CONHECIMENTO, EXPERIÊNCIA E LITERATURA: A HUMANIZAÇÃO DO HOMEM

 

Anselmo Pessoa Neto·

 

Esse tema tem a vastidão do mundo e a idade do homem. Eu, que sou da área de Letras e trabalho com literatura, sinto uma grande dificuldade em encontrar o ponto adequado de entrada em nosso assunto. Isto porque a literatura desempenha, entre outras funções, como a de entretenimento, a de evasão, e a de jogo, a função primordial de proporcionar conhecimento e, a função ainda mais fundamental, de participar de forma preponderante e singular da própria humanização do homem. Dito assim, de maneira rápida, pouco percebemos da complexidade do que apenas foi afirmado. Em verdade, parece haver uma contradição em termos. Ou não seria uma espécie de truísmo afirmar que o homem é um ser humano? Se for assim, como poderia o homem fazer com que ele próprio e os seus semelhantes se tornassem ‘mais’ homens por meio da literatura? Bem, por aqui começamos a ver como a questão é verdadeiramente complexa. O problema é que o homem nem sempre foi homem assim como o conhecemos hoje, o que somos hoje é fruto de uma longa evolução histórica, se vocês me permitirem um outro truísmo. Evolução em sentido físico, mental, econômico e cultural. Sabemos que a transformação do homem se dá tanto por meio de adaptações a um novo hábitat, como também em reação a mudanças climatológicas, geológicas, econômicas e/ou culturais na natureza e na sociedade. E, ainda, e fundamentalmente, por meio do trabalho.

Portanto, a evolução do homem é fruto tanto do fato de simplesmente estar no mundo (no sentido de que a adaptação é instintiva) como de sua ação para sobreviver nesse mundo. Todas as transformações/adaptações do homem são incorporadas à espécie por meios biológicos e culturais ou vice-versa. Daí que, por longo tempo e ainda hoje, estabeleceu-se uma separação entre as maneiras como o conhecimento e a experiência são acumulados: de um lado se teria o acúmulo de experiência pelo conhecimento empírico e de outro o acúmulo de conhecimento pela experiência cultural[1]. Somos levados, então, a crer e a desejar que o ser humano evolua sempre, e acabe, por fim, repetidas vezes, se transformando em um “novo homem”. Ensaiando agora uma resposta ao problema acima colocado, ou seja, de como a literatura participaria da humanização do homem, o que poderíamos dizer é que aquele animal que, por n características, condicionou-se chamar de homem na origem da humanidade, continua o mesmo animal, em certos aspectos, em plena era moderna e, ao mesmo tempo, em muitos aspectos, deixou de ser aquele ‘mesmo’ animal. Resumindo em palavras pobres, o bicho homem de quando surgiu a espécie é e não é o bicho homem do século XXI. Nesse sentido, é aqui que entra o papel da cultura e, no caso específico do discurso que estamos tentando construir, é aqui que entra o papel da literatura. Um dos fatores preponderantes na diferenciação entre um homem atual e seu antepassado é o grau de leitura e absorção de conhecimento de um e outro. Da mesma forma, entre cidadãos contemporâneos. O homem culto, apesar das características da espécie animal, está mais próximo de um ideal de humanização do que o sujeito inculto.

A literatura é o maior repositório de conhecimento e experiência que a humanidade já produziu, às vezes discorrendo inclusive sobre o que não foi ainda produzido ou sobre o que não está ainda manifesto. A literatura, uso o termo aqui em sentido amplo, isto é, refiro-me não somente a obras de imaginação, é fonte privilegiada para se buscar conhecimento e experiência. O homem cultivado, isto é, aquele ser que se preocupa com a sua formação, com a sua humanização, vive com os seus livros. Os seus livros fazem parte dele, o exprimem e ele aprende a se exprimir a partir de suas leituras. A leitura de um livro tem caráter ambivalente, pois é expressão do homem e atua na formação do homem[2].

