida, estavam impossibilitados de viver dentro dela.
É como “sondagem do presente” que a crítica dialética, em Candido, torna-se produtiva e fecunda, uma vez que recupera o ímpeto transformador da ficção em relação à vida e, ainda, produz um novo impulso em direção à fugacidade do tempo presente, aberto a reviravoltas, tensões, expansões, repetições e possibilidades da vida que acontece.
Se na sociedade escravocrata consolida-se o sistema literário brasileiro na obra de Machado de Assis, o “Dialética da malandragem” é produzido no regime repressor e ditatorial dos anos 70, que é alcançado e divisado pela própria estrutura da crítica de Candido, uma vez que o espírito dos “noventa milhões em ação” ocupa simultaneamente o campo da ordem e da desordem, entre as políticas públicas retrógradas e a euforia popular com a copa do mundo ou com o carnaval. Nesse sentido, a crítica de Antonio Candido é sem dúvida uma prática social e histórica, é fato, na medida em que é ela mesma um processo social que constitui a nossa história. Se, como tal, esse processo não foi ainda assimilado pela crítica em nossos tempos, como de fato prova a experiência, de modo que se possa afirmar a consolidação do avanço que a obra de Antonio Candido constitui, temos, então, a configuração de um descompasso estrutural cujas razões devem ser investigadas.
No legado histórico do pensamento nacional se formularam as idas e vindas dos processos sociais que, a partir do golpe e dos mecanismos de modernização, mercantilização e globalização da sociedade brasileira, se tornaram mais vindas do que idas. O atraso é o mesmo, mas toma novas formas: ele se moderniza, se fantasmagoriza, no sentido em que se mascara numa possibilidade de aquisição virtual e configura um país capitalista à margem do capitalismo. O tempo fechou, as possibilidades desenvolvimentistas ou revolucionárias agora são amenizadas e têm a pretensão de escapar à dialética dos mecanismos sociais. O atraso, por sua vez, potencializou-se a tal ponto que não reclama mais abrandamento, mas funciona como instrumento de amenização dos ímpetos de transformação. A posição dialética, para nós, é extremamente difícil, e a crítica literária e cultural, que aspira à mundialização, raramente se lança na direção vital das alternâncias dos eixos cosmopolita/local, avanço/atraso, ordem/desordem, edificação/ruína. A crítica acaba optando por um dos pólos, fazendo ela mesma uma alternância entre diletantismo e militância.
Retomando o motivo do fio da navalha, poderíamos dizer que, além de laminado em aço cortante, o fio permanece atado em nó de rede. Seu desate não está à mão única do pensamento crítico: a cultura é autônoma, diversa, e anda a tempo vário, com defasagens vertiginosas neste Brasil “ornitorrinco”. Sem a sua teorização, contudo, muito pouco resta aos agentes feitos sujeitos políticos concretos, e aos indivíduos à procura de sujeito histórico, para contornar o instinto fetichista, mesmo que oposicionista, dessa meada em que estamos todos enredados. A saída, se é que seja viável, é matéria de vida e morte há muitas gerações. O que não permite muito descanso.
4. Um exercício com Gullar
Efetivar uma crítica dialética, já sabemos, exige bem mais do que uma postura diletante e mesmo mais do que uma postura militante. Exige a formulação incessante de um ato ético capaz de suportar e formular os antagonismos de nossa história, de nossa literatura, de nossa práxis. Exige encarar a insuficiência de nossa crítica, sob pena de que, sem esse enfrentamento, o ato crítico fique aprisionado na moldura acadêmica e burocrática da educação formal e dos livros, acomodada em um vir-a-ser que passa a ser, ele mesmo, o seu único sentido, uma cena congelada como a pose da “Fotografia de Mallarmé”, poema de Ferreira Gullar, presente em Muitas Vozes.
Na obra lírica de Gullar, percebe-se uma inquietação com os limites da arte, que se traveja de modo diferente conforme o momento em que se dá sua produção. Há, todavia, algumas constantes formais da sua poética, que podemos perceber em estado latente ou evidente em cada uma das fases: as contradições, que aparecem desde o nível profundo do texto até seu nível formal mais evidente; a atitude de “desfibramento” em busca do oco das coisas, que conduz o raciocínio do eu-poético; a enunciação poética a partir de um lugar poeticamente construído como ameno (locus amoenus).
