A IMANÊNCIA: UMA VIDA...

Gilles Deleuze

 

Tradução de Alberto Pucheu e Caio Meira

 

            Que é um campo transcendental? Ele se distingue da experiência, na medida em que não se remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se apresenta também como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem mim. Pode parecer curioso que o transcendental se defina por tais dados imediatos: em oposição a tudo isto que faz o mundo do sujeito e do objeto, falar-se-á de um empirismo transcendental. Há algo de selvagem e potente num tal empirismo transcendental. Certamente, não é o elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação é apenas um corte na corrente da consciência absoluta. Por mais próximas que estejam duas sensações, é, antes, a passagem de uma a outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será necessário, então, definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem mim, como movimento que não começa nem acaba? (Mesmo a concepção espinozista da passagem ou da quantidade de potência apela à consciência).

            Mas a relação do campo transcendental com a consciência é apenas de direito. A consciência se torna um fato se um sujeito é produzido simultaneamente a seu objeto, ambos fora do campo e aparecendo comotranscendentes”. Ao contrário, a consciência atravessando o campo transcendental a uma velocidade infinita por tudo difusa, nada a pode revelar[1]. De fato, ela se exprime apenas refletindo-se num sujeito que a remete aos objetos. Por isso, o campo transcendental não pode se definir por sua consciência que, apesar de lhe ser co-extensiva, se subtrai a toda revelação.

            O transcendente não é o transcendental. Na ausência de consciência, o campo transcendental, escapando de toda transcendência tanto do sujeito quanto do objeto[2], definir-se-á como um puro plano de imanência. A imanência absoluta é nela mesma: ela não está em alguma coisa, dentro de alguma coisa, ela não depende de um objeto nem pertence a um sujeito. Em Espinosa, a imanência não está na substância, mas a substância e os modos estão na imanência. Quando, caindo fora do plano de imanência, o sujeito e o objeto são tomados como sujeito universal ou objeto qualquer aos quais a imanência é atribuída, ocorre toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais do que reduplicar o empírico (como em Kant) e uma deformação da imanência que se acha contida no transcendente. A imanência não se remete a Alguma coisa como unidade superior a todas as coisas nem a um Sujeito como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência é imanência apenas a si que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito nem por um Objeto capaz de o conter.

            Dir-se-á que a pura imanência é UMA VIDA, nada mais. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não é imanente a nada específico é ele mesmo uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência e beatitude completas. Na medida em que ultrapassa as aporias do sujeito e do objeto, Fichte, em sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser nem se encontra submetida a um Ato: consciência imediata absoluta, cuja própria atividade não se remete a um ser, mas não cessa de se colocar numa vida[3]. Assim, o campo transcendental se faz um verdadeiro plano de imanência que reintroduz o espinozismo no mais profundo da operação filosófica. Não se trataria de uma aventura similar à que Maine de Biran se lançou em suaúltima filosofia” (aquela que ele estava muito cansado para levar a bom termo), quando descobriu, sob a transcendência do esforço, uma vida imanente absoluta? O campo transcendental se define por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida.

            O que é a imanência? uma vida... Ninguém narrou melhor do que Dickens o que é uma vida (tendo-se em conta o artigo indefinido como índice do transcendental). Um canalha, um sujeito malvado, menosprezado por todos, é trazido moribundo, e aqueles que cuidam dele manifestam um tipo de prontidão, respeito e amor pelo seu menor sinal de vida. Todos se empenham em salvá-lo, a ponto de, no mais profundo de seu coma, o próprio calhorda sentir algo suave adentrá-lo. À medida, entretanto, que ele retorna à vida, seus salvadores se tornam mais frios, e ele retoma toda sua grosseria e maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais do que o de uma vida jogando com a morte[4]. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, contudo singular, que libera um puro acontecimento sem acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade disso que sucede. “Homo tantum” do qual todos se compadecem e que alcança um tipo de beatitude. Ele é uma hecceidade que não é mais individualizadora, mas singularizante: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, pois apenas o sujeito que a encarna no meio das coisas a traduzia como boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em prol da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome e que, apesar disso, não se confunde com nenhum outro. Essência singular, uma vida...