Para Augusto Meyer:

 

Se não fosse a literatura – poesia, ficção – nada saberíamos do mistério individual dos outros, do seu mundo interior, da multiplicidade psicológica do homem. O terreno da literatura é o da Erlebnis de Koffka, aquela parte dos outros, ou de nós mesmos, que só pode ser conhecida através da confidência.

Sob este ponto de vista, os pobres psicólogos devem tudo aos escritores. A maior riqueza de revelações psicológicas está acumulada em dramas, romances, poemas, autobiografias, onde aparece o homem real concreto na sua “vivência” irredutível à observação exterior. E a literatura é confissão direta ou indireta, confidência ou lirismo. ‘Madame Bovary c’est moi’, dizia Flaubert, desmentindo todas as teorias estéticas.

Por isso mesmo, o exercício da leitura, que parece uma simples forma do prazer artístico, pode ser interpretado como necessidade de simpatia humana e de compreensão psicológica. A leitura me parece uma escola de boa vontade.”[3]

 

O “conhece a ti mesmo”, do oráculo de Delfos, pressupõe uma indagação de como fazê-lo, isto é, como fazer para conhecer a mim mesmo? A passagem acima do crítico-artista gaúcho responde sugerindo a leitura de dramas, romances, poemas e autobiografias. A literatura, portanto, humaniza o homem e, ainda, é a maior fonte de conhecimento do homem sobre o próprio homem. O pensador do caráter “ondulante e variado” do ser humano e criador do ensaísmo moderno, Michel de Montaigne, cunhou a célebre fórmula de que “cada homem leva em si a forma inteira da humana condição” (chaque homme porte la forma entiere de l’humaine condition), e a condição humana em nenhum outro lugar é tão completamente revelada como na literatura e no seu gênero crítico, o ensaio de estirpe montaigneiana. Mas, devido à inconstância do homem diagnosticada por Montaigne, a separação entre leitura e experiência de vida vem à tona de tempos em tempos. Para os fautores dessa separação, a literatura obedece a uma série própria. Um texto seria, nesse sentido, sempre caudatário de um outro texto preexistente e, portanto, pouco teria a que ver com a experiência prática e/ou histórica. De forma alargada, pois fala de leitura como um todo e não somente de leitura de literatura, Italo Calvino põe termo à questão (embora momentaneamente, como vimos, porque ela estará sempre sendo recolocada) quando, mais uma vez, esclarece que:

 

As leituras e a experiência de vida não são dois universos, mas um. Toda experiência de vida para ser interpretada chama certas leituras e funde-se com elas. Que os livros nascem de outros livros é uma verdade só aparentemente em contradição com a outra: que os livros nascem sempre da vida prática e das relações entre os homens.[4]

 

E de vida prática a literatura está repleta. Em um dos livros mais célebres da literatura italiana, I promessi sposi[5], de Alessandro Manzoni, temos um fato histórico notável que guarda relação com uma experiência relativamente recente da sociedade brasileira. O livro, que é um romance histórico, entre outros episódios conta de um congelamento do preço do pão ocorrido na cidade de Milão no século XVII. O autor não somente narra o ocorrido, ele clama que aquela experiência seja assimilada pela humanidade. De forma resumida, o episódio é mais ou menos assim: devido à guerra, ao desperdício e a condições climáticas desfavoráveis, Milão, no ano de 1628, enfrentou uma grande escassez de farinha de trigo e, como conseqüência, um forte aumento no preço do pão. A fórmula encontrada pelo governante da época para solucionar o problema e acalmar o povo que se desesperava em busca do alimento foi tabelar o preço do pão. Foi estipulado que se vendesse por trinta o que era vendido por oitenta. Era uma solução, o autor ironiza, como a da mulher que pensa rejuvenescer alterando a data de nascimento. Ato seguinte ao do tabelamento, o produto sumiu do mercado e o povo, fiscalizador, saiu às ruas, saqueou e queimou.