Em Muitas vozes, encontramos o poema “Fotografia de Mallarmé”, o qual inserimos na discussão aqui proposta acerca da crítica e da práxis, a fim de obter da análise do poema algumas indicações sobre como o problema entre arte e prática toca também o autor literário e seu leitor.
Eis o poema:
é uma foto
premeditada
como um crime
basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado
_ um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá _ e
especialmente a mão
com a caneta
detida
acima da
folha em branco: tudo
à espera
da eternidade
sabe-se:
após o clique
a cena se desfez
na rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel raso
mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
ali
do fundo
da morte
olha
(Gullar, 1999)
Somos herdeiros de um processo social e participamos de suas continuidades e rupturas. Nossos atos na práxis diária da pesquisa, docência e extensão nunca são inócuos em relação ao processo social, seja quando são “o esforço de toda vida para não se resignar à compartimentação que o próprio processo impõe” (Schwarz, 2002:146), seja quando são a repetição infinita da pose de Mallarmé, exposta no seu avesso de dinâmica histórica pelo poema de Gullar.
Aprofundemos, então, o olhar sobre tal pose. A situação que temos descrita em “Fotografia de Mallarmé” é a de uma voz lírica que fala, ao mesmo tempo em que observa uma fotografia do escritor francês Stéphanne Mallarmé. A voz lírica vai, aos poucos, levantando os detalhes dessa imagem, não apenas no sentido mais aparente, mas também buscando, a partir do aparente, resgatar o que não se pode enxergar na fotografia. A substância fundamental daquilo que não se pode enxergar à primeira vista é a premeditação da pose em que se encontra o poeta retratado.
O movimento do olhar do eu que fala estabelece-se, então, a partir da observação da foto como um todo e vai percorrendo cada detalhe do poeta retratado: seus ombros, sua manta, a caneta acima do papel. Todos esses elementos arquitetam-se montando um cenário marcado por aquilo que se poderia chamar de frágil equilíbrio, que, ao ser evidenciado pelo exercício do poema, demonstra a premeditação da pose e desmonta a harmonia arranjada adrede na imagem.
A harmonia desmascarada, por sua vez, fratura-se e evidencia os seus constituidores contraditórios. Por isso, pode-se dizer que o poema é construído com base em oposições fundamentais, das quais o poema é a síntese estética. Tal oposição gira em torno dos conceitos de movimento e de pausa.
Se a fotografia que o eu-lírico olha é movimento integrante de uma seqüência de outros tantos estabelecidos pela tradição literária, os quais contribuíram para reificar a figura de Mallarmé como fundador da poesia contemporânea, por outro lado, não há como negar o pertencimento do poema “Fotografia de Mallarmé” a essa tradição de reificação.
Ao mesmo tempo, portanto, o poema é confirmação e exposição das contradições da tradição literária que, tantas vezes, fetichiza a figura do poeta francês. Nessa perspectiva, o que leva o eu a falar sobre o arranjo da foto é também seu caráter de construtor de arranjos.
A síntese da dialética, no poema, resolve-se pelo avesso, pois não se dá na busca de harmonia, mas de tensionamento de opostos. O injetar da vida na pose de Mallarmé, por Gullar, evidencia o caráter de que a arte não é vida, mas harmonização utópica de suas contradições. Noutro sentido, porém, o texto de Gullar recupera as fissuras da vida por trás da pose e dá a ver o que se pode achar de histórico por sob o símbolo Mallarmé.
Como já vimos, a enunciação lírica de “Fotografia de Mallarmé” dá-se sobre um movimento de oposição entre dois elementos que são reiterados por diversos recursos poéticos dentro do texto. Tais elementos são o movimento e a pausa. O poema expõe isso em diversos níveis textuais.
Notem-se, por exemplo, os primeiros versos da segunda estrofe. As quebras de versos assumem exatamente a tensão entre movimento e pausa. A ausência de vírgulas exige movimento na leitura, mas as quebras de versos, gerando enjambements inesperados, geram pausas artificiais na seqüência da leitura (especialmente em das roupas os cabelos / a barba tudo). Também é interessante notar o modo como o verso composto pelo verbo basta, cujo conteúdo semântico aponta para a pausa, imprime movimento ao poema, pelo deslocamento do verso em relação aos demais da mesma estrofe. Algo idêntico ocorre com o verso deslocado composto apenas pelo verbo sabe-se, na estrofe seguinte: um verbo de pensamento, apresentado em forma de sujeito indeterminado, representa uma verdade pré-estabelecida, ou imóvel evidencia-se em um verso que se movimenta em relação aos demais. Novamente, temos um item lexical que denota ausência de movimento, em contraste com o movimento de deslocamento do verso na estrofe.