            Não seria necessário encerrar uma vida no simples momento em que a vida individual se afronta com a morteuniversal. Uma vida está por todos os lugares, por todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objetos vividos: vida imanente trazendo os acontecimentos ou singularidades que apenas se atualizam nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela mesma, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entretempos, entremomentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio em que se o acontecimento ainda porvir e transcorrido, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet Holenia coloca o acontecimento num entretempo que pode absorver regimentos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes da vida correspondente, mas não se agrupam nem se distinguem da mesma maneira. Eles se comunicam entre si de uma maneira totalmente diferente da dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular pode abrir mão de toda individualidade ou de toda outra concomitância que a individualize. Por exemplo, todos os bebês se parecem e não têm nenhuma de individualidade; mas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjetivas. Mediante sofrimentos e fragilidades, os bebês são atravessados por uma vida imanente que é pura potência e, até, beatitude. Os indefinidos de uma vida perdem toda indeterminação à medida em que ocupam um plano de imanência ou, o que vem a dar no mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (a vida individual, ao contrário, permanece inseparável de determinações empíricas). O indefinido como tal não marca uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem antes ser a determinação do singular. O Um não é o transcendente que pode conter a imanência, mas o imanente contido num campo transcendental. Um é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida... Pode-se sempre evocar um transcendente que cai fora do plano de imanência ou, até, que se atribui a ele; mesmo assim, toda transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a esse plano[5]. A transcendência é sempre um produto da imanência.

            Uma vida contém apenas virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Isso que se chama de virtual não é algo a que falta realidade, mas que se engaja num processo de atualização seguindo o plano que lhesua realidade própria. O acontecimento imanente se atualiza num estado de coisas e num estado vivido que faz com que ele ocorra. O próprio plano de imanência se atualiza num Objeto e num Sujeito aos quais ele se atribui. Enquanto eles são quase inseparáveis de suas atualizações, o plano de imanência é em si mesmo virtual, do mesmo modo que os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, assim como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. Nada falta ao acontecimento considerado como não-atualizado (indefinido). Basta colocá-lo em relação com seus concomitantes: um campo transcendental, um plano de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida se encarna ou se atualiza num estado de coisas e num vivido; mas ela mesma é um puro virtual sobre o plano de imanência que nos arrasta a uma vida. Minha ferida existia antes de mim... [6]. Não uma transcendência da ferida como atualidade superior, mas sua imanência como virtualidade sempre no interior de um meio (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental e as formas possíveis que os atualizam, que os transformam em algo de transcendente.

 


 

[1] Bérgson, Matière et Mémoire: “como se nós refletíssemos sobre as superfícies a luz que delas emanam, luz que, propagando-se sempre, jamais haviam sido reveladas”, Oeuvres, PUF, p. 186.

[2]  Cf. Sartre, La transcendence de l’Ego, Vrin: Sartre coloca um campo transcendental sem sujeito, que remete a uma consciência impessoal, absoluta, imanente: em relação a ela, o sujeito e o objeto sãotranscendentes” (p. 74-87) – Sobre James, cf. a análise de David Lapoujade, “ flux intensif de la conscience chez William James”, Philosophie, no 46, junho de 1995.

[3]  na segunda introdução à Doutrina da ciência: “a intuição da pura atividade que não é nada fixa, mas avanço, não um ser, mas uma vida” (p. 274 Ouvre choisies de philosophie première, Vrin). Sobre a vida segundo Fichte, cf. Initiation à la vie bienheureuse, Aubier (e o comentário de Gueroult, p. 9).

[4]  Dickens, L’ami commun, III, ch. 3, Pléiade.

[5]  Mesmo Husserl reconhecia isso: “O ser do mundo é necessariamente transcendente à consciência, mesmo na evidência originária, permanecendo necessariamente transcendente. Mas isso não muda o fato de que toda transcendência se constitui unicamente na vida da consciência, como inseparavelmente ligada a esta vida...” (Méditations cartésiennes, Ed. Vrin, p. 52). Este será o ponto de partida do texto de Sartre.

[6]  Cf. Joe Bousquet, Les Capitales, Le Cercle du livre.


 

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