O tabelamento ou congelamento do preço de um bem é, como outras experiências dos povos, cíclica. Embora o congelamento, como tudo que se repete, seja, às vezes, arremedo dos anteriores. O próprio Manzoni adverte que a França Revolucionária incidiu no mesmo erro. E nós podemos dizer que também já experimentamos desse fel (mel?), quem não se lembra da experiência do cruzado?  Por outro lado, a moeda forte brasileira, o real, no seu surgimento valer mais do que o dólar também não é uma medida tão artificial quanto o congelamento de preços, quando o problema é de falta de matéria prima, no caso do pão, e, no caso da moeda, de lastro econômico da nação? Daí concluir-se que também a experiência negativa, ainda que documentada, está sujeita a repetir-se, ou por ignorância, ou por má fé.

Neste ponto gostaríamos de levantar uma outra questão, a que diz respeito à idéia bastante difusa do prazer da leitura. Nessa verdadeira palavra de ordem, está sedimentado o entendimento de que a leitura leva à felicidade. A propaganda da leitura tem como mensagem subliminar a frase: leia para ser feliz. De outra ordem, mas com o mesmo grau de problematicidade, é a noção de que uma sociedade mais igualitária, ou socialista, seria composta de cidadãos mais satisfeitos consigo mesmos. Jubilosa confusão. A leitura, de modo mais geral, e a literatura, de forma mais particular, não podem proporcionar felicidade ou prazer, no sentido piegas e banal dos termos, assim como uma sociedade mais justa, ou socialista, não instauraria o paraíso na terra. A discussão é de outra ordem. O que podem proporcionar tanto a leitura como uma sociedade mais igualitária é a satisfação de necessidades primárias. Uma como a outra, para retomar o nosso fio condutor, podem contribuir para a humanização do homem. Podem elevar o padrão de suas necessidades e o nível de seus prazeres. O crítico literário de língua inglesa, Harold Bloom, talvez com o intuito de distinguir o tipo de prazer que poderia ser proporcionado pelo ato de leitura da grande obra de arte, o chamou de prazer difícil. E é deveras assim, a grande obra de arte não trata de sentimentos banais de forma banal, não é entretenimento puro ou gozo sem dor. Ela, a grande obra, chama uma certa dose de sofrimento, de provação, de experiência e é, de alguma forma, iniciática. Aliás, a função de iniciação, que é, a rigor, transmissão de um certo tipo de conhecimento, é precípua nos contos populares da tradição oral universal. Mas, do mesmo modo que formas simples em literatura transmutaram-se em formas complexas, os nossos sentimentos e visões de mundo também tornaram-se mais intricados. E o prazer difícil que a obra de arte pode nos proporcionar, acompanha, expressa, propulsiona e atua na compreensão e para a transformação do mundo e de nós mesmos.

Logo, faz-se mister separar o joio do trigo também em literatura, nem tudo o que se lê enobrece, pelo contrário, a má leitura embrutece. Em pesquisa de grande fôlego, o historiador americano Robert Darnton[6] se propôs responder à seguinte pergunta “o que liam os franceses no século XVIII?”, isto é, o que liam os franceses no período que antecedeu imediatamente à Revolução Francesa? A pesquisa de Robert Darnton o levou a um enorme comércio clandestino de livros no, para assim dizer, subsolo da sociedade francesa. Impulsionada pela presença destacada dos sempiternos interesses comerciais, desenvolvia-se toda uma rede de produção e venda de livros proibidos classificados sob o rótulo genérico de livros filosóficos. Dos livros da mais escrachada libertinagem, até as obras dos formuladores dos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, todos foram metidos no saco único de um não-escrito Index librorum prohibitorum da decadente monarquia francesa. Do ponto de vista do Ancien Régime “são proibidos todos os livros que ferem a religião, o Estado e os costumes”. Dessa forma, convivem lado a lado, na clandestinidade, a crônica escandalosa, como as Anecdotes sur mme. La contesse Du Barry, e os escritos propriamente filosóficos, como o Contrat social. Se o comércio livreiro lucrava com a confusão estabelecida em torno do livro proibido na monarquia, hoje, adaptado à democracia burguesa, lucra com o propalado prazer da leitura. Até as instituições de ensino foram mobilizadas no afã de vender livros. Distinguir a boa literatura do bom comércio (para os comerciantes), o prazer da leitura do prazer dos livreiros com os seus lucros, é tarefa inadiável da consciência nacional, pois, nas palavras de Samuel Pinheiro Guimarães.