Para aprofundarmos um pouco mais a análise, observemos que, no nível lexical e semântico, em relação direta com a idéia de pausa estão os termos fotografia, arranjo, preparado, pose, suspensão, morte. Ainda nesse nível textual, encontramos outros termos que denotam movimento, como por exemplo: gesto, fluir, clique, vida, olhar, olha.
Na tensão dialética entre pausa e movimento, portanto, a estrutura do poema vai criando uma fricção entre um e outro lado que gera um incômodo no leitor. Tal tensão é estabelecida por certa atitude de exposição de uma idéia que se insere entre o movimento e a pausa: a idéia de que o movimento é cessado de forma premeditada. Isso é percebido pela inclusão de expressões, tais como: premeditada como um crime, adrede preparado, pose.
Grosso modo, temos então, a seguinte equação estrutural no poema de Gullar: MOVIMENTO – ARRANJO PREMEDITADO = PAUSA. Uma palavra, entretanto, pode nos ajudar a ir além da simples constatação da fórmula segundo a qual as idéias do autor se arquitetam em forma de poema. Tal palavra é eternidade. O que Gullar flagra, com seu texto rico em tensão entre o movimento e a pausa, é a construção da eternidade, de maneira premeditada, a partir da vida. Note-se que o poeta está na foto com a caneta acima do papel, e não sobre o papel. O caráter “aéreo” do trabalho poético está evidenciado no poema de Gullar como pura premeditação. A eternidade está ligada à gratuidade da literatura, ao caráter de requinte do objeto literário, ao qual especialmente a lírica não consegue escapar. Mas a gratuidade e o requinte não surgem por milagre no mundo. Recordando a equação: eternidade é pausa e esta é alcançada pela subtração da vida pela premeditação artística, crítica, social ou ideológica.
Na cultura da mercadoria e do espetáculo, a pose é um dos elementos fundamentais. Em detrimento da vida, a lógica que rege a maior parte das relações humanas é a da mercadoria. As relações entre homens passam a ser relações entre coisas. Dessa coisificação participa também a literatura.
5. Para além da crítica?
A forma artística é capaz de mimetizar o processo social que lhe gera exatamente ao negar-lhe. Quando é bem sucedida, ela formula problemas e propõe respostas além de si mesma. A crítica literária, como aquela que divisa os problemas sociais colocados formalmente pela obra, só é capaz de ultrapassar o supracitado crime estético-social quando busca levar a cabo o programa emancipador, que não se produz apenas na literatura, mas também fora dela. Tal programa só se faz possível desde as condições materiais.
Não podemos negar que a crítica materialista, apesar de não assimilada, possui lugar garantido no meio acadêmico e que galgou posições editoriais (até o paroxismo da citação em novela da Globo – Schwarz na boca de Toni Ramos, Antonio Candido como personagem de mini-série).
A promessa de transformação social, todavia, foi relegada a assunto. Por determinação supostamente metodológica, o objeto e a posição política são sacrificados em favor do rigor acadêmico. Da década de 1960 para cá, a animação cultural de esquerda finalmente encontrou o seu lugar, realizando suas posições no inverso da promessa emancipatória.
Todas essas questões dizem respeito a nós. Não basta apenas discutir nossos trabalhos ensaísticos, que, pela sua natureza dialética, podem conduzir o debate a outros pontos, qualitativamente diferentes. Uma questão que se faz pertinente é a de pensar como potencializar a repercussão desses achados críticos numa dimensão social que ultrapasse o espaço intelectual institucionalizado.
O ponto crucial é que o nosso momento já não é o de Candido e Schwarz. Se, em certo sentido, contamos com uma grande vantagem (temos essa herança), por outro estamos em situação imensamente desvantajosa: a economia feita cultura, a cultura transformada em mercadoria, a educação como entendimento do mundo e porta para ação social totalmente desqualificada, os cursos de letras cada vez mais reduzidos a espaços para proliferação de discursos mirabolantes e maquiavelicamente desinteressados da cultura como política, tudo isso pode até mesmo inviabilizar o nosso papel de herdeiros. Para nos mantermos minimamente iguais, temos que avançar. Nesse momento em que a idéia mesma de Formação pode ser capturada pela instituição acadêmica e mercadológica, o que nos cabe fazer? Produzimos teses e outros trabalhos de qualidade, isto é bom; teses e trabalhos de qualidade que são bons, não só porque academicamente pertinentes e consistentes, mas também, e sobretudo, porque são interpretações materialistas da sociedade brasileira e mundial, mas corremos o risco de nos institucionalizar também. Não parece esse o projeto de grupos como o Formação, mas podemos nos tornar os especialistas em Candido e Schwarz com espaços nos departamentos, institutos e faculdades de letras.