 

A consciência que a sociedade adquire de si mesma, isto é, a consciência de cada cidadão e dos grupos sociais sobre as características da sociedade em que vivem depende de uma representação ideológica, que depende, por sua vez, de manifestações culturais as mais distintas que interpretam e criam o imaginário nacional do seu passado, de seu presente e de seu futuro [...] a esmagadora maioria dos fatos e das interpretações que conhecemos sobre o passado do próprio Brasil e do mundo depende da elaboração intelectual e cultural de historiadores e artistas, em especial os criadores de obras audiovisuais e literárias, por mais que sejam elas consideradas como obras de ficção. Muito daquilo que um brasileiro imagina a respeito de situações e valores individuais e sociais é uma construção cultural/literária/audiovisual/noticiosa, muitas vezes repleta de preconceitos e estereótipos [...] na medida em que a elaboração, produção e difusão cultural brasileira, audiovisual ou não, está sujeita à hegemonia cultural estrangeira, a formação do imaginário nacional acaba se realizando de forma fragmentada e claudicante. As “interpretações” da realidade mundial elaboradas pelas manifestações culturais hegemônicas norte-americanas passam a predominar, refletindo os preconceitos e os estereótipos daquela cultura e os interesses daquela sociedade. Daí as distorções decorrentes da hegemonia cultural estrangeira, no caso do Brasil, americana, a vulnerabilidade ideológica e suas conseqüências negativas para o Brasil.[7]

 

Em suma, o que antes gerava lucros sob o rótulo genérico de livros filosóficos, agora continua rendendo ‘fábulas’ com a palavra de ordem “o prazer da leitura”. Com desvantagem para o momento atual, pois o contato e a aura do livro proibido faziam de seus manipuladores verdadeiros subversivos, independentemente do gênero consumido, enquanto que na liberdade de consumo do capitalismo moderno a indistinção e o prazer indiscriminado imputado à leitura, e de modo geral às manifestações culturais, faz o cidadão um alienado embebido de (falso) prazer, e a nação vulnerável ideologicamente, como acentuado com rigor analítico por Samuel Pinheiro Guimarães.

Mas, se o diagnóstico em relação à qualidade do que se lê em quantidade hoje é crítico, como funcionava o mundo e, por conseguinte, a transmissão da experiência antes da invenção da escrita? Fazemos pouco, se é que fazemos, esta questão. Na verdade, é difícil para nós, depois de três revoluções da comunicação, imaginarmos o que foi o mundo sem a escrita. Pensem em uma organização social em que qualquer forma de saber, experiência, informação somente poderia ser repassada de boca em boca. O mínimo de tempo que dedicássemos à questão, e se o nosso raciocínio fosse minimamente agudo, nos levaria à conclusão de que tudo, vida comunitária, hierarquia de poder, valores sociais, morais e culturais se organizariam de forma absolutamente distinta. Por milênios e milênios toda experiência e conhecimento foram transmitidos de boca em boca. O descendente mais antigo do homem, o Homo sapiens, teria habitado a terra há quarenta mil anos, o documento escrito mais antigo de que se tem notícia é de somente cinco mil anos atrás. Foram os sumérios, habitantes da Mesopotâmia, região onde hoje se localiza o Iraque e parte da Síria, os inventores do primeiro sistema de escrita, a escrita cuneiforme. Os egípcios inventaram o seu sistema mais ou menos 3000 mil anos a.C.; os cineses 1500 anos a.C.; os maias 50 anos d.C e os astecas 1400 d.C.

Com certeza qualquer dessas formas de escrita é o resultado de muitas tentativas, de avanços, recuos e saltos. De experiências acumuladas de modo precário, pois o que esses povos ancestrais tentavam criar era justamente a maneira de registrar perenemente o conhecimento. A invenção da escrita representou a primeira grande revolução da comunicação. Retomando, então, o mundo antes da mudança radical que representou a escrita, vejamos algumas de suas características: se, como já foi dito, tudo o que se sabia era repassado unicamente pela voz, podemos imaginar que uma das principais características dessas civilizações era a pouca velocidade – logicamente o referencial comparativo é a contemporaneidade. A notícia e a experiência andavam oralmente e a pé. Dos cinco sentidos, o mais importante era a audição, e não a visão, como hoje. O papel da memória era fundamental, tudo devia ser armazenado nela. Para facilitar a armazenagem do conhecimento, a informação tinha que ser trabalhada para que facilitasse o trabalho de memorização, para isso o ritmo, a repetição, a aliteração, a antítese, as frases feitas, os provérbios, a construção do período fundado na coordenação eram os modos de organização do pensamento. E aqui reencontramos o nosso tema, a manifestação literária inicial, a poesia, tinha uma função bastante definida: transmitir conhecimentos úteis. Daí que o poeta era antes de tudo um educador, a sua produção verbal era “um instrumento de conservação seja de tradições familiares apropriadas, seja de costumes e comportamentos dignos e aceitáveis.”[8]

Com a invenção da escrita, muda a própria organização do pensamento humano, tudo aquilo que era importante para o trabalho de memorização perde importância, a começar pela própria memória. Com a invenção da imprensa em 1454, por Gutenberg, temos a segunda revolução da comunicação. O livro impresso mudou o homem e as relações entre os homens, mudou o mundo e a visão sobre o mundo.  E mudou, ou ampliou, a função da literatura. O poeta, ao longo do período do livro impresso, deixa de ser um educador em primeiro lugar, agora ele é antes um artista, um criador da palavra. Mas a palavra, o conhecimento, até a criação por Samuel Morse, em 1844, do telégrafo, ainda andava a pé. A velocidade da mensagem, até Samuel Morse, ainda era a velocidade do pedestre. Com a criação do telégrafo, pela primeira vez na história do homem:

 

as mensagens poderão viajar mais depressa que o mensageiro. Antes existia uma relação estreita entre as estradas e a palavra escrita. Com o telégrafo a informação se separou de matérias sólidas como a pedra e o papiro, do mesmo modo em que o dinheiro precedentemente se tinha separado das peles, das barras de metal fundido e dos metais para tornar-se papel. O termo comunicação foi amplamente usado com referimento às estradas, às pontes, às rotas navais, aos rios e aos canais, antes de transformar-se com a era eletrônica em movimento de informação.[9]

 

O telégrafo inaugura a terceira revolução da comunicação e, para encurtar caminho e acenar para a velocidade da informação hoje, basta lembrarmos rapidamente do e-mail e das teleconferências...Com a informação circulando em tempo real independentemente do local de sua produção, a experiência parece perder força, é o que aponta Walter Benjamin quando redige o ensaio em que, talvez, tenha realizado o balanço mais vigoroso sobre o assunto. Em “O narrador”[10], Walter Benjamin repercorre a história da arte de narrar observando-a de um ângulo que absorve o avanço técnico, mas que percebe a perda de humanismo. Ele anota:

 

O indício mais remoto de um processo em cujo término se situa o declínio da narrativa é o advento do romance no início da Era Moderna. O que separa o romance da narrativa (e do gênero épico em sentido estrito) é sua dependência essencial do livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da épica, tem uma natureza diferente da que constitui a existência do romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de criação literária em prosa – o conto-de-fadas, a saga, até mesmo a novela – é o fato de não derivar da tradição oral, nem entrar para ela. Mas isso o distingue sobretudo da ação de narrar. O narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história. O romancista segregou-se. O local de nascimento do romance é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar.[11]

 