Que literatura pode também não ser um tipo de requinte que abrilhante o capital cultural dos que estão de bem com a vida, isso nós todos sabemos, mas precisamos dizer isso a quem tem necessidade de literatura, aqueles para os quais a literatura é uma coisa vital, aqueles que continuam à margem de toda discussão sobre a literatura, as classes trabalhadoras. É preciso retomar essa questão que nunca nos abandonou. Nossos projetos educacionais parecem ser a porta que se coloca mais claramente agora para nós. Neles e no que mais fizermos, a literatura deve ser tomada como chave de conhecimento crítico, uma vez que urge a emancipação social, para a qual não podemos dar as costas. Sem avançar por aí, ou sem produzir outras formas de avanço, ficaremos prisioneiros do que não queremos.
Resumo
Neste trabalho pretendemos refletir, de forma coletiva, acerca da questão que a crítica materialista em nação periférica nos propõe: como pensar a Formação hoje como uma categoria de mediação entre forma literária e processo social? Tal questão estabelece também uma outra: a discussão da relação, ou da possível passagem, da crítica à prática política. O objeto da discussão está centrado nas tensões apresentadas pela argumentação crítica de Antonio Candido sobre a formação da literatura brasileira, e pela posterior análise e crítica materialista do fundamento desta literatura, bem como na avaliação estético-social, ou histórico-estrutural, de Roberto Schwarz. Este legado enseja a tentativa de avançar um passo na discussão acerca do trabalho crítico, assumindo o risco do exercício de uma função que se realiza no fio da navalha, a fim de testar a validade da crítica como possibilidade de resistência teórica e também prática.
Palavras-chave: crítica materialista, formação da literatura e da nação, emancipação e prática política
Abstract
In this work we intend to reflect, collectivelly, on the question that materialistic criticism in peripheryc nation puts to us: how to think Formation nowadays like a mediation category between literary form and social process? Such a question sets up another subject: the discussion on the relation, or the possibility of passage, from criticism to political practice. The object of the discussion is centered in the tensions presented by the critical argumentation of Antonio Candido concerning the formation of brazilian literature, and the farther analysis and materialistic criticism of the foudation of this literature, as well as in the social-esthetical, or structural-historical evaluation, by Roberto Schwarz. This legacy gives the opportunity to attempt to move forward a step in the discussion about the critical work, taking the risk of exercising a function that realizes itself on the razor-edge, aiming to test the validity of criticism as possibility of theoretical, and practical too, resistance.
Key-words : materialistic criticism, literature and nation formation, emancipation and political practise.
Referências Bibliográficas:
ADORNO, T. W. Crítica cultural e sociedade. In : Prismas-crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998.
_______. Dialéctica negativa. Madrid: Taurus Ediciones, 1975.
_______. Educação e emancipação. Trad.: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2000.
_______. “Notas Marginais sobre Teoria e Práxis”. Retirado no site www.geocities.com/Paris/Rue/5241/tadorno1.htm, em 16.08.2004.
_______. "O fetichismo na música e a regressão da audição". In: Os pensadores – Adorno. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
BASTOS, Hermenegildo. A estética da mercadoria no poema “O açúcar” de Ferreira Gullar. Crítica marxista, n. 14, 2002.
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade.São Paulo: Duas Cidades, 1998.
________________. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1997, v.1 e 2.
GULLAR, Ferreira. Muitas vozes, em Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: Textos Escolhidos : Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas; traduções de José Lino Grünnevald ... ( et al.). São Paulo: Abril Cultural, 1980 ( Os pensadores).
______________ . Filosofia e Teoria Crítica. (Idem).
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
_________________. Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! : cinco ensaios sobre o 11 de setembro e outras datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003 (Coleção Estado de sítio).
* O grupo é formado pelas professoras Ana Laura dos Reis Corrêa e Germana Henriques de Sousa, ambas da UNB, e pelos doutorandos Alexandre Pilati, André Nepomuceno e Deane Maria Fonseca da UNB e Manoel Dourado Bastos doutorando da UNESP.
anterior | S U M Á R I O | próxima |