Walter Benjamin, quando escreveu essas notas, não poderia saber da Internet e do volume de solidão e informação que circulam pela rede. O que ele viu era somente uma prefiguração do futuro, o presente. Mas a humanidade por várias vezes já se encontrou em grandes encruzilhadas decisivas, o momento em que vivemos é mais uma delas. O que muda entre uma encruzilhada e outra é o poder de destruição de nós mesmos, que aumenta sempre. Onde buscar conhecimento e ensinamentos históricos para superar os desafios da realidade? Walter Benjamin respondeu com a sua prática: nos livros. O conhecimento e a experiência antes guardados na memória, hoje têm o seu lugar de armazenamento privilegiado nos livros. Mas a profusão de informação circulante não nos permite a simplificação hedonista. Experiência de vida e experiência de leitura, quando bem orientadas, podem iluminar o próximo passo, o passo decisivo, nunca, porém, sem que passem pelo esforço e pela disciplina do indivíduo, pela determinação de seu caráter e pelo desprezo de qualquer “facilitação pedagógica”[12].

 

 

 

 

RESUMO: Este estudo procura estabelecer conexões entre o processo de humanização do homem, o conhecimento e a experiência  acumulados, sobretudo, na literatura. Para isto recorre desde a intuição genial de Montaigne de que “chaque homme porte la forma entiere de l’humaine condition”, passando pela história da comunicação, a invenção da escrita e a problematização do toque de Midas do capitalismo, que transforma tudo em mercadoria, inclusive a literatura.

 

PALAVRAS-CHAVE: literatura; leitura; conhecimento; experiência.

 

ABSTRACT: This work seeks to establish connections between the process of mankind humanization, knowledge and accumulated experience, particularly in literature. In order to achieve this objective, the study resorts to the brilliant intuition of Montaigne – “chaque home porte la forma entiere de l´humaine condition” / “each man carries the entire form of human condition” – as well as to the history of communication, to the emergence of a writing system and to the influence of Capitalism, a kind of Midas touch, which transforms everything into commodity, including literature.

 

KEYWORDS: literature, reading, knowledge, experience.


 

· Professor de Língua Italiana e Literatura Comparada na Faculdade de Letras/UFG

[1] “A cultura corresponde a um conjunto de manifestações das diversas artes tradicionais, tais como a música, a escultura, a pintura, a literatura, a arquitetura, a dança, o teatro, o cinema e de outras formas, como a gravura e a fotografia [...] Sendo as manifestações culturais o modo como a experiência humana, que se verifica em uma certa dimensão geográfica, se transmite no tempo, a questão da cultura, da produção e da difusão cultural, está estreitamente vinculada à formação e à permanência da nação como conjunto de indivíduos, que em geral habitam um mesmo território, que compartilham uma experiência histórica comum e que têm a aspiração de construir um futuro comum, ainda que as visões sobre este futuro possam ser distintas.” Samuel Pinheiro Guimarães. “Por uma política cultural eficaz”. In: Revista Princípios. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, n. 67, 2002, p. 70.

[2] Cf. Antonio Candido. Textos de intervenção – seleção, apresentação e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002, p. 80.

[3] Augusto Meyer. Textos críticos – org. João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva/INL, 1986, pp. 8-9.

[4] Italo Calvino. “Prefácio” a Il sentiero dei nidi di ragno. In: Anselmo Pessoa Neto. Italo Calvino: as passagens obrigatórias. Goiânia: Editora da UFG, 1997, pp. 107-108.

[5] Em português, Os noivos. São várias as traduções, nenhuma boa.

[6] Robert Darnton. Edição e sedição – O universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[7] Op. cit., p. 69

[8] Erica Havelock. Cultura orale e civiltà della scrittura. Da Omero a Platone. Bari: Laterza, 1983. Apud Massimo Baldini. Storia della comunicazione. Roma: Newton Compton, 1995, p. 20.

[9] Marshall Mcluhan.  Gli strumenti del comunicare. Milano: Garzanti, 1967. Apud Massimo Baldini, op. cit., p. 73.

[10] Walter Benjamin et al. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores)

[11] Op. Cit., p. 59-60.

[12] Uso “facilitação pedagógica” no sentido em que Antonio Candido formulou o problema em “Discurso de paraninfo”. In: Antonio Candido. Textos de intervenção. Op. cit., pp. 310-319.

 